quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A Globalização e as Promessas da (Pós?)modernidade

–Olhe-a bem. Já não a verá nunca mais. (...) Fixei-me no lugar e fechei o volume. Imediatamente o abri. Em vão busquei a figura da âncora, folha por folha.
(Jorge Luis Borges, O livro de areia)
 
À medida em que o fenômeno da globalização se intensifica e se expande, tentando impor modelos e referenciais em todos os cantos do mundo, observa-se uma tendência à valorização do micro, das culturas regionais, e a aldeia global, termo cunhado por simpatizantes do processo, mostrou-se ao mesmo tempo, capaz de resistir e promover a valorização de culturas que há tempos se pretenderam extintas, como as culturas nativas, no caso do Brasil. O fenômeno da globalização provocou então, uma espécie de efeito contrário, e o mercado acabou se curvando ao se adaptar a gostos e preferências regionais.
As últimas décadas do século XX vivenciaram um reavivamento das culturas locais. Por todos os lados grupos, povos, etnias, movimentos, antes silenciados, ou que por muito tempo sofreram tentativas no sentido de fazer com que silenciassem, procuram levantar a voz, fazer-se perceber em suas singularidades e particularidades, num dinâmico movimento de luta por espaço, valorização e respeito. O tempo agora é o do diferente, que insiste e orgulha-se em reconhecer-se como tal. Conceitos como verdade são rechaçados e cedem lugar aos pluralismos, às múltiplas verdades. O racionalismo cede espaço ao misticismo, à religiosidade.
Para muitos pensadores, a impossibilidade de planejamento e controle do futuro, evidencia uma realidade onde as diferenças e singularidades não desaparecem, mas permanecem e insistem em sobreviver. A uniformização de crenças, costumes, gostos e gestos é inviável, indesejável e desnecessária e a maior prova foram os regimes totalitários (fascismo, nazismo, regime socialista soviético) que acabaram fracassando na tentativa de moldar comportamentos e eliminar o diferente.
A essa nova percepção da realidade, convencionou-se chamar de pós-modernidade. O uso do termo é polêmico.
Seus adeptos a definem enquanto uma espécie de etapa superior da modernidade, na qual a humanidade poderia atingir um grau de organização e desenvolvimento aceitável, onde o avanço das forças sociais e políticas, bem como da técnica, permitiria ao indivíduo libertar-se do domínio de entidades ou poderes que lhe ditam normas, e viver de forma muito mais autônoma e livre suas próprias escolhas. Os impérios políticos, religiosos ou culturais estariam praticamente extintos.
Para o sociólogo francês, Alain Touraine, o paradigma emergente funda-se na cultura. Não mais na política da organização de nações dirigidas por seus reis como foi o pensamento dominante até o século XVIII, nem na economia, como se acreditou depois. Touraine decreta o fim do social, das entidades que representam o indivíduo. A luta dos proletários, por exemplo, tornou-se quase que impraticável, uma vez que o patrão, que concentra o poder, encontra-se diluído juntamente com a empresa, que pode produzir suas mercadorias em várias partes do mundo, sem contar com um local fixo, e podendo deslocar-se com muita facilidade.
A luta por direitos políticos, depois substituída por direitos sociais, agora é mais uma vez substituída pela onda dos direitos culturais. Os direitos culturais giram em torno da possibilidade que o indivíduo tem de fazer escolhas antes impensáveis, como crenças, opções sexuais... São direitos que se expressam no campo da cultura, mas que se aplicam numa dimensão individual.
O indivíduo libertou-se de sindicatos, partidos, igrejas ou outras instituições que determinam seu modo de pensar e agir, e a possibilidade de optar de forma consciente em um mundo marcado pelo acesso à informação, pode torná-lo sujeito. Este é o grande desafio. Sujeito na medida em que suas próprias determinações, de caráter pessoal, influenciam a coletividade. Consumir ou não determinado produto pode afetar populações inteiras, próximas ou distantes.
Os críticos ao uso do termo pós-modernidade partem do pressuposto básico de que a modernidade ainda não cumpriu suas principais promessas fundadas no Iluminismo e seus ideais de universalidade, individualidade e autonomia. Direitos humanos essenciais ainda não se fizeram estender ao conjunto da população mundial. O número de miseráveis e desassistidos de acesso à educação e avanços da medicina, por exemplo, ainda é imenso e assombroso, fazendo sombra às ilhas de abundância espalhadas aqui e ali, especialmente nos países do norte.
As benécias do capitalismo, seus confortos e facilidades decorrentes do avanço tecnológico ainda permanecem restritas a uma parcela minoritária da população mundial. Ditaduras ainda coexistem com democracias e estas últimas apresentam fragilidades de toda ordem, sendo a corrupção o elemento mais alarmante e entravador do processo de promoção dos indivíduos. Países desenvolvidos e de maior estabilidade econômica enfrentam o drama de milhões de migrantes que buscam seu lugar ao sol.
Toda essa realidade, quando confrontada com os padrões sonhados e apregoados pelo Iluminismo, desnuda-se e evidencia que, se algum avanço houve, não beneficiou a ampla maioria. Afinal, o europeu ou americano médio contém em si a mesma humanidade que o africano, latino ou asiático que vive com menos de um dólar por dia.
Como falar então, em pós-modernidade, se a modernidade não se completou, não atingiu os padrões almejados?
O filósofo Sérgio Paulo Rouanet está entre os que acreditam que, embora tenhamos presenciado o desencanto em relação à ciência e à política, e a construção de um mundo em que se assegurem e garantam aos indivíduos os meios de conquista da liberdade e felicidade esteve ameaçada e o último século tenha terminado com certo pessimismo, os conceitos iluministas de universalidade, individualidade e autonomia precisam urgentemente ser retomados e reconstruídos.

Délcio Marquetti - GEDIS


Referências
ROUANET, Paulo Sérgio. Mal-estar na modernidade: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

TOURAINE, Alain. Um novo paradigma: para compreender o mundo de hoje. Petrópolis: Vozes, 2006.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Os critérios ideológicos de seleção e a meritocracia

Maria Helena Chauí, em seu livro “O que é ideologia”, faz um breve panorama acerca desse termo tão utilizado (e de forma tão equivocada, diga-se de passagem) em uma série de discursos de variadas plataformas políticas, econômicas e sociais. Podemos definir ideologia – satisfatoriamente, para a finalidade deste breve texto – como um conjunto de ideias produzido por uma sociedade com a finalidade de justificar racionalmente suas práticas e costumes, ou seja, a realidade por ela criada. A produção de ideologias é elemento intrínseco a qualquer sociedade, mesmo porque possibilita a própria existência desta. Ora, a sociedade é formada por seres humanos que seguem noções de justiça e moralidade para fundamentar suas ações, as quais decidirão os rumos (ou mesmo a extinção) de um grupo social. Em suma, “ideologia” é o elemento retórico que gere intelectualmente o produto social e seus modos de produção.
Não raro encontramos tal termo atrelado a uma carga pejorativa. De fato, há um esforço para ligar o conceito de “ideologia” a uma ferramenta discursiva de cunho esquerdista, progressista ou comunista. Não é exigido muito de nosso intelecto para notarmos a leviandade de tal equiparação: o emprego da ideia de “ideologia” é essencial ao estudo da sociedade e, por essa razão, pode designar tanto discursos de “direita” quanto de “esquerda” (para uma melhor definição sobre no que consiste, contemporaneamente, esses termos, vide Norberto Bobbio: “Direita e Esquerda”).
O que se quer abordar com essa introdução é a questão dos critérios ideológicos de seleção utilizados pelos empregadores na atualidade e sua relação com a ideia de “meritocracia”. Uma pesquisa de campo realizada por Marcia Hespanhol Bernardo, que embasou o conteúdo do livro “Trabalho duro, discurso flexível”, revela um critério interessante que vem sendo veladamente trabalhado pelos administradores de empresa quando da contratação de funcionários: ao invés de pautarem-se pelo “saber-fazer” (experiência, capacidade de realizar tarefas etc. – fatores levados em conta no passado), as empresas buscam, hoje, empregados que se submetam mais facilmente aos objetivos e à filosofia da empresa (“saber-ser”). Essas pessoas serão cooptadas pelas promessas dos dirigentes e, assim, dedicar-se-ão mais ao trabalho sem a necessidade de uma estrutura hierárquica rígida e pesada para manter o funcionamento do sistema (o que, além do mais, custa caro ao empreendedor).
Um fato interessante na pesquisa citada é a preferência pelas empresas pesquisadas em contratar jovens que não possuíam nenhuma experiência empregatícia. Também surpreende a rejeição destas empresas (do ramo metalúrgico) em contratar empregados que já haviam trabalhado no ramo, em outras empresas. À primeira vista o discurso utilizado pelas empresas para justificar tal expediente é o de que ela “é preocupada com a questão social, visando dar emprego aos mais jovens e inexperientes”. A autora, porém, vai mais fundo na questão e descobre que, na realidade, o que a empresa buscava era a contratação pessoas que não haviam tido contato com qualquer sindicato ou organização análoga (relativamente forte no ramo metalúrgico). O mesmo raciocínio se aplica à questão da faixa etária: preferir jovens, na realidade, é uma estratégia para contratar indivíduos que são, em geral, mais facilmente seduzidos pela retórica da “empresa-segunda-casa” e que dificilmente tomarão uma postura crítica perante as decisões de seus superiores.
"Um fato interessante na pesquisa citada
é a preferência pelas empresas pesquisadas
em contratar jovens que não possuíam
nenhuma experiência empregatícia.
Também surpreende a rejeição destas
empresas (do ramo metalúrgico) em
contratar empregados que já haviam
trabalhado no ramo, em outras empresas.
Dessa forma, o que se verificou foi que os critérios ideológicos sobrepõem-se aos critérios técnicos no momento da seleção. Preterir sujeitos críticos, politicamente ativos e contestadores nada mais é do que deixar de lado o “mérito” pela obra da pessoa para pautar-se em questões ideológicas que mais se relacionam às políticas de manutenção do funcionamento do sistema do que ao sopesamento entre as capacidades possuídas pelo candidato e as exigências do cargo pretendido.
Nota-se que o sentido de “competência” vem se transformando, diminuindo gradativamente o valor do “saber-fazer” (conhecimento, capacidade de produzir etc.) em detrimento do “saber-ser” (cooptado, submisso e sem subjetividade fora dos objetivos da empresa). Essa afirmação desmantela o discurso da “meritocracia”, posto que, na realidade, as oportunidades ofertadas ao sujeito distanciam-se do seu campo de liberdade de escolha de ação e aproximam-se, por sua vez, a uma forma de pensar na qual “quanto mais submisso for mais chances o sujeito dominado terá”.
É necessário que compreendamos essas estratégias retóricas para percebermos que também há “ideologia” do “lado de cima do muro”, e que ela vem sendo utilizada para submeter cada vez mais a população trabalhadora aos interesses do capital. Visto isso, estaremos mais próximos a uma postura crítica de questionamento, que poderá, quiçá, lançar as bases para uma sociedade mais harmoniosa e igualitária.

Luís Henrique Kohl Camargo - GEDIS

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

DA SÉRIE "TRABALHO AOS DOMINGOS": Trabalhar aos domingo é legal?

Na acepção popular, “legal” significa algo bom ou divertido. Em textos anteriores, discutimos – sob diversos enfoques - se o trabalho no domingo possui a condição de propiciar satisfação ou realização pessoal, principalmente a quem o faz por necessidade ou imposição (empregados).

E sob o aspecto jurídico? A exigência de trabalho aos domingos é lícita?

A Constituição brasileira assegura aos empregados (inclusive domésticos) o direito de descansar em uma oportunidade na semana, e a receber seus salários como se trabalhando estivessem. Indica, ainda, que esse descanso deve coincidir preferencialmente com os domingos.

O que o constituinte quis dizer com “preferencialmente” aos domingos?  Caberia ao empregador optar pela concessão de folga neste ou em qualquer outro dia da semana ou apenas excepcionalmente poderia ele substituir o domingo por outro dia de folga?

Na verdade, a redação não expressa vontade alguma (como se possível fosse extrair uma “vontade” do legislador). A criação de um enunciado dúbio foi a maneira encontrada pelos congressistas para resolver o imbróglio entre o grupo que representava as tendências mais conservadoras da sociedade (também conhecido como “Centrão”) e a ala progressista (integrada por sindicalistas e eleitos vinculados a outros movimentos sociais). Aqueles queriam que constasse da Carta apenas o direito ao descanso semanal remunerado (sem indicação de dia para tanto) e, estes, postulavam a expressa indicação do domingo como dia de descanso.

Cabe ao intérprete, agora, atribuir sentido ao texto. E, a meu sentir, a melhor maneira de fazê-lo é partindo do pressuposto que a Constituição de 1988 representa basicamente rompimento e mudança. A Carta de 1988 inegavelmente rompe com a tradição liberal do regime constitucional anterior e inaugura uma nova ordem no País, lastrada em fundamentos diversos daqueles de outrora.

A principal característica desse novo modelo é a inversão da ordem de valores que regem a ordem econômica. Antes de 1988 - até por interpretação gramatical – predominava a iniciativa individual (livre iniciativa econômica) e, por isso, o trabalho devia moldar-se a esse modelo de organização. A nova ordem opta claramente pela valorização do trabalho e, em virtude disso, o interesse econômico é que agora deve se adaptar aos princípios e regras de valorização da pessoa que trabalha. Aliás, interpretação nesse sentido é a que melhor atende a outras opções constitucionais (como direito ao lazer e ao uso do espaço urbano e valorização da família).

Claro que algumas atividades exigem a prestação de serviços em todos os dias da semana, inclusive aos domingos (serviços de saúde, por exemplo). Para tais situações (que são excepcionais e assim devem ser tratadas), impõe-se a instituição de uma escala (com folgas coincidentes com os domingos em algumas oportunidades) e a admissibilidade do trabalho de empregados em tais dias (a legislação não permite em hipótese alguma a substituição do direito ao descanso semanal pelo pagamento em dinheiro, ainda que de forma dobrada).

Entretanto, a eterna tentativa de viabilizar o trabalho aos domingos em qualquer atividade, principalmente no comércio, é inconstitucional. Logo, autorizações do legislador ordinário para a utilização de empregados aos domingos em atividades que não necessariamente precisem funcionar em tais dias, assim devem ser consideradas. Exemplo dessa inconstitucionalidade está na Lei 10.101/2000 que, em seu artigo 6º, autoriza o comércio em geral a utilizar os serviços de empregados aos domingos (desde que com folga coincidente com estes dias a cada três semanas). Não vislumbro aqui necessidade imperiosa de que estes serviços funcionem em dias originalmente destinados ao descanso e lazer, tampouco interesse público relevante para que isso aconteça.

Em tempos onde a evolução tecnológica permite que a produtividade das empresas mantenha-se no mesmo nível, mesmo reduzida consideravelmente a jornada de trabalho, não há razão plausível para a admissibilidade do trabalho aos domingos no comércio em geral, situação que se mantém apenas em virtude da prevalência do interesse econômico, da inércia judicial e da coação imposta pela sociedade do consumo.


Régis Trindade de Mello - GEDIS