quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

O plus normativo dos princípios constitucionais: revendo o prazo da prescrição trabalhista

Atualmente, com o surgimento do Constitucionalismo Pós-Guerra, as Constituições (mormente a do Brasil, de 1988) passam a estar recheadas de princípios jurídicos. Desse modo, institucionalizou-se a moral no bojo do Ordenamento Jurídico, representada pelo horizonte de sentido/significado normativo principiológico.
Com isso, está-se diante da necessidade de modificar o modo de compreender e aplicar o Direito, sempre dando espaço à atuação dos princípios. Mas tal deve ocorrer não somente quando inexistir regra expressa sobre o caso a ser regulado, pois, mesmo diante dessa situação, os princípios devem servir como plus (aumento) normativo, provocando uma conformação moral (constitucional) do Direito.
Um bom exemplo do que se pretende explicar é o da prescrição (perda da pretensão –  de exigir via ação judicial o cumprimento) de verba oriunda de relação de emprego.
É verdade que existe regra constitucional (art. 7°, inciso XXIX) que determina a fulminação da pretensão ligada a direito trabalhista em cinco anos, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho. De outro lado, dispõe o artigo 205 do Código Civil (apenas para não recorrer ao vetusto Código Civil) prazo prescricional de dez anos quando não haja fixação de prazo menor.
Não se trata de conflito literal entre ambos dispositivos, vez que, nesse vértice, as redações não deixam margem a qualquer dúvida de que a prescrição seria aquela prevista na Constituição, porque menor, nos exatos termos da lei infraconstitucional.
 Ledo engano! Infere-se aí, sem titubeio qualquer, conflito de ordem principiológica, mais especificamente entre os princípios que prestam alicerces para as mencionadas regras: o princípio da norma mais favorável (corolário do princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais) e o da segurança jurídica.
Ora, se a prescrição tem por escopo assegurar as relações sociais, cujas obrigações não podem perdurar eternamente, tem-se que o período que as compreende não pode ser igual em todas as situações. Pelo menos, acerca da pretensão de direitos de maior alçada (direitos fundamentais), o lapso temporal para seu titular exercer o respectivo direito de ação para fazer valer seu interesse resistido deve ser maior, ou, no mínimo, não pode ser menor.
Em sendo assim, o cumprimento do princípio da máxima efetividade, nesse aspecto, está insatisfatoriamente cumprido pela regra constitucional. Sua densidade de proteção é menor de situações outras, que não envolvem pretensões oriundas de direitos fundamentais (exemplo: pretensão de recebimento do preço de uma compra e venda), de acordo com o prazo prescricional estabelecido no Código Civil.
Consequentemente, se o princípio deve ser cumprido ao máximo, mister se faz que a prescrição das verbas laborais seja, no mínimo, de dez anos, e não segundo o sistema cinco-dois, estatuído na Constituição.
E nem se objete dizendo que, por ser a Lei Maior de hierarquia superior, não pode existir contrariedade por lei de menor escalão.
Primeiro, urge-se denotar que, em se tratando de direitos fundamentais, a Constituição deve assegurar o mínimo, e não o máximo! Em se tratando de direitos fundamentais, a Constituição é o ponto de partida; não pode ser, obviamente, o ponto de chegada. Por isso mesmo, o próprio caput do artigo 7° expressamente contempla cláusula aberta de direitos fundamentais dos trabalhadores (“São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”).
Segundo, porque o princípio invocado também é de índole constitucional (art. 7º caput) e, pelo critério não só da hierarquia, mas, primeiramente, em razão da ordem moral constitucionalizada, que explicitamente confere defesa aos direitos fundamentais, deve ser contemplado.
Trata-se, portanto, de sedimentar a máxima efetividade dos direitos fundamentais. Ora, se antes as leis infraconstitucionais eram empecilhos para a efetividade da Constituição, agora, não pode se conceber que a Constituição seja óbice para a prevalência de tratamento mais favorável no que tange a um direito fundamental, a despeito de estar previsto em lei ordinária.
Além do mais, não haverá qualquer infringência ao princípio da segurança jurídica, vez que se trata de prazo expressamente contemplado em lei (no caso, o Código Civil). Se assim não fosse, estar-se-ia privilegiando condutas que afrontam direitos fundamentais em prol do dogma da segurança jurídica e em detrimento de um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, na roupagem do Estado Democrático de Direito, qual seja: o valor social do trabalho (art. 1°, inciso IV, da Magna Carta de 1988).
O que se pretende afirmar com isso é que toda norma (do caso de decisão) deve estar consentânea com os preceitos principiológicos constitucionais, sob pena de não atingir seu grau ideal (necessário) de normatividade. Os princípios, pois, consigna-se, devem ser concretizados ao máximo! Não ao ponto de excluir uns aos outros, mas, como ensina Konrad Hesse, até o estágio necessário para fomentar sua harmonização ou concordância prática.

Cleiton Luis Chiodi - GEDIS

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

A Tropa e a Elite: “bem- vindo ao sistema”


O sucesso estrondoso dos filmes “Tropa de Elite I” e “Tropa de Elite II” é um fato que permite boas reflexões sobre as instituições públicas brasileiras. O segundo filme, lançado recentemente, repete o sucesso do primeiro: é muito bem feito e revela a complexidade do combate à violência. Trata-se de uma narrativa sem a tradicional divisão entre bons e maus, tão comum no cinema em geral. A ausência de maniqueísmo no enredo favorece a compreensão de que o problema da criminalidade necessita ser enfrentado com políticas públicas que não se baseiem apenas na repressão policial, pois esta pode apenas aumentar a violência.
Para além do contexto da segurança pública carioca, o filme suscita um tema importante: a relação entre grupos políticos e os agentes públicos. Muito embora o filme trate apenas da relação destes grupos com a polícia, é possível tomar a situação aí exposta como um paradigma para todo o funcionamento do Estado.
O ponto de partida para análise é o seguinte: nossa sociedade é oligárquica, ou seja, pequenos grupos se formam com intuito de manter o controle político sobre os demais. Isso acontece em todas as esferas sociais. É comum termos em cada cidade grupos familiares que se alternam no poder, cooptam pessoas, combatem  seus desafetos, criam ao seu redor um espectro de poder que serve para atrair outros tão corruptos, mas, principalmente, para intimidar os que não comungam das suas práticas.
Outra premissa importante é o caráter corporativo do estado brasileiro. Dentro da máquina pública estes grupos disputam posições para que seus membros ocupem o máximo de cargos. Essa competição envolve desde o cargo de direção de escola até ministérios. No filme, há uma cena clássica em que o alto comando da polícia do Rio discute a indicação para determinado cargo. Surge então a seguinte afirmação “sua indicação seria muito boa para nós”. Em seguida, a pergunta “é bom quanto?”
Ocupados os postos mais relevantes, surge um empenho para que o Estado não funcione, pois as estruturas viciadas são extremamente lucrativas a estes grupos. Nos dois filmes fica nítido que tudo que o sistema corrupto de segurança pública menos quer é acabar com a violência, pois ela permite criar vários negócios ilegais extremamente vantajosos aos operadores do sistema. Diante desse fato surge o perigoso argumento: “o Estado brasileiro é incompetente e corrupto por natureza, nunca mudará”. As milícias são formas de privatização a nos lembrar que se o Estado sair de determinada atividade, quem entra é lucro.
Quando o Capitão Nascimento percebe que ele serve ao sistema, ou seja, “está dançando a música tocada” por um grupo que se apropriou do Estado, parte para outro combate. Não mais “manda bala” nos delinquentes favelados, ou naqueles que são apenas favelados, mas opta por “por a boca no mundo” contra aqueles que operam o sistema. Aí ele descobre que o combate republicano é muito mais letal que a “guerra contra as drogas”. 
Talvez este novo herói do cinema nacional, esteja propondo a todos nós perguntarmos em nossos espaços de sociabilidade (cidade, bairros, escolas, igrejas, clubes, associações, partidos, órgãos públicos, estados, União,  etc.) “quem manda aqui Playboy?”    “é nóis!”, “é nóis!”, “é nóis!”.

Samuel Mânica Radaelli - GEDIS

domingo, 5 de dezembro de 2010

A “importação de idéias” como obstáculo à emancipação social

É comum citarmos práticas jurídicas de outros países para relacionar e criticar uma determinada realidade social do nosso país. Essa pesquisa é fundamental para a abrangência do horizonte teórico do observador, pois permite a contextualização de realidades e a comparação destas em vista ao desenvolvimento social. Há, porém, uma característica latente nessa prática de “importação de idéias”, algo que deturpa o objetivo da pesquisa e traz uma carga ideológica dominadora como instrumento de justificação lógica das injustiças reais.
Quando nos referimos à experiência de outros países em relação a questões polêmicas da atualidade – tal qual o aborto, a pena de morte ou a segurança pública, por exemplo – devemos estar atentos não apenas no contexto em que o referencial está inserido, mas também na história que construiu sua razão de ser. Tal pressuposto é fundamental para uma análise isenta de visões superficiais que não se encaixam à nossa realidade. Cada país, assim como cada pessoa, possui uma história que influencia diretamente seu ser. Essa história não pode ser separada do “ser”, pelo contrário, deve ser pesada junto ao “ser” quando construímos conceitos de justiça – que, por sua vez, fundamentarão o direito.
Grande parte das referências adotadas são os países desenvolvidos. Utilizam-se das práticas de alguns desses países – em especial a existência da pena de morte e das penas rígidas – para contestar a inexistência desses institutos em nosso país. Todavia, frequentemente esquece-se de observar o passado desses países, sua história, sua forma de organização social, fatores que influenciam diretamente no surgimento, desenvolvimento e eficácia de seus institutos jurídicos. A experiência do “outro” não pode ser simplesmente implantada no “eu”. De regra, os resultados dessa “importação de experiências” não funcionam da mesma forma que observamos no outro, de quem se copiou a idéia. Se pontuarmos a questão da pena de morte, observaremos que não apenas alguns países desenvolvidos a adotam, mas também países subdesenvolvidos, com realidades conturbadas e violentas, legitimam o assassinato de um ser humano pelo Estado.
O que se quer dizer é que a simples implantação da pena de morte no Brasil, além de ser juridicamente impossível devido ao fato de ser vedada pela Constituição Federal de 1988, seria completamente ineficaz, pois não resolveria o problema da segurança pública (assim como não o resolveu nos demais países que adotam essa medida). Essa é a visão que se deve adotar em relação a outras questões pertinentes, como a redução da maioridade penal.
A emancipação e libertação de uma sociedade passa pelo estágio onde ela começa a observar seu próprio “horizonte ontológico” – sua própria realidade e contextos históricos e sociais – como fundamento legítimo de suas idéias. Assim ruma-se à libertação teórica e material em relação ao imperialismo internacional que se observa em nossa sociedade globalizada e excludente. Dessa forma, encontraremos melhores condições para construirmos soluções mais adequadas e eficazes em relação aos problemas de nossa sociedade.

Luís Henrique Kohl Camargo - GEDIS


sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Patricinha fascista

A estupidez está sempre ao alcance de todos. Mayara Petruso, patricinha paulista, estudante de Direito, saiu do anonimato para fama, via Twitter, graças a um coice na inteligência nacional.


Indignada com a vitória de Dilma Rousseff, a moça disparou este petardo: "Nordestino não é gente, faça um favor a São Paulo, mate um nordestino afogado. Tinham que separar o Nordeste e os bolsas-vadio do Brasil (...) Construindo câmaras de gás no Nordeste, matando geral". No Facebook, a burrinha racista se atolou um pouco mais: "Afunda, Brasil. Deem direito de voto pros nordestinos e afundem o país de quem trabalha pra sustentar vagabundos que fazem filhos pra ganhar bolsa 171". Mayara já perdeu o emprego no escritório onde trabalhava e sofrerá ação judicial protocolada pela OAB.

Alguns jovens universitários paulistas têm revelado um grau superior de idiotice. Depois da turminha que hostilizou uma guria por causa da sua minissaia, apareceu o bando do "rodeio das gordas", propondo tratar meninas obesas como animais. E agora entra em cena a tal Mayara. O escândalo maior é imaginar que isso representa uma opinião média difundida na Internet. Como será que a mulinha Mayara explica a vitória de Dilma em Minas Gerais? Achar que as ajudas sociais são incentivos à vagabundagem é típico de uma elite primitiva ou de uma classe média ignorante. Qualquer país civilizado, a começar por França, Alemanha, Inglaterra e, evidentemente, países escandinavos, oferece mais ajudas sociais que o Brasil. Não adianta ir à Europa só para comprar bolsas Vuitton. É preciso espiar o cotidiano.

Quem não recebeu e-mails dizendo que Dilma não podia ser candidata por ter nascido na Bulgária? Quantos analistas têm por aí sugerindo que os nordestinos são subeleitores que votaram com o estômago? Quando um empresário escolhe um candidato seduzido pela possibilidade de redução de impostos, o que é legítimo, não se trata de voto por interesse? Não é voto com o bolso? Quando ruralistas votam num candidato na esperança de conseguir mais incentivos, o que é comum, não é voto interesseiro? Mayara não deixa de ser o produto de uma estratégia perigosa, a divisão ideológica entre bem e mal. Foi essa perspectiva, cara ao vice Índio da Costa, que José Serra adotou. A revista Veja e o jornal Estado de S. Paulo deram aval a essa idiotice retrógrada. Uau!

O PSDB, que nasceu pretendendo ser moderno e racional, podia mais. Veja, que se acha mais moderna do que os modernos, acabou por produzir leitores Mayara. Isso não tem a ver com partidarismo como imaginam os mais simplórios ou ideológicos. Eu jamais terei partido. Meu único capital é a independência selvagem. Sou a favor do voto de castidade partidária para jornalistas. Tudo pela liberdade de dizer que quem acha o Bolsa-Família um incentivo à vadiagem pensa como Mayara. Esse foi o principal erro tucano na campanha eleitoral: ter guinado à direta para tentar seduzir as Mayaras, que arrastaram um intelectual progressista como Serra para o reacionarismo rasteiro do Estadão e da Veja. Mayaras, nunca mais!

Juremir Machado da Silva
Artigo publicado no Correio do Povo de 5/11/2010




domingo, 7 de novembro de 2010

Direitos humanos em Cuba

“Milhões de crianças dormirão com fome esta noite, nenhuma delas é cubana” Fidel Castro
             
            A mídia em geral tem criticado a forma como o regime cubano trata a questão dos direitos humanos. Em parte, a crítica procede. É necessário, entretanto, dimensionar a análise realizada, dado que ela pode conduzir a erros (em algumas situações a crítica tem como escopo ocultar a situação dos direitos humanos no Brasil).
            A contestação da posição de Cuba centra-se na análise dos problemas relativos ao respeito aos direitos humanos individuais, os quais de fato não recebem a atenção que merecem. Mas é preciso lembrar que os direitos humanos não se resumem aos direitos individuais, possuindo outras quatro dimensões: direitos individuais (liberdade, propriedade e garantias da pessoa acusada, como exemplos); direitos sociais (trabalho, educação, assistência social, previdência etc); direitos de solidariedade (meio ambiente, desenvolvimento, autodeterminação dos povos); direitos da biotecnologia e direitos do ciberespaço.
            Os críticos do modelo cubano, de ordinário, realizam uma análise parcial. Interpretam somente as questões relativas aos direitos individuais, ignorando as demais dimensões. Longe de querer defender o modelo daquele País, não há como deixar de reconhecer que importantes conquistas foram alcançadas no âmbito dos direitos sociais. Um exame dos direitos humanos em Cuba não pode deixar de analisar fatos como a universalização do ensino em todos os níveis e o amplo acesso à saúde (neste quesito em especial, os Estados Unidos, infinitamente mais rico, não consegue dar um padrão mínimo de acesso à saúde a todos).
            Uma interpretação livre de condicionantes ideológicos revela que em Cuba os direitos individuais não têm a mesma importância dos direitos sociais, estes plenamente garantidos. Analisando o caso brasileiro, constatamos que os direitos individuais de natureza patrimonial são plenamente garantidos, mas ainda há muita dificuldade na efetivação dos direitos sociais. Assim, aqueles que bradam contra as violações existentes em Cuba, precisam ter uma visão mais profunda sobre o tema, pois do contrário estarão caindo na velha estratégia do poder instituído de criticar aquilo que está longe, como forma de justificar o cotidiano em que estamos imersos.
            Assim, as interpretações - em geral as apresentadas pela grande mídia - não possuem a isenção que se auto-atribuem. Esse fato exige da sociedade, em especial da comunidade acadêmica, uma interrogação sobre aquilo que está por trás do inicialmente apresentado. É justamente a diferença entre essência e aparência, a razão de existir da ciência.

Samuel Mânica Radaelli - GEDIS



quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O trabalho em dias destinados ao descanso

            A legislação trabalhista brasileira previa inicialmente o descanso para os empregados em uma oportunidade na semana (por 24 horas consecutivas). Depois - para espanto daqueles que entendem que o ócio é uma prerrogativa de determinada classe - esse descanso passou a ser remunerado e os feriados também passaram a ostentar a mesma condição (Lei 605, de 1949).

            A Constituição de 1988 alçou o direito de descansar em uma oportunidade na semana e aos feriados à condição de direito fundamental social, impondo que a interrupção semanal do trabalho deveria coincidir “preferencialmente” com os domingos.
            Existem leis, anteriores e posteriores à atual Constituição, que autorizam em determinadas situações o trabalho de empregados em dias originalmente destinados ao descanso. E isso é mais do que razoável. Afinal, há evidente interesse público no funcionamento de determinados empreendimentos em todos os dias da semana (como hospitais, farmácias, funerárias etc).
            O que de certo modo me surpreende é o excepcional tornar-se regra. Em outras palavras: admite-se como corriqueiro o trabalho em dias destinados ao descanso (concedendo-se outro dia de folga ou efetuando-se o pagamento das horas, em dobro), quando o correto - a meu sentir - seria aceitar tal situação apenas em hipóteses restritas.
            Atualmente, como ilustração, a lei autoriza o comércio varejista a utilizar os serviços de seus empregados aos domingos, desde que fixada uma escala para coincidência da folga com tais dias a cada determinado número de semanas.
            Entendo - com o devido respeito aos que pensam de forma diversa (o próprio STF admite, ao menos em caráter liminar, a constitucionalidade da lei) - que essa autorização genérica vai de encontro aos fundamentos da Constituição (principalmente à valorização social do homem que trabalha).
            Antes de 1988, a lei até poderia validar genericamente o trabalho em dias originalmente destinados ao descanso. Afinal de contas, a legislação estava conforme a ordem constitucional pretérita que outorgava prevalência ao princípio da livre iniciativa (a legislação de 1949, como exemplo, atendia aos fundamentos e princípios da Carta de 1946).
            A Constituição atual, no entanto, rompe com a tradição liberal anterior e - no intuito de instituir um novo modelo de Estado - altera a ordem dos princípios que regem a ordem econômica (conferindo prioridade ao homem e ao seu trabalho). Por corolário: a iniciativa privada será respeitada, até como decorrência do modo de produção vigente, mas desde que lastrada na valorização social do trabalho.
            Em face disso – observada a ordem de valores acolhida pelo constituinte - é imperioso concluir que a regra a ser observada é o descanso dos empregados em domingos e feriados e, a exceção, o trabalho nestes dias. Em palavras outras: o interesse meramente econômico das empresas não pode se sobrepor ao direito fundamental dos empregados de descansar no mesmo dia em que a ampla maioria de seus semelhantes, principalmente aqueles de seu entorno.
            Resumindo: somente se pode utilizar a força de trabalho de empregados em domingos e feriados por motivo de conveniência pública ou, em situações ainda mais excepcionais, de necessidade imperiosa do serviço.
            Não me parece que seja essa a diretriz adotada pelo legislador infraconstitucional e pela jurisprudência dominante.
            Valorizar o trabalho talvez implique em olhar as pessoas que labutam com lentes de solidariedade (tão em falta ultimamente!).

Régis Trindade de Mello - GEDIS

sábado, 30 de outubro de 2010

domingo, 24 de outubro de 2010

O “Eu” e(é) o “Outro”: breve ensaio sobre a dignidade humana


Você já se perguntou, por algum instante, qual é a sua responsabilidade (e se ela é) para com o “Outro”? Ainda, se, de fato, existe essa responsabilidade? São questões por demais intrincadas e que, há muito, estão sendo acobertadas por um discurso dominador (individualista), sendo necessário construir novas bases para respostas diferentes.
E, para bem cumprir tal desiderato, começa-se dizendo o seguinte: o “Outro” deve ser reconhecido desde a sua perspectiva e não com base na minha (do “Eu”); deve ser respeitado desde si; o “Eu” é que deve se encontrar no “Outro”.
O “Outro”, aqui tratado, é o “excluído”. Não o excluído da minha cultura ou da perspectiva que me situo, mas, sim, desde o seu locus existencial. Referida exclusão, ademais, pode ser acarretada pela tentativa de sua inclusão no meu modo de ser, na minha cultura, transmutando-se em dominação.
Não posso (“Eu”) influir para sua exclusão, deteriorando sua existência (devo, antes de mais nada, garanti-la!). E, mesmo quando não tenha – diretamente – dado causa para seu estado periclitante, tenho, sim, responsabilidade pelo “Outro”, porquanto isso tem a ver comigo também.
Ocorre que, quando o “Outro” me interpela – com o seu olhar, por exemplo, ou quando pede esmola ou comida ou, bem como, quando está em uma situação de sofrimento ou está sendo dominado – acabo sendo interpelado em minha dignidade.
Sim, minha dignidade não é algo construído a partir do “Eu”, senão desde o “Outro”. É no “Outro” que devo espelhar minha condição humana, porque devo “me encontrar”  (e de fato me encontro) nele.
A dignidade não pode ser adjudicada por “um” só sujeito, antes, é construída por “todos”. Apenas possuo dignidade se todos os “Outros” também a possuem, porque ela (a dignidade) somente é palpável conjunta e não individualmente, não sendo dignidade “do ser humano” e, isto sim, “dignidade humana”.
A face do “Outro”, portanto, é um “espelho”, que reflete tudo aquilo que sou desde a sua perspectiva; mais que isso, somente “sou” aquilo que o “Outro” permite que eu seja, porque “Eu” dependo dele para me visualizar e me compreender, para delinear e constatar minha (participação na) dignidade.
A face do “Outro” é o espelho da “realidade”, de modo que a dignidade que penso existir em mim, mas não está concretizada no “Outro”, na verdade, é irreal. Mas ela também é “virtual”, no sentido de que pode vir a existir, desde que “Eu” possibilite sua existência no “Outro”, eis que se, a partir de mim, percebo a possibilidade de dignidade, é porque, desde o “Outro”, ela é possível de ser alcançada.   
A dignidade “real”, e não “virtual”, para existir, necessita do reconhecimento do “Outro”, ou melhor, desde que este também se sinta digno (por isso, o espelho). Pode-se dizer, dessa forma, que minha dignidade existe (concretamente) na porção compartilhada, mutuamente, com o “Outro”, isto é, na mesma medida que ela existe neste. 
Quando olho para o “Outro” estou, pois, olhando para mim mesmo! Se ele está sofrendo, está sendo dominado, está excluído, enfim, está sendo privado de sua dignidade, assim também “Eu” estou. E quando ignoro um apelo do “Outro”, ainda que formulado implicitamente, abandono o respeito à minha dignidade humana, porque estou “me” abandonando. 
Daí que a responsabilidade em emancipar o “Outro” é, por via transversa, uma responsabilidade para comigo mesmo. Só posso ter dignidade se a vejo, também, nos demais indivíduos. Ou ela existe no “Outro”, ou sequer existe em mim!

Cleiton Luis Chiodi - GEDIS

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Eduardo Pianalto de Azevedo

Samuel Radaelli (GEDIS), à esquerda;
Régis T. de Mello (GEDIS), ao centro;
Eduardo Pianalto de Azevedo, à direita.

Conversamos com o Professor Eduardo em ambiente onde ele transita com desenvoltura (a Universidade) – o vídeo dessa entrevista pode ser acessado, neste blog, na barra de vídeos acima, ou no canal do grupo GEDIS no site youtube (www.youtube.com/grupogedis).
Eduardo chega com seu jeito simples (jeans e camiseta branca tornaram-se, dentre outras, marcas deste respeitado professor de direito penal) e começa a discorrer sobre temas diversos, sem abrir mão da sofisticação teórica. O tempo passa rápido, o professor dos “causos” (e das temidas provas) não foge da raia, enfrenta questões complexas e seduz com a firmeza de seus argumentos.
Desse bate-papo informal extraem-se informações valiosas (abaixo resumidas). Eduardo é gaúcho de Rio Grande, formou-se na PUC de Porto Alegre e, antes de ingressar na Polícia, trabalhou na Secretaria da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul.
Relata que trabalha desde os 14 anos de idade. Entrou - no ano de 1975 - para a Polícia, onde construiu carreira, primeiro como investigador, depois como escrivão (a partir de 1978) e, de 1989 a 2006 (ano da aposentadoria), como delegado.
Eduardo, atualmente, é mestre (não apenas no sentido acadêmico da expressão, concluinte que é do curso de Mestrado da UFSC), mas principalmente no sentido de “homem que ensina”, com sabedoria.
A seguir, uma síntese de suas posições sobre várias questões:

Polícia como instituição
A polícia é uma instituição fraca. Seus delegados não pensam nela como instituição. Falta corporativismo institucional e sobra corporativismo pessoal. A polícia é mais do que o cargo de delegado (ou seja, não se pode personalizar a polícia).

Abordagem policial
A polícia mais gera medo do que sensação de segurança. Uma das causas disso é o próprio despreparo do policial que faz de sua defesa o ataque (afinal, ele também tem medo).
Além disso, há a questão do poder. A outorga de poder a uma pessoa despreparada é uma questão séria, pois o poder seduz.

Polícia militar
A militarização da Polícia (que ocorreu com a Revolução de 64) é um equívoco. Além disso, há pouco efetivo da polícia militar nas ruas (cerca de 30%), o que é inadmissível. O Poder Público contribui com a iniqüidade ao atribuir serviços burocráticos a polícia militar (como elaboração de termo circunstanciado).

Delegados
Boa parte dos profissionais precisaria de mais preparo intelectual. A preparação, após o ingresso na carreira, é essencialmente técnica ou operacional.

Criminalidade e segurança pública
A criminalidade é um fenômeno único. Logo, as polícias (civil e militar) também deveriam ser unificadas. Para se ter uma idéia, nem mesmo as faixas de rádio usadas são as mesmas.
Por outro lado, não há efetivo interesse na resolução do problema da segurança pública. Ele rende plataforma eleitoral. Acabando com o problema da segurança, sucumbe o discurso. Nesse contexto, a polícia é mero instrumento de preservação do interesse político.
Na verdade, o problema da segurança pública não é de segurança pública! A solução está em outras esferas, como, por exemplo, no oferecimento de educação de qualidade.
Contribuí, ainda, para a alta da criminalidade, a própria mídia. Ela faz questão de divulgar a alta da criminalidade como mostra de crescimento. O sinônimo de desenvolvimento de uma cidade é sua criminalidade alta.

A cultura do medo
O Estado precisa eleger um inimigo para combater (como exemplo, o combate às drogas).
Assim agindo, o Estado consegue coesão ideológica e omite problemas sociais (relegados a um segundo plano).

Política na polícia
Existe, mas a culpa é de quem a aceita. Os cargos de direção, na Polícia, decorrem de uma escolha política (o que é um equívoco, pois tratamos de uma instituição que deveria primar pelo profissionalismo e a técnica). Os policiais deveriam, para os cargos de direção, ser escolhidos por mérito.

Redução da maioridade penal
Contra. Não seria a solução para o problema do crime. Biológica e psicologicamente, o menor não está completamente maduro e, em sua média, possui comportamento diferenciado que, assim, demanda tratamento também diferente.

Pena de morte
Contra. O atual estágio político e jurídico não permite a adoção desta punição.

Políticos
Os candidatos são fracos ou despreparados. Prepondera o “bom-mocismo”.

Universidade
Sinônimo de diversidade. A universidade é ensino, mas principalmente pesquisa e fomento de idéias. Não há universidade sem pesquisa.
Além disso, faltam outros instrumentos de cultura.

Obscurantismo (?)

              A autora do texto publicado neste blog no dia 06 de outubro de 2010, denominado “Dois Pesos...”, foi demitida pelo jornal “O Estado de São Paulo” nessa mesma data. Em argumentação bem fundamentada, a psicanalista Maria Rita Kehl tratou, no artigo que causara sua demissão, sobre a questão da “desqualificação” dos votos dos pobres e a importância de programas sociais como o “Bolsa Família” no atual contexto social do nosso país.
              Fenômenos como esse explicitam o que há de obscuro na rede do poder econômico e político: por detrás de muitos discursos que pregam a liberdade do mercado e a redução da soberania estatal se esconde um forte conteúdo ideológico que visa à acumulação de riquezas de uns por meio da exclusão social de outros. Vale lembrar que situações assim não ocorrem apenas com colunistas, mas – e principalmente – com o trabalhador de base, que sobrevive com o salário mínimo, constantemente submetido às pressões políticas impostas pelo patrão – aquele ser benevolente que gera emprego e renda à população.
           A submissão política do trabalhador em relação ao empregador é uma realidade concreta. Muito mais que o poder de se apropriar do trabalho alheio, o patrão tem, em muitos casos, a possibilidade de condicionar a opinião do seu funcionário por meio de “sanções internas” bem conhecidas pela sociedade. O fato de o funcionário “falar demais” não é interessante para o proprietário, e este, por sua vez, expressa tal desinteresse de várias formas.
            O que o fato da demissão da colunista Maria Rita Kehl simboliza é a diferença do posicionamento do dominador da sociedade atual em relação à sociedade de algum tempo atrás. Antigamente, a classe dos empregadores defendia e exprimia suas opiniões sectárias de forma objetiva. Hoje, a ideologia liberal divulga a extinção da luta de classes, como se tal fenômeno não mais existisse. Tal posicionamento possui o objetivo de amenizar as contradições da dominação, bem como de promover uma proposta política atraente em relação ao pobre – que constitui a maioria em nossa sociedade. A direita existe e continua agindo, porém sempre debaixo dos panos da democracia representativa.
            A luta de classes existe bem como a constante pressão do rico para que o pobre se submeta às suas vontades. Quando surge qualquer medida que modifique essa lógica e proporcione ao pobre a oportunidade de um mínimo de auto-determinação, ela é conceituada negativamente (sob a forma de “esmola”, “estímulo à vadiagem”...). Em seu artigo (reproduzido por este blog), Maria Rita Kehl explicou, com argumentação concreta, a importância do Bolsa Família, atualmente, para a nossa sociedade. Tentáculos obscuros atuaram, e ela foi demitida. Agora cabe a nós reconhecermos (e lutarmos contra) a existência desses tentáculos, para que, amanhã, não nos tornemos outra vítima deles.

Luís Henrique Kohl Camargo - GEDIS

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Dois Pesos...


Artigo de Maria Rita Khel, publicado no jornal "Estado de São Paulo":
Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.
Se o povão das chamadas classes D e E – os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil – tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.
Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por “uma prima” do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.
Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa, como no assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias. Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da “esmolinha” é político e revela consciência de classe recém-adquirida.
O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família, que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de “acumulação primitiva de democracia”.
Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.
Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Trabalho: acima de tudo, um direito


A maioria das pessoas já teve contato com frases similares a estas: “o trabalho enobrece o homem”; “quanto mais cedo começar a trabalhar, melhor”; “qualquer trabalho é melhor do que nenhum”.
                Mas será mesmo que qualquer trabalho dignifica a pessoa que trabalha? Será que a supressão da infância e da adolescência realmente é o melhor caminho para a formação das pessoas? Será que o simples fato de trabalhar, mesmo sem as condições mínimas para tanto, é motivo de regozijo?
                Sinceramente - apenas como exemplo - não acho que a realização da mesma tarefa, durante mais de oito horas diárias, em posição muitas vezes incômoda e condição ambiental inadequada, com salário igual ou pouco superior a R$ 500,00 e com a perspectiva de chegar, ao longo de anos, a uma remuneração apenas um pouco superior, seja fonte de engrandecimento pessoal para alguém. Também não acho que o trabalho desde tenra idade contribua para a formação do indivíduo (ao contrário, penso que prato cheio para traumas futuros: quem não tem tempo de ser criança, não amadurece). Não vejo também como aceitar condições degradantes ou análogas à escravidão como preferíveis à falta de trabalho.
                Trabalho não é dádiva, é direito (Constituição da República, artigo 6º). Logo, o Estado está obrigado a instituir políticas públicas que tornem possível o acesso, por um número cada vez maior de pessoas, a emprego. Quando o Poder Público assim atua, não faz favor algum, apenas atende ao comando constitucional.
                E o direito não é a qualquer trabalho, mas a um trabalho digno e somente a partir da idade adequada. E dignidade no trabalho – da qual nem mesmo o trabalhador pode abrir mão – apenas se alcança com o cumprimento integral da legislação trabalhista.
                Urge, pois, que se desmistifique a ideia de que empregados possuem direitos em demasia (procurarei demonstrar, em outra oportunidade, que isso não é verdade) e de que o direito do trabalho é excessivamente rígido (o direito de despedir a qualquer tempo, exceto em restritíssimas hipóteses, desmonta tal tese).  
                Essa é, dentre outras, umas das metas de nosso grupo: conscientizar as pessoas de que o direito também pode ser utilizado como instrumento de justiça social.  Quer contribuir? Entre em contato ou acompanhe nossas idéias (por meio do e-mail: grupogedis@hotmail.com ou neste Blog).

Régis Trindade de Mello - GEDIS

terça-feira, 14 de setembro de 2010

A reincidência sob um enfoque crítico

   
Há muito a pena foi tida como forma de expiação/castigo ao infrator, o qual pagava com seu próprio corpo e, não raro, com sua vida pelo ato criminoso praticado. A execução penal ocorria em praça pública, em forma de espetáculo para o público em geral, pelas mãos dos carrascos e executores, cujos atos, destarte, confundiam-se ou ultrapassavam a repulsa causada por aqueles praticados pelo infrator.
De fato, deve-se reconhecer, com Michel Focault, que o estabelecimento prisional, de certa forma, serviu para humanizar o direito penal, ao menos no tocante à pena. Além disso, esta passou a ser vista sob um outro enfoque, qual seja: como meio para a ressocialização do  sujeito infrator.
Pode-se falar, no entanto, que nosso Código Penal adota, em relação à teoria da pena, uma mescla entre o caráter punitivo ou vingativo e o ressocializador. O primeiro teria o fim de castigar tanto o ofensor quanto incutir medo aos demais indivíduos acerca dos males impostos pelo Estado em decorrência da prática delitiva. O segundo, por sua vez, representa o papel do Estado em criar mecanismos que possibilitem o retorno do agente ao convício social.
No Brasil, atualmente, temos a preponderância do primeiro aspecto somente. A superlotação dos presídios, que reúnem milhares de presos em celas projetas apenas para centenas, apinham indivíduos em condições desumanas. A falta de higiene, de comida e das mais primárias condições de dignidade só não supera a revolta e a ausência de expectativas além-cárcere.  
A repressão é sentida na “pele” pelos agentes infratores, que, via de regra, lutam para não perecer diante de circunstâncias tão desprezíveis. A vingança e a punição, ao contrário do que vem se anunciando nos quatro cantos do país, é real e bastante severa também. Volta-se, pois, para o princípio, com a única diferença de que, agora, “tudo é feito às escondidas”, dentro dos estabelecimentos prisionais.
O projeto de ressocialização, perde-se em meio de tanta barbárie. O Estado não cumpre com seu dever legal de, ao menos, concretizar meios capazes de propiciar a reinclusão social do delinquente, sendo evidente a desproporção com que situa sua atuação na seara penal, isto é, garante êxito apenas no que concerne ao castigo. Este, ainda, é espraiado na sociedade, que de tantas formas, consciente ou inconscientemente, repudia a tentativa de o condenado voltar ao prumo social.  
Efeito diretamente ligado a isso, sem dúvida, é a reincidência. Pelo Código Penal vigente, é reincidente aquele que cometer novo crime até cinco anos após cessarem os efeitos da pena (artigo 63 do Código Penal), gerando aumento de pena em caso de cometimento de novo delito (art. 61, inciso I,do Código Penal)  
Muito embora sejamos tentados em admitir que é válida (constitucional) a aplicação de pena mais severa em relação ao criminoso reincidente, isso é desconstruído por um olhar um pouco menos “míope” e mais reflexivo sobre o assunto.
As razões são, basicamente, duas e são analisadas dentro dos objetivos da penas (punitivo e ressocializador).
O aumento de pena em decorrência da reincidência, previsto no artigo 61, inciso I, do Código Penal, não pode ser legitimado diante do argumento de servir como castigo. Ocorre que, em Direito Penal, ninguém pode ser punido pelo mesmo fato por mais de uma vez (ne bis in idem). Ora, com o aumento operado em decorrência da reincidência, é cristalino que uma parcela da pena aplicada ao crime mais recente se dá por conta da existência daquele mais antigo, que a ocasionou. Inegável, assim, a dupla-punição!
Por outro lado, a reincidência é, em certa medida, a constatação da falha do Estado em seu dever assumido de, quando tirou a liberdade do agente infrator, criar condições capazes de reordená-lo ao convívio social. Não se pode deixar de perceber que a legitimidade do suprimento da liberdade, neste aspecto, ocorre pelo fato de o Estado presumir a insuficiência de possibilidade de o criminoso readequar-se às normas de condutas aceitas pela sociedade. Logo, se assim o deveria fazer e não o faz, não se demonstra adequado o aumento da pena por causa reincidência. Torna-se inescondível, com isso, que, em certa parcela, o Estado também lhe deu causa.
É urgente, portanto, a criação de alternativas à “arte de punir”. Impõe-se que haja imediato abandono da cultura punitivista até então impregnada na sociedade, a fim de combater a violência por vias legítimas. Alterar a realidade dos ergástulos públicos, ao que parece, é apenas o início de alterações mais profundas, a serem efetivadas no seio da sociedade. Os benefícios serão vistos por todos.

Cleiton Luis Chiodi - GEDIS