quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

O plus normativo dos princípios constitucionais: revendo o prazo da prescrição trabalhista

Atualmente, com o surgimento do Constitucionalismo Pós-Guerra, as Constituições (mormente a do Brasil, de 1988) passam a estar recheadas de princípios jurídicos. Desse modo, institucionalizou-se a moral no bojo do Ordenamento Jurídico, representada pelo horizonte de sentido/significado normativo principiológico.
Com isso, está-se diante da necessidade de modificar o modo de compreender e aplicar o Direito, sempre dando espaço à atuação dos princípios. Mas tal deve ocorrer não somente quando inexistir regra expressa sobre o caso a ser regulado, pois, mesmo diante dessa situação, os princípios devem servir como plus (aumento) normativo, provocando uma conformação moral (constitucional) do Direito.
Um bom exemplo do que se pretende explicar é o da prescrição (perda da pretensão –  de exigir via ação judicial o cumprimento) de verba oriunda de relação de emprego.
É verdade que existe regra constitucional (art. 7°, inciso XXIX) que determina a fulminação da pretensão ligada a direito trabalhista em cinco anos, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho. De outro lado, dispõe o artigo 205 do Código Civil (apenas para não recorrer ao vetusto Código Civil) prazo prescricional de dez anos quando não haja fixação de prazo menor.
Não se trata de conflito literal entre ambos dispositivos, vez que, nesse vértice, as redações não deixam margem a qualquer dúvida de que a prescrição seria aquela prevista na Constituição, porque menor, nos exatos termos da lei infraconstitucional.
 Ledo engano! Infere-se aí, sem titubeio qualquer, conflito de ordem principiológica, mais especificamente entre os princípios que prestam alicerces para as mencionadas regras: o princípio da norma mais favorável (corolário do princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais) e o da segurança jurídica.
Ora, se a prescrição tem por escopo assegurar as relações sociais, cujas obrigações não podem perdurar eternamente, tem-se que o período que as compreende não pode ser igual em todas as situações. Pelo menos, acerca da pretensão de direitos de maior alçada (direitos fundamentais), o lapso temporal para seu titular exercer o respectivo direito de ação para fazer valer seu interesse resistido deve ser maior, ou, no mínimo, não pode ser menor.
Em sendo assim, o cumprimento do princípio da máxima efetividade, nesse aspecto, está insatisfatoriamente cumprido pela regra constitucional. Sua densidade de proteção é menor de situações outras, que não envolvem pretensões oriundas de direitos fundamentais (exemplo: pretensão de recebimento do preço de uma compra e venda), de acordo com o prazo prescricional estabelecido no Código Civil.
Consequentemente, se o princípio deve ser cumprido ao máximo, mister se faz que a prescrição das verbas laborais seja, no mínimo, de dez anos, e não segundo o sistema cinco-dois, estatuído na Constituição.
E nem se objete dizendo que, por ser a Lei Maior de hierarquia superior, não pode existir contrariedade por lei de menor escalão.
Primeiro, urge-se denotar que, em se tratando de direitos fundamentais, a Constituição deve assegurar o mínimo, e não o máximo! Em se tratando de direitos fundamentais, a Constituição é o ponto de partida; não pode ser, obviamente, o ponto de chegada. Por isso mesmo, o próprio caput do artigo 7° expressamente contempla cláusula aberta de direitos fundamentais dos trabalhadores (“São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”).
Segundo, porque o princípio invocado também é de índole constitucional (art. 7º caput) e, pelo critério não só da hierarquia, mas, primeiramente, em razão da ordem moral constitucionalizada, que explicitamente confere defesa aos direitos fundamentais, deve ser contemplado.
Trata-se, portanto, de sedimentar a máxima efetividade dos direitos fundamentais. Ora, se antes as leis infraconstitucionais eram empecilhos para a efetividade da Constituição, agora, não pode se conceber que a Constituição seja óbice para a prevalência de tratamento mais favorável no que tange a um direito fundamental, a despeito de estar previsto em lei ordinária.
Além do mais, não haverá qualquer infringência ao princípio da segurança jurídica, vez que se trata de prazo expressamente contemplado em lei (no caso, o Código Civil). Se assim não fosse, estar-se-ia privilegiando condutas que afrontam direitos fundamentais em prol do dogma da segurança jurídica e em detrimento de um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, na roupagem do Estado Democrático de Direito, qual seja: o valor social do trabalho (art. 1°, inciso IV, da Magna Carta de 1988).
O que se pretende afirmar com isso é que toda norma (do caso de decisão) deve estar consentânea com os preceitos principiológicos constitucionais, sob pena de não atingir seu grau ideal (necessário) de normatividade. Os princípios, pois, consigna-se, devem ser concretizados ao máximo! Não ao ponto de excluir uns aos outros, mas, como ensina Konrad Hesse, até o estágio necessário para fomentar sua harmonização ou concordância prática.

Cleiton Luis Chiodi - GEDIS

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

A Tropa e a Elite: “bem- vindo ao sistema”


O sucesso estrondoso dos filmes “Tropa de Elite I” e “Tropa de Elite II” é um fato que permite boas reflexões sobre as instituições públicas brasileiras. O segundo filme, lançado recentemente, repete o sucesso do primeiro: é muito bem feito e revela a complexidade do combate à violência. Trata-se de uma narrativa sem a tradicional divisão entre bons e maus, tão comum no cinema em geral. A ausência de maniqueísmo no enredo favorece a compreensão de que o problema da criminalidade necessita ser enfrentado com políticas públicas que não se baseiem apenas na repressão policial, pois esta pode apenas aumentar a violência.
Para além do contexto da segurança pública carioca, o filme suscita um tema importante: a relação entre grupos políticos e os agentes públicos. Muito embora o filme trate apenas da relação destes grupos com a polícia, é possível tomar a situação aí exposta como um paradigma para todo o funcionamento do Estado.
O ponto de partida para análise é o seguinte: nossa sociedade é oligárquica, ou seja, pequenos grupos se formam com intuito de manter o controle político sobre os demais. Isso acontece em todas as esferas sociais. É comum termos em cada cidade grupos familiares que se alternam no poder, cooptam pessoas, combatem  seus desafetos, criam ao seu redor um espectro de poder que serve para atrair outros tão corruptos, mas, principalmente, para intimidar os que não comungam das suas práticas.
Outra premissa importante é o caráter corporativo do estado brasileiro. Dentro da máquina pública estes grupos disputam posições para que seus membros ocupem o máximo de cargos. Essa competição envolve desde o cargo de direção de escola até ministérios. No filme, há uma cena clássica em que o alto comando da polícia do Rio discute a indicação para determinado cargo. Surge então a seguinte afirmação “sua indicação seria muito boa para nós”. Em seguida, a pergunta “é bom quanto?”
Ocupados os postos mais relevantes, surge um empenho para que o Estado não funcione, pois as estruturas viciadas são extremamente lucrativas a estes grupos. Nos dois filmes fica nítido que tudo que o sistema corrupto de segurança pública menos quer é acabar com a violência, pois ela permite criar vários negócios ilegais extremamente vantajosos aos operadores do sistema. Diante desse fato surge o perigoso argumento: “o Estado brasileiro é incompetente e corrupto por natureza, nunca mudará”. As milícias são formas de privatização a nos lembrar que se o Estado sair de determinada atividade, quem entra é lucro.
Quando o Capitão Nascimento percebe que ele serve ao sistema, ou seja, “está dançando a música tocada” por um grupo que se apropriou do Estado, parte para outro combate. Não mais “manda bala” nos delinquentes favelados, ou naqueles que são apenas favelados, mas opta por “por a boca no mundo” contra aqueles que operam o sistema. Aí ele descobre que o combate republicano é muito mais letal que a “guerra contra as drogas”. 
Talvez este novo herói do cinema nacional, esteja propondo a todos nós perguntarmos em nossos espaços de sociabilidade (cidade, bairros, escolas, igrejas, clubes, associações, partidos, órgãos públicos, estados, União,  etc.) “quem manda aqui Playboy?”    “é nóis!”, “é nóis!”, “é nóis!”.

Samuel Mânica Radaelli - GEDIS

domingo, 5 de dezembro de 2010

A “importação de idéias” como obstáculo à emancipação social

É comum citarmos práticas jurídicas de outros países para relacionar e criticar uma determinada realidade social do nosso país. Essa pesquisa é fundamental para a abrangência do horizonte teórico do observador, pois permite a contextualização de realidades e a comparação destas em vista ao desenvolvimento social. Há, porém, uma característica latente nessa prática de “importação de idéias”, algo que deturpa o objetivo da pesquisa e traz uma carga ideológica dominadora como instrumento de justificação lógica das injustiças reais.
Quando nos referimos à experiência de outros países em relação a questões polêmicas da atualidade – tal qual o aborto, a pena de morte ou a segurança pública, por exemplo – devemos estar atentos não apenas no contexto em que o referencial está inserido, mas também na história que construiu sua razão de ser. Tal pressuposto é fundamental para uma análise isenta de visões superficiais que não se encaixam à nossa realidade. Cada país, assim como cada pessoa, possui uma história que influencia diretamente seu ser. Essa história não pode ser separada do “ser”, pelo contrário, deve ser pesada junto ao “ser” quando construímos conceitos de justiça – que, por sua vez, fundamentarão o direito.
Grande parte das referências adotadas são os países desenvolvidos. Utilizam-se das práticas de alguns desses países – em especial a existência da pena de morte e das penas rígidas – para contestar a inexistência desses institutos em nosso país. Todavia, frequentemente esquece-se de observar o passado desses países, sua história, sua forma de organização social, fatores que influenciam diretamente no surgimento, desenvolvimento e eficácia de seus institutos jurídicos. A experiência do “outro” não pode ser simplesmente implantada no “eu”. De regra, os resultados dessa “importação de experiências” não funcionam da mesma forma que observamos no outro, de quem se copiou a idéia. Se pontuarmos a questão da pena de morte, observaremos que não apenas alguns países desenvolvidos a adotam, mas também países subdesenvolvidos, com realidades conturbadas e violentas, legitimam o assassinato de um ser humano pelo Estado.
O que se quer dizer é que a simples implantação da pena de morte no Brasil, além de ser juridicamente impossível devido ao fato de ser vedada pela Constituição Federal de 1988, seria completamente ineficaz, pois não resolveria o problema da segurança pública (assim como não o resolveu nos demais países que adotam essa medida). Essa é a visão que se deve adotar em relação a outras questões pertinentes, como a redução da maioridade penal.
A emancipação e libertação de uma sociedade passa pelo estágio onde ela começa a observar seu próprio “horizonte ontológico” – sua própria realidade e contextos históricos e sociais – como fundamento legítimo de suas idéias. Assim ruma-se à libertação teórica e material em relação ao imperialismo internacional que se observa em nossa sociedade globalizada e excludente. Dessa forma, encontraremos melhores condições para construirmos soluções mais adequadas e eficazes em relação aos problemas de nossa sociedade.

Luís Henrique Kohl Camargo - GEDIS