quarta-feira, 28 de setembro de 2011

DA SÉRIE "TRABALHO AOS DOMINGOS": O lucro como único fundamento, em busca das motivações do trabalho em fins de semana

“a escravidão será por muito tempo a característica
 principal do Brasil” Joaquim Nabuco


 
"Você deve notar que não tem mais tutu
e dizer que não está preocupado
Você deve lutar pela xepa da feira
e dizer que está recompensado
Você deve estampar sempre um ar de alegria
e dizer: tudo tem melhorado
Você deve rezar pelo bem do patrão
e esquecer que está desempregado
Você merece, você merece
Tudo vai bem, tudo legal
Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé
Se acabarem com o teu Carnaval?
Você deve aprender a baixar a cabeça
E dizer sempre: "Muito obrigado"
São palavras que ainda te deixam dizer
Por ser homem bem disciplinado
Deve pois só fazer pelo bem da Nação
Tudo aquilo que for ordenado
Pra ganhar um Fuscão no juízo final
E diploma de bem comportado...."
(comportamento geral , Gonzaguinha)


Todos os agrupamentos humanos assim se organizam não só por razões naturais ou para dar conta de necessidades materiais. As civilizações em geral possuem motivações axiológicas, valores coletivos, cuja preservação justifica a formação de uma sociedade, servindo ao mesmo tempo para defini-la. O processo de caracterização das sociedades é fruto de um processo de auto-afirmação, o qual é fruto de valores tidos como fundamentais e até sagrados em algumas experiências societais.

Partindo desta afirmação logo vem pergunta: o que define nossa sociedade? Qual(is) sua(s) característica (s) predominante(s)? Estas perguntas valem tanto no âmbito local quanto regional, e mesmo em relação à Nação.
Em busca desta resposta, partimos atrás dos símbolos e de justificativas que nossa sociedade apresenta para justificar-se. Max Weber preconiza que a sociedade moderna seria orientada por aquilo que ele chama de razão instrumental, ou seja, a forma de racionalidade orientada pelo cálculo que visa o maior resultado com o menor custo. Ao que parece, Weber tinha razão: em nossa sociedade a quase totalidade das opções, tanto individuais como políticas, são feitas levando em conta o ganho que elas representam. Uma medida se justifica perante a maioria quando for a que gera mais ganhos econômicos com menos investimento.
Está formula simples orienta e justifica nossas ações, até mesmo as mais subjetivas. Dostoievski, no conto “O Crocodilo”, revela o caso de um casal que vai ao circo para ver um crocodilo gigantesco. Devido a sua curiosidade, o esposo acaba sendo engolido pelo animal. Quando percebe que ele se encontra vivo dentro do réptil, sua mulher chama o proprietário do circo e exige que se abra o animal para retirá-lo. O proprietário diz que não pode fazer isso, tendo em vista que a atração gera lucro diário, que não poderia ser compensado pelo engolido e sua família, e afirma “em primeiro lugar o princípio econômico”. Quando a esposa começa a refutar, ouve-se uma voz vinda de dentro do crocodilo repetindo “em primeiro lugar o princípio econômico” e o homem - de dentro do animal - convence a mulher a aceitar a proposta do dono do circo, desde que ele (o engolido) também receba um valor para permanecer lá dentro, pois afinal isso atrairia mais público.
No caso do texto literário, o sujeito teria dinheiro que nunca poderia gastar, mas isso não importa, pois o acumulo é um fim em si mesmo!
Feito este parêntese literário, volta-se a questão do trabalho aos domingos por conta da abertura do comércio nestes dias, e pergunta-se: o que justifica esta medida? A resposta nos foi antecipada por Max Weber: se obteriam melhores resultados econômicos, com menores custos. Aliás, os custos seriam apenas subjetivos e integralmente suportados pelo comerciário.
Existe outro argumento muito forte e oriundo do primeiro: a abertura do comércio aos domingos gera empregos. Este argumento, aliás, é constante na retórica capitalista contemporânea e criou até o chavão mentiroso de que “é melhor qualquer trabalho do que nenhum”. Este ditado, que se impregnou no imaginário da maioria das pessoas, é fruto de algum excremento teórico de alguém que provavelmente nunca trabalhou, ignorando que emprego se diferencia de servidão, cabendo lembrar que até 13 de maio 1888 não havia nenhum negro desempregado!
Embora se destine outro dia da semana para o repouso do trabalhador, na prática isso não tem um efeito compensatório, pois ele folgará enquanto todos em casa e na sociedade de um modo geral estão envolvidos com obrigações cotidianas, até porque a sociedade sedimentou o domingo como um dia de lazer e fora dele é difícil que o descanso semanal efetive seus propósitos. Por conta disso, tem–se a absorção do sujeito pelo trabalho, o que é um fator que sabidamente brutaliza e reduz as possibilidades de ascensão do trabalhador, uma vez que o fim de semana é único espaço de autonomia dos empregados, já que a maioria espera ansiosamente por tais dias, pois somente nestes encontram a liberdade para realizarem as atividades que desejam. Ou seja, deixam a esfera da heterorregulação, na qual o patrão determina as suas atividades, e passam à esfera da autorregulação, decidindo eles próprios sobre o uso do tempo (Rybczynski, 2000)
 Implicitamente ao trabalhador se repete insistentemente esta mensagem: “trabalhem, trabalhem dia e noite. Trabalhando, fazem crescer sua própria miséria e sua miséria nos dispensa de impor-lhes o trabalho pela força da lei [...] Trabalhem, trabalhem, proletários, para aumentar a riqueza social e suas misérias individuais, trabalhem, trabalhem para que, ficando mais pobres, tenham mais razões para trabalhar e tornarem-se miseráveis” (LAFARGUE, 1999, p. 79).
             Um agrupamento societário não visa só resultados financeiros, ele se articula em nome de valores que coletivamente quer defender, de modo a formar uma esfera de proteção que atinja a todos os membros. O princípio econômico, por sua vez, se apresenta superior a qualquer valor que sociedade possa julgar como importante, já que defender certos valores significa contrapor a lógica do lucro, e, contemporaneamente, é muito presente a idéia de que tudo é justificável pelo resultado econômico.
 Nesse quesito, nossa sociedade preserva um traço selvagem (muito embora na selva inexista aquele que mata para acumular), na medida em que os fortes não encontram limites na imposição de sua vontade aos fracos.
Desse modo, o trabalho aos domingos desafia a ideia de proteção à família, valor supostamente fundamental de nossa sociedade. O domingo como um dia de descanso é importante mesmo em uma lógica laica, pois propicia o convívio familiar e, estando os membros do grupo livres de compromissos profissionais, podem dedicar-se a ludicidade, a religiosidade e ao desenvolvimento das funções de cada um na família. É comprovado que quem trabalha aos domingos tendo sua folga em outro dia da semana tem uma vivência familiar mais pobre, fator que interfere no desenvolvimento pessoal dos filhos, na sanidade psíquica e emocional de todos os entes e, principalmente, na desagregação familiar. Confirma-se, assim, o fato de que “a burguesia rasgou o véu de emoção e de sentimentalidade das relações familiares e reduziu-as a mera relação monetária” (MARX, 2002, p. 28)
A inobservância deliberada dessa consequência revela que a família nunca foi um valor fundamental de nossa sociedade, mas apenas uma cantilena piegas, usada em geral em apelos comerciais (especialmente em propaganda de margarina), pois os valores são defendidos universalmente, ou seja, toda e qualquer família merece ser protegida por medidas que facilitem o seu convívio, agora defender individualmente a própria família, ou somente a família burguesa, é forma contemporânea de barbárie.
No conto de Dostoievski, aquele que gera a riqueza por meio de um esforço desumano, servindo como atração grotesca dentro de um crocodilo para produzi–la, se afasta da possibilidade de poder gozá-la. Assim é o comerciário que passa seus domingos produzindo resultados econômicos que servirão somente ao dono do crocodilo, quer dizer, ao dono do estabelecimento.

Samuel Mânica Radaelli - GEDIS

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Quanto de social há na dimensão particular? – breve análise acerca de duas formas de se compreender a responsabilidade e a justiça social



Deparo-me, então, com as páginas amarelas da “Veja” de uma edição recente (nº 2.230 – ano 44 – nº 33, 17 de agosto de 2011) e encontro o psiquiatra inglês Anthony Daniels comentando sobre o sistema prisional, o comportamento dos criminosos e o vício em drogas, entre outros temas. Sua tese, em linhas gerais, é: os criminosos encontram justificativa para seus crimes na retórica sociológica (a qual ele denomina “intelectual”) de que, como a sociedade produz o criminoso, logo ele não possui plena responsabilidade pelos seus crimes (que é social). O mesmo raciocínio é estendido ao comportamento dos presos e dos usuários de drogas. Segundo Daniels, tal teoria “produz cidadãos que não assumem suas responsabilidades” e “desumaniza” os criminosos, pois não os considera capazes de escolher (o que implica necessariamente ser responsabilizado por suas escolhas). Em um determinado momento da entrevista, Daniels (obviamente provocado por uma pergunta “neutra” do repórter da Veja) traça um paralelo entre Anders Breivik (autor do atentado na Noruega que deixou aproximadamente 70 mortos) e Cesare Battisti. Traçaremos algumas considerações tomando tal teoria como princípio.
De antemão, cumpre lembrar a lição principal que Hans Kelsen traz em sua obra “O que é Justiça?”: afirma o jurista austríaco que a ideia de justiça é fundada em uma pressuposição do indivíduo, a qual antecede mesmo a lógica e a racionalidade e encontra suas fontes na história, na sociedade, além de uma infinidade de outros fatores que o influenciam na construção da ideia de “justo” e “injusto”, “bem” e “mal”. Assim, podemos partir da observação, em nossa sociedade, de duas pressuposições iniciais para a ideia de justiça e responsabilidade: uma é fundada na “liberdade” e na “igualdade formal”, outra é fundada na “necessidade” e na “igualdade material”.
A primeira afirmará que o indivíduo possui liberdade (desde que não coagido pelo Estado) para escolher e atuar na sociedade. Ainda que dependente de uma série de condições, a esfera da liberdade, segundo essa linha de pensamento, proporciona ao indivíduo uma possibilidade infinita de vencer os “obstáculos sociais” e “triunfar”, ou seja, passar a ser “alguém na vida”: para isto, basta ele “querer” e se esforçar. Tal teoria desembocará regularmente na ideia de “meritocracia” e de que “todos são iguais perante a lei” – logo devem responder da mesma forma aos mesmos estímulos jurídicos.
A segunda teoria, por sua vez, compreenderá o indivíduo como um ser condicionado ao contexto social em que está inserido. Porém, ainda que provido de uma considerável bagagem de mediações sociais, o sujeito possui liberdade para escolher e agir, mas tal liberdade é seriamente limitada às suas condições econômicas, sanitárias e psicológicas. Logo, a pessoa não precisa apenas de esforço e dedicação para “vencer” sua condição precária, mas sim contar com a ajuda de mecanismos sociais que o alavanquem aos “altos escalões da sociedade” e preencham o lugar de exclusão que antes ocupava com outra pessoa. Os últimos desdobramentos desse raciocínio serão a busca pela igualdade e a necessidade como valor maior que a liberdade, além da busca pela construção de uma “igualdade material”, ou seja, de que os desiguais devem ser tratados de forma desigual.
Essas ideologias compreendem de formas diferentes a questão da “responsabilidade” (a questão de quem responde pelas “falhas” encontradas na sociedade).
Para os adeptos da primeira aqui exposta, a responsabilidade é integralmente transferida ao indivíduo, que, se está em situação precária, se não possui acesso a um salário digno, se trabalha em funções básicas para as quais normalmente não se exige estudo, se mora em uma habitação desprovida das condições sanitárias básicas, é porque não se esforçou, não provou que é capaz, é desasseado, relaxado, “não está nem aí” e por essas razões encontra-se nessa situação. Os problemas mais gritantes (e os que ameaçam a economia, o conforto e a acumulação) são transferidos ao Estado (segurança pública, construção de conjuntos habitacionais – que muitas vezes são a materialização urbana da exclusão –, câmeras de vigilância para proteger o patrimônio “central” ameaçado...). Ora, o indivíduo é livre, não é? Então que cada um “lute pelo que quer”. A competição é frequentemente invocada como elemento da evolução/progresso (porém pouco se questiona o sentido de tal evolução – evolução para quem? Para o quê e, principalmente, em benefício de quem?). Àqueles que perdem – os fracos e incompetentes – resta a piedade dos vencedores, que se organizam para promover seus eventos beneficentes e amenizar a dor de quem sofre.
A segunda teoria mencionada, por sua vez, compreende a questão da responsabilidade em sua dimensão material, o que quer dizer que os vários elementos sociais se encontram integrados e o fenômeno/acontecimento social é apenas a “ponta do iceberg”. É claro que o sujeito possui escolhas, possui liberdade, porém essa liberdade é sempre condicionada às mediações em que ele vive (a sua história). A construção da sua personalidade passa por uma infinidade de fatores sobre os quais ele próprio não tem controle, logo não pode ser integralmente responsabilizado pela sua situação, muito menos pelas suas escolhas. Isso não quer dizer que ele não deva ser punido, pois essa é outra dimensão, que é definida pelas instituições construídas pela sociedade. O que não se pode é relegar unicamente ao indivíduo os efeitos de suas escolhas, mesmo porque esses efeitos abrangem toda a sociedade em que ele vive. Nesse contexto, pensar em penas mais severas, Estado-polícia máximo, vigilância (políticas públicas de dimensão negativa) pouco resolve. A persecução de políticas públicas positivas (saneamento básico, distribuição de renda, reforma agrária, saúde e educação de qualidade, interferência do Estado nas relações de opressão inter-particulares) é compreendida como mais eficaz para a amenização das moléstias sociais.
A maioria das pessoas considera atraente a primeira das ideias aqui expostas. Realmente, dentro da lógica capitalista, não há como pensar diferente. Tudo se justifica e podemos deitar tranquilos afinal a pobreza lá fora não é nossa culpa e, quando nos sentidos acometidos por uma crise de consciência, investimos nosso dinheiro na caridade (um ramo da economia muito explorado pelos miseráveis trabalhadores – os mendigos – que utilizam como matéria-prima a hipocrisia do ser humano). Porém, que passos deixamos para trás quando acreditamos cegamente na responsabilidade absoluta fundada na “liberdade absoluta” do indivíduo?
Ora, é apenas coincidência que a maioria gritante das vagas de universidades públicas é ocupada por alunos provenientes de escolas particulares? Que a maioria da população pobre é negra e que a maior parte dos pobres é, por sua vez, filho de pobres? Será coincidência o fato de que os trabalhos geralmente exercidos pelos excluídos são normalmente os mais mal remunerados? Se eles não o fizerem, quem o fará? Que juiz deixará de exercer seu trabalho para recolher o lixo espalhado pela rua?
Um psiquiatra pode afirmar com mais propriedade do que um jurista a forma como um detento compreende os fatos e discursos que chegam a ele. A proposta de Daniels, porém, traz a consequência de que desejamos apenas mudar os atores, porém nunca a peça teatral. Enquanto criamos criminosos capazes ou incapazes de auto-justificar seus crimes, continuamos criando mais criminosos independentemente de sua capacidade maior ou menor de banalizar seus atos. O grau de culpa sentido pelo ser humano que transgrediu as convenções sociais não muda o fato de que ele chegou um dia a transgredi-la – e de que, pelo fato de que outros também a transgredirão, precisamos encontrar soluções para diminuir tais inconvenientes. Isso é o que importa para o estudo do direito.
Uma rápida pesquisa nos Índices de Desenvolvimento Humano de diversos países mostra que a desigualdade é um fator criminológico. Agora, se o criminoso fica tranquilo ou não após cometer o crime, isso não é competência do jurista – é do psicólogo. A frequência com que surgem novos sujeitos reveses à ordem jurídica não muda em proporção à mudança ou à existência de uma retórica de cunho mais social em contraposição a outra de cunho liberal, mais sim a partir do momento em que assumimos a responsabilidade pelo “outro” – e finalmente o encontramos, reconhecemo-nos nele – eis a experiência da alteridade. Sem essa experiência fundante, continuaremos lidando com o resultado (gestão do caos), sem nunca atingir a origem do problema.
Para finalizar, vale citar a opinião de Anthony Daniels acerca da função da prisão: “A prisão não é uma instituição terapêutica. Sua função principal é prevenir crimes que um condenado poderia cometer se estivesse solto”. Realmente, as coisas na Europa não funcionam como as do Brasil.

Luís Henrique Kohl Camargo – GEDIS