quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Interesses econômicos boicotam a capacitação necessária às audiências públicas do plano diretor

"A maior parte da população, como não foi capacitada,
não sabe que o Estatuto da cidade, no seu art. 5º,
prevê o parcelamento, edificação ou utilização compulsória
para vazios urbanos, podendo ser executado em
um ano após a notificação."

No final do mês de Setembro de 2011 presenciamos audiências públicas do Plano Diretor, exigidas pelo Estatuto da Cidade (lei 10257/2001 art. 40 § 4o), para elaboração ou revisão do mesmo. Assim, desde que obrigatória, a realização da audiência pública é condição de validade do processo administrativo em que está inserida. Caso não implementada, ao arrepio da determinação legal, o processo estará viciado e a decisão administrativa correspondente será inválida (Oliveira, G.H.J - Revista de Direito Administrativo v. 209, p. 153-167, jul./set. 97).
A resolução 25/2005 do Ministério das cidades no seu Art.7º diz “No processo participativo de elaboração do plano diretor a promoção das ações de sensibilização, mobilização e capacitação, devem ser voltadas, preferencialmente, para as lideranças comunitárias, movimentos sociais, profissionais especializados, entre outros atores sociais”.
Como opinar sobre um assunto que tem forte viés técnico sobre o qual não se conhece, do qual se tem, quando muito, conhecimento do que poderia afetar seu lar, como uma serralheria ao lado de sua moradia? Por isso a resolução do Ministério das Cidades traz a necessidade da sensibilização e capacitação, para que os leigos (não técnicos, população em geral) possam fazer uma leitura da cidade e município e tenham conhecimento da importância das decisões tomadas não só para o entorno imediato de onde vivem (proximidades de sua moradia), mas para todo município. Capacitar as lideranças e moradores para que consigam perceber o cenário futuro ligado a cada proposta e assim poderem escolher com conhecimento de causa.
Os moradores dos Bairros e comunidades do interior de Xanxerê devem lembrar da mobilização para convidar a população em geral a discutir a elaboração do documento “Agenda 21” do município; até motos com som foram colocadas para convidar a população. E os mesmos temas foram discutidos em cada um dos 5 setores na área urbana e 4 setores no interior, porque para o processo era importante a participação da comunidade.  
Ao contrário, para o processo do Plano Diretor, parece que a participação não era importante, porque além da falta de capacitação para participação, o debate não foi proporcionado. Participantes das audiências questionaram membros do Fórum da Agenda 21 sobre a validade das audiências públicas do Plano Diretor, já que não houve debate e sim exposição, poucas propostas foram questionadas, o que não propicia a visão do outro lado. Comentaram que parecia uma consulta pró-forma somente para validar o que os grupos com interesses econômicos ou difusos próprios estavam defendendo (antes da intervenção do MP).

Durante as audiências não se ouviu nenhuma liderança falar em IPTU progressivo, mesmo que sendo visível os vazios urbanos e terrenos com infraestutura especulando há décadas na área urbana de Xanxerê. A maior parte da população, como não foi capacitada, não sabe que o Estatuto da cidade, no seu art. 5º, prevê o parcelamento, edificação ou utilização compulsória para vazios urbanos, podendo ser executado em um ano após a notificação.
Não se ouviu falar em combate à segregação espacial, como acontece com o Bairro Pinheiros, através da definição de programas habitacionais de interesse social em áreas de vazios urbanos entre bairros consolidados. É mais fácil para quem tem o “carro do ano, a casa do ano” e pensa só no seu grupo, pedir a expansão do perímetro urbano sem limite, porque daí o seu João lá do Bairro Monte Castelo, sem pavimentação na frente de casa, com o imposto pago no litro de leite terá que pagar o transporte para trazer as crianças à escola e para as pessoas terem acesso à saúde ou terá que pagar com imposto para construir uma nova unidade de saúde lá no loteamento a 2 km da zona urbana, que daria aproximadamente 5km do centro, enquanto os terrenos e as chácaras a 2km do centro ficam especulando. Chapecó há décadas instituiu IPTU progressivo, cobrou bem e fez muitos terrenos de quem tem o carro do ano ou a casa do ano serem vendidos para construção imediata.

Durante a audiência pública ninguém esclareceu que o IPTU que seu João paga terá que pagar também a manutenção da estrada ou a pavimentação desta para chegar ao loteamento que fica a 5km do centro. Terá que pagar também pelo recolhimento de lixo que lá vai ser feito e, como nos 2 km que ficam no meio do caminho não tem moradores, ninguém paga este trajeto, logo ficará mais caro para o seu João a coleta de lixo, já o quilometro rodado, para recolher o lixo, é dividido por todos. Mas o azar é dele, que não tem o “carro do ano ou a moradia na moda”, não se incomoda com isso e nem reclama dos direitos mínimos que não tem garantido. E o azar é dele duas vezes porque não foi discutir o Plano Diretor, que ele nem sabia o que era, porque não fizeram a capacitação constante na resolução 25 do Ministério das Cidades.
Por que quem tem o “carro do ano ou a casa do ano” vai querer capacitar para dividir o poder de decisão? É mais fácil colocar ao lado da casa do seu João uma serralheria, porque no lado da casa de quem decide já está consolidado e, se não estiver, e colocarem uma serralheria que lhe incomode, que pague um advogado, acione o Ministério Público e feche, como aconteceu com o “Luck Strike Beer´s”, no endereço antigo; mas tem que ter dinheiro para pagar o advogado.

Há um discurso propagado sem medir as consequências, normalmente para justificar atividades em locais inadequados, que em Xanxerê nunca dá para fazer nada. Tecnicamente, existe a diferença entre o que já existe e deve ser respeitado, seja uma indústria, um sino, um relógio. Já estava lá e você foi se instalar/morar perto porque quis. Outra coisa é você colocar no meio de casas de moradia uma casa noturna que não tem espaço suficiente para não incomodar a vizinhança existente.
Se a atividade já existia e foi se modificando terá que encontrar alternativas para minimizar os incômodos. Criar o problema é o que o Plano Diretor (o planejamento da cidade e do município) não deve fazer, porque é uma incongruência planejar para gerar incômodo. A população deveria ter sido capacitada para perceber isso antes das audiências públicas que pró-forma pretendem permitir qualquer atividade em qualquer local em nome do pseudo crescimento econômico sem planejamento.
Economicamente é muito pior (para a imagem do município) incentivar ou deixar alguém investir para depois ter que fechar devido a atividade por ser incompatível com o local, mas ai quem tem o “carro do ano ou a residência com as últimas tecnologias do momento ” fica bem com todo mundo; a culpa foi do vizinho que reclamou. Deixar fazer tudo e não planejar é uma forma de não se indispor e deixar os problemas para o futuro contornar.
O que alguns “com um olho” questionaram/ reclamaram nas audiências pública foi o “desplanejamento” apregoado por algumas propostas de quem tem e quer manter o carro do ano ou a casa do ano e, lógico, cooptaram, para que fossem às audiências, seus empregados, clientes, apoiadores e simpatizantes, com a clara intenção de que não houvesse oportunidade para contestar.
Visando interesses próprios, diretos, um grupo apregoava a verticalização e outro grupo a expansão do perímetro urbano e até quem é técnico na área de planejamento urbano não sabia o que pensar! Vislumbrava-se uma proposta de expandir o perímetro de Faxinal dos Guedes (sobre a Bacia do Ditinho) até Xaxim para o seu João do Bairro Monte Castelo ficar tomando esgoto tratado do Ditinho, pagar o encarecimento da estrutura da cidade e o outro grupo construir prédios altos no meio de edificações baixas onde sobraram terrenos entre casa recém feitas. Para quem só pensa em ganhos financeiros expandir sem critério ou colocar um prédio alto, de 10 ou 20 pavimentos, que fará sombra sobre quem já construiu e não ficou especulando, é planejar o futuro próprio. A construção no terreno de quem ficou especulando fará sombra sobre as casas já construídas e que ainda teriam uma vida útil de décadas (podem não ter devido ao que construírem nas proximidades). Isso não é planejamento, e duvido a faculdade de arquitetura e urbanismo que apregoe esta prática que se chama incentivo à especulação imobiliária. “Planejamento é o processo de preparar um conjunto de decisões para ação futura, dirigida à consecução de objetivos através dos meios preferidos.” (DROR, 1973, p. 323).
Existe a solução técnica para otimizar a infraestrutura chamada densificação, que obviamente nenhum técnico expôs nas audiências públicas;  deve obedecer  índices tecnicamente estudados e testados através de modelagem(maquetes eletrônicas) para determinada área ou Bairro visando atingir o objetivo proposto. Paris adotou a densificação com índice de aproveitamento[1] máximo de 04; permite construir quatro vezes a área do terreno - índice considerado saudável e até permitido aumento de altura se tiver recuos tecnicamente estudados para não produzir sombra de uma construção sobre a outra. Dois prédios de cinco andares geram mais emprego que um de dez andares: esqueceram de dizer isso, porque tem especuladores que já compraram terreno no meio de casas para construir prédios de dez andares ou mais. Os interessados nos prédios altos justificaram que em Xanxerê o terreno é caro (mais caro do que em Paris) assim aqui precisa índice 07 na verdade para poder lucrar mais. Para que técnica, participação, planejamento, estudo, pensar em futuras gerações ou qualidade de vida do entorno dos prédios altos se os especuladores querem viver mais 40 anos com o que é mais importante para a cultura do consumo, como “o carro do ano e a moradia de luxo”?
A profissão de engenheiro e arquiteto tem um código de ética que no seu artigo 6º diz: “O objetivo das profissões e a ação dos profissionais voltam-se para o bem-estar e o desenvolvimento do homem, em seu ambiente e em suas diversas dimensões: como indivíduo, família, comunidade, sociedade, nação e humanidade; nas suas raízes históricas, nas gerações atual e futura”.
Mas lei e código de ética no Brasil parecem ser para quem não tem poder econômico ou político. O código de ética de engenheiros e arquitetos diz no seu art. 8º que a profissão de engenheiro e arquiteto é bem social da humanidade e o profissional é o agente capaz de exercê-la, tendo como objetivos maiores a preservação e o desenvolvimento harmônico do ser humano, de seu ambiente e de seus valores. Em terra de cego quem tem um olho é rei: capacitar é propiciar um olho e assim pode-se questionar o trono de quem atualmente é rei.

P.S.: “A legislação urbanística também influi no preço da terra.(…) A propriedade fundiária e imobiliária constitui um objeto de valorização. Fortunas podem ser amealhadas sem que, necessariamente, haja envolvimento de um capital produtivo no terreno objeto de valorização, bastando que se aumente os índices construtivos da área (MARICATO, 2009, p.41).”





Rosângela Favero – GEDIS



[1] Índice de Aproveitamento é um número que, multiplicado pela área do lote, indica a quantidade máxima de metros quadrados que podem ser construídos em um lote, somando-se as áreas de todos os pavimentos.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A Globalização e as Promessas da (Pós?)modernidade

–Olhe-a bem. Já não a verá nunca mais. (...) Fixei-me no lugar e fechei o volume. Imediatamente o abri. Em vão busquei a figura da âncora, folha por folha.
(Jorge Luis Borges, O livro de areia)
 
À medida em que o fenômeno da globalização se intensifica e se expande, tentando impor modelos e referenciais em todos os cantos do mundo, observa-se uma tendência à valorização do micro, das culturas regionais, e a aldeia global, termo cunhado por simpatizantes do processo, mostrou-se ao mesmo tempo, capaz de resistir e promover a valorização de culturas que há tempos se pretenderam extintas, como as culturas nativas, no caso do Brasil. O fenômeno da globalização provocou então, uma espécie de efeito contrário, e o mercado acabou se curvando ao se adaptar a gostos e preferências regionais.
As últimas décadas do século XX vivenciaram um reavivamento das culturas locais. Por todos os lados grupos, povos, etnias, movimentos, antes silenciados, ou que por muito tempo sofreram tentativas no sentido de fazer com que silenciassem, procuram levantar a voz, fazer-se perceber em suas singularidades e particularidades, num dinâmico movimento de luta por espaço, valorização e respeito. O tempo agora é o do diferente, que insiste e orgulha-se em reconhecer-se como tal. Conceitos como verdade são rechaçados e cedem lugar aos pluralismos, às múltiplas verdades. O racionalismo cede espaço ao misticismo, à religiosidade.
Para muitos pensadores, a impossibilidade de planejamento e controle do futuro, evidencia uma realidade onde as diferenças e singularidades não desaparecem, mas permanecem e insistem em sobreviver. A uniformização de crenças, costumes, gostos e gestos é inviável, indesejável e desnecessária e a maior prova foram os regimes totalitários (fascismo, nazismo, regime socialista soviético) que acabaram fracassando na tentativa de moldar comportamentos e eliminar o diferente.
A essa nova percepção da realidade, convencionou-se chamar de pós-modernidade. O uso do termo é polêmico.
Seus adeptos a definem enquanto uma espécie de etapa superior da modernidade, na qual a humanidade poderia atingir um grau de organização e desenvolvimento aceitável, onde o avanço das forças sociais e políticas, bem como da técnica, permitiria ao indivíduo libertar-se do domínio de entidades ou poderes que lhe ditam normas, e viver de forma muito mais autônoma e livre suas próprias escolhas. Os impérios políticos, religiosos ou culturais estariam praticamente extintos.
Para o sociólogo francês, Alain Touraine, o paradigma emergente funda-se na cultura. Não mais na política da organização de nações dirigidas por seus reis como foi o pensamento dominante até o século XVIII, nem na economia, como se acreditou depois. Touraine decreta o fim do social, das entidades que representam o indivíduo. A luta dos proletários, por exemplo, tornou-se quase que impraticável, uma vez que o patrão, que concentra o poder, encontra-se diluído juntamente com a empresa, que pode produzir suas mercadorias em várias partes do mundo, sem contar com um local fixo, e podendo deslocar-se com muita facilidade.
A luta por direitos políticos, depois substituída por direitos sociais, agora é mais uma vez substituída pela onda dos direitos culturais. Os direitos culturais giram em torno da possibilidade que o indivíduo tem de fazer escolhas antes impensáveis, como crenças, opções sexuais... São direitos que se expressam no campo da cultura, mas que se aplicam numa dimensão individual.
O indivíduo libertou-se de sindicatos, partidos, igrejas ou outras instituições que determinam seu modo de pensar e agir, e a possibilidade de optar de forma consciente em um mundo marcado pelo acesso à informação, pode torná-lo sujeito. Este é o grande desafio. Sujeito na medida em que suas próprias determinações, de caráter pessoal, influenciam a coletividade. Consumir ou não determinado produto pode afetar populações inteiras, próximas ou distantes.
Os críticos ao uso do termo pós-modernidade partem do pressuposto básico de que a modernidade ainda não cumpriu suas principais promessas fundadas no Iluminismo e seus ideais de universalidade, individualidade e autonomia. Direitos humanos essenciais ainda não se fizeram estender ao conjunto da população mundial. O número de miseráveis e desassistidos de acesso à educação e avanços da medicina, por exemplo, ainda é imenso e assombroso, fazendo sombra às ilhas de abundância espalhadas aqui e ali, especialmente nos países do norte.
As benécias do capitalismo, seus confortos e facilidades decorrentes do avanço tecnológico ainda permanecem restritas a uma parcela minoritária da população mundial. Ditaduras ainda coexistem com democracias e estas últimas apresentam fragilidades de toda ordem, sendo a corrupção o elemento mais alarmante e entravador do processo de promoção dos indivíduos. Países desenvolvidos e de maior estabilidade econômica enfrentam o drama de milhões de migrantes que buscam seu lugar ao sol.
Toda essa realidade, quando confrontada com os padrões sonhados e apregoados pelo Iluminismo, desnuda-se e evidencia que, se algum avanço houve, não beneficiou a ampla maioria. Afinal, o europeu ou americano médio contém em si a mesma humanidade que o africano, latino ou asiático que vive com menos de um dólar por dia.
Como falar então, em pós-modernidade, se a modernidade não se completou, não atingiu os padrões almejados?
O filósofo Sérgio Paulo Rouanet está entre os que acreditam que, embora tenhamos presenciado o desencanto em relação à ciência e à política, e a construção de um mundo em que se assegurem e garantam aos indivíduos os meios de conquista da liberdade e felicidade esteve ameaçada e o último século tenha terminado com certo pessimismo, os conceitos iluministas de universalidade, individualidade e autonomia precisam urgentemente ser retomados e reconstruídos.

Délcio Marquetti - GEDIS


Referências
ROUANET, Paulo Sérgio. Mal-estar na modernidade: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

TOURAINE, Alain. Um novo paradigma: para compreender o mundo de hoje. Petrópolis: Vozes, 2006.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Os critérios ideológicos de seleção e a meritocracia

Maria Helena Chauí, em seu livro “O que é ideologia”, faz um breve panorama acerca desse termo tão utilizado (e de forma tão equivocada, diga-se de passagem) em uma série de discursos de variadas plataformas políticas, econômicas e sociais. Podemos definir ideologia – satisfatoriamente, para a finalidade deste breve texto – como um conjunto de ideias produzido por uma sociedade com a finalidade de justificar racionalmente suas práticas e costumes, ou seja, a realidade por ela criada. A produção de ideologias é elemento intrínseco a qualquer sociedade, mesmo porque possibilita a própria existência desta. Ora, a sociedade é formada por seres humanos que seguem noções de justiça e moralidade para fundamentar suas ações, as quais decidirão os rumos (ou mesmo a extinção) de um grupo social. Em suma, “ideologia” é o elemento retórico que gere intelectualmente o produto social e seus modos de produção.
Não raro encontramos tal termo atrelado a uma carga pejorativa. De fato, há um esforço para ligar o conceito de “ideologia” a uma ferramenta discursiva de cunho esquerdista, progressista ou comunista. Não é exigido muito de nosso intelecto para notarmos a leviandade de tal equiparação: o emprego da ideia de “ideologia” é essencial ao estudo da sociedade e, por essa razão, pode designar tanto discursos de “direita” quanto de “esquerda” (para uma melhor definição sobre no que consiste, contemporaneamente, esses termos, vide Norberto Bobbio: “Direita e Esquerda”).
O que se quer abordar com essa introdução é a questão dos critérios ideológicos de seleção utilizados pelos empregadores na atualidade e sua relação com a ideia de “meritocracia”. Uma pesquisa de campo realizada por Marcia Hespanhol Bernardo, que embasou o conteúdo do livro “Trabalho duro, discurso flexível”, revela um critério interessante que vem sendo veladamente trabalhado pelos administradores de empresa quando da contratação de funcionários: ao invés de pautarem-se pelo “saber-fazer” (experiência, capacidade de realizar tarefas etc. – fatores levados em conta no passado), as empresas buscam, hoje, empregados que se submetam mais facilmente aos objetivos e à filosofia da empresa (“saber-ser”). Essas pessoas serão cooptadas pelas promessas dos dirigentes e, assim, dedicar-se-ão mais ao trabalho sem a necessidade de uma estrutura hierárquica rígida e pesada para manter o funcionamento do sistema (o que, além do mais, custa caro ao empreendedor).
Um fato interessante na pesquisa citada é a preferência pelas empresas pesquisadas em contratar jovens que não possuíam nenhuma experiência empregatícia. Também surpreende a rejeição destas empresas (do ramo metalúrgico) em contratar empregados que já haviam trabalhado no ramo, em outras empresas. À primeira vista o discurso utilizado pelas empresas para justificar tal expediente é o de que ela “é preocupada com a questão social, visando dar emprego aos mais jovens e inexperientes”. A autora, porém, vai mais fundo na questão e descobre que, na realidade, o que a empresa buscava era a contratação pessoas que não haviam tido contato com qualquer sindicato ou organização análoga (relativamente forte no ramo metalúrgico). O mesmo raciocínio se aplica à questão da faixa etária: preferir jovens, na realidade, é uma estratégia para contratar indivíduos que são, em geral, mais facilmente seduzidos pela retórica da “empresa-segunda-casa” e que dificilmente tomarão uma postura crítica perante as decisões de seus superiores.
"Um fato interessante na pesquisa citada
é a preferência pelas empresas pesquisadas
em contratar jovens que não possuíam
nenhuma experiência empregatícia.
Também surpreende a rejeição destas
empresas (do ramo metalúrgico) em
contratar empregados que já haviam
trabalhado no ramo, em outras empresas.
Dessa forma, o que se verificou foi que os critérios ideológicos sobrepõem-se aos critérios técnicos no momento da seleção. Preterir sujeitos críticos, politicamente ativos e contestadores nada mais é do que deixar de lado o “mérito” pela obra da pessoa para pautar-se em questões ideológicas que mais se relacionam às políticas de manutenção do funcionamento do sistema do que ao sopesamento entre as capacidades possuídas pelo candidato e as exigências do cargo pretendido.
Nota-se que o sentido de “competência” vem se transformando, diminuindo gradativamente o valor do “saber-fazer” (conhecimento, capacidade de produzir etc.) em detrimento do “saber-ser” (cooptado, submisso e sem subjetividade fora dos objetivos da empresa). Essa afirmação desmantela o discurso da “meritocracia”, posto que, na realidade, as oportunidades ofertadas ao sujeito distanciam-se do seu campo de liberdade de escolha de ação e aproximam-se, por sua vez, a uma forma de pensar na qual “quanto mais submisso for mais chances o sujeito dominado terá”.
É necessário que compreendamos essas estratégias retóricas para percebermos que também há “ideologia” do “lado de cima do muro”, e que ela vem sendo utilizada para submeter cada vez mais a população trabalhadora aos interesses do capital. Visto isso, estaremos mais próximos a uma postura crítica de questionamento, que poderá, quiçá, lançar as bases para uma sociedade mais harmoniosa e igualitária.

Luís Henrique Kohl Camargo - GEDIS

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

DA SÉRIE "TRABALHO AOS DOMINGOS": Trabalhar aos domingo é legal?

Na acepção popular, “legal” significa algo bom ou divertido. Em textos anteriores, discutimos – sob diversos enfoques - se o trabalho no domingo possui a condição de propiciar satisfação ou realização pessoal, principalmente a quem o faz por necessidade ou imposição (empregados).

E sob o aspecto jurídico? A exigência de trabalho aos domingos é lícita?

A Constituição brasileira assegura aos empregados (inclusive domésticos) o direito de descansar em uma oportunidade na semana, e a receber seus salários como se trabalhando estivessem. Indica, ainda, que esse descanso deve coincidir preferencialmente com os domingos.

O que o constituinte quis dizer com “preferencialmente” aos domingos?  Caberia ao empregador optar pela concessão de folga neste ou em qualquer outro dia da semana ou apenas excepcionalmente poderia ele substituir o domingo por outro dia de folga?

Na verdade, a redação não expressa vontade alguma (como se possível fosse extrair uma “vontade” do legislador). A criação de um enunciado dúbio foi a maneira encontrada pelos congressistas para resolver o imbróglio entre o grupo que representava as tendências mais conservadoras da sociedade (também conhecido como “Centrão”) e a ala progressista (integrada por sindicalistas e eleitos vinculados a outros movimentos sociais). Aqueles queriam que constasse da Carta apenas o direito ao descanso semanal remunerado (sem indicação de dia para tanto) e, estes, postulavam a expressa indicação do domingo como dia de descanso.

Cabe ao intérprete, agora, atribuir sentido ao texto. E, a meu sentir, a melhor maneira de fazê-lo é partindo do pressuposto que a Constituição de 1988 representa basicamente rompimento e mudança. A Carta de 1988 inegavelmente rompe com a tradição liberal do regime constitucional anterior e inaugura uma nova ordem no País, lastrada em fundamentos diversos daqueles de outrora.

A principal característica desse novo modelo é a inversão da ordem de valores que regem a ordem econômica. Antes de 1988 - até por interpretação gramatical – predominava a iniciativa individual (livre iniciativa econômica) e, por isso, o trabalho devia moldar-se a esse modelo de organização. A nova ordem opta claramente pela valorização do trabalho e, em virtude disso, o interesse econômico é que agora deve se adaptar aos princípios e regras de valorização da pessoa que trabalha. Aliás, interpretação nesse sentido é a que melhor atende a outras opções constitucionais (como direito ao lazer e ao uso do espaço urbano e valorização da família).

Claro que algumas atividades exigem a prestação de serviços em todos os dias da semana, inclusive aos domingos (serviços de saúde, por exemplo). Para tais situações (que são excepcionais e assim devem ser tratadas), impõe-se a instituição de uma escala (com folgas coincidentes com os domingos em algumas oportunidades) e a admissibilidade do trabalho de empregados em tais dias (a legislação não permite em hipótese alguma a substituição do direito ao descanso semanal pelo pagamento em dinheiro, ainda que de forma dobrada).

Entretanto, a eterna tentativa de viabilizar o trabalho aos domingos em qualquer atividade, principalmente no comércio, é inconstitucional. Logo, autorizações do legislador ordinário para a utilização de empregados aos domingos em atividades que não necessariamente precisem funcionar em tais dias, assim devem ser consideradas. Exemplo dessa inconstitucionalidade está na Lei 10.101/2000 que, em seu artigo 6º, autoriza o comércio em geral a utilizar os serviços de empregados aos domingos (desde que com folga coincidente com estes dias a cada três semanas). Não vislumbro aqui necessidade imperiosa de que estes serviços funcionem em dias originalmente destinados ao descanso e lazer, tampouco interesse público relevante para que isso aconteça.

Em tempos onde a evolução tecnológica permite que a produtividade das empresas mantenha-se no mesmo nível, mesmo reduzida consideravelmente a jornada de trabalho, não há razão plausível para a admissibilidade do trabalho aos domingos no comércio em geral, situação que se mantém apenas em virtude da prevalência do interesse econômico, da inércia judicial e da coação imposta pela sociedade do consumo.


Régis Trindade de Mello - GEDIS

sábado, 29 de outubro de 2011

DA SÉRIE "TRABALHO AOS DOMINGOS": “Abençoou Deus o sétimo dia, e o santificou; porque nele descansou de toda a sua obra que criara e fizera” (Gênesis, 2.2-3)



Quando a questão é religião, cautela e brandura são imprescindíveis. A uma porque todas as crenças são defensáveis e, a duas, porque cada indivíduo tanto tem sua liberdade de crença quanto de manifestação constitucionalmente protegidas. Todavia, a questão que aqui será abordada é extremamente mais melindrosa.
Antes de qualquer coisa, é preciso considerar a importância da religião (seja qual for) para a sociedade. Histórica, cultural e economicamente as comunidades, desde muito antes do surgimento do direito, se pautavam pela superioridade das normas “estabelecidas” pelas entidades que cultuavam.
Logicamente com a evolução da humanidade o direito veio aprimorar e equilibrar as relações interpessoais, já que a religião surge, primordialmente, com o intuito de intimidar o indivíduo e, diante das inúmeras condições revolucionárias e intelectuais, o homem passou a questionar tais determinações. A positivação de regras logo se faria necessária a fim de controlar as comunidades.
Ainda nos dias atuais a sociedade muito se pauta nos ensinamentos religiosos. Há, portanto, uma cooperação entre o Direito e as entidades religiosas com a finalidade de apaziguar a vivência em comunidade, que é, espontaneamente, circundada pelos embates, até porque, sendo a população infindavelmente crescente, tornam-se, os conflitos de interesses, absolutamente naturais.
Inegável (diante dos dados levantados pelo último senso) que parte maçante da população brasileira é cristã, se pautando, portanto, pelos
ensinamentos bíblicos. Desta feita, parte-se do princípio de que seguem, na ampla maioria, os legados escritos pelo apóstolo do Cristo.
Segundo o ensinamento de Gênesis 2.2-3, no sétimo dia, Deus disse: "Ora, havendo Deus completado no dia sétimo a obra que tinha feito, descansou nesse dia de toda a obra que fizera. Abençoou Deus o sétimo dia, e o santificou; porque nele descansou de toda a sua obra que criara e fizera".
Não há qualquer escopo em entrar no mérito de qual é o sétimo dia (já que apresenta divergência entre as diferentes religiões), primeiro porque a questão tem cunho histórico, religioso e cultural, e segundo porque o que se pretende ressaltar é que desde os mais remotos tempos o homem teve um dia destinado ao ócio e a adoração, seguindo os parâmetros de Deus, que o fez a sua imagem e semelhança.
Todavia, parte da sociedade, movida por um crescimento e interesse pelo desenvolvimento econômico desenfreado, passou a deixar de lado a prática religiosa e, consequentemente, outra parte da sociedade foi violentada a se adaptar a nova necessidade imposta. Explico: aos trabalhadores são cominadas condições sub-humanas de ofício e exageradamente excessivas, como o labor aos domingos - que tradicionalmente era um dia para ser “guardado” -, diante dessa aflição por desenvolvimento e de falsas premissas criadas pela coletividade.
É defensável que a nossa Carta Constituinte não obriga que o repouso semanal seja aos domingos, especificamente. No entanto, é igualmente defensável que o trabalhador, diante da sua liberdade de crença, tem um direito atravancado a partir do momento de que para de alimentar sua espiritualidade.
E muito pior do que a simples obstrução do exercício de um direito seria a negação absoluta da importância da religião para sociedade. Claramente a convivência humana se tornaria caótica, sob a perspectiva de colaboração que as normas espirituais exercem de forma conjunta às coercitivas impostas pelo Estado.
Dos ensinamentos de John Locke subtrai-se que a finalidade do direito “não é abolir nem restringir, mas preservar e ampliar a liberdade”. Não há o interesse econômico de ser superior às praticas religiosas, já que são visivelmente mantedoras do equilíbrio da humanidade.
Pautem-se em fatos e definições fictícias/abstratas ou não, são as práticas religiosas reverenciadas e norteadoras da vida humana desde os primórdios da humanidade e dificultar (pra não dizer impossibilitar) o seu exercício seria um retrocesso tamanho tendente a dar cabo à harmonia da vida humana.

Mayra Grezel - GEDIS