quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Quando “segurança jurídica” e ilusão se confundem

Pode-se dizer que a atividade do juiz no processo é um dos pontos mais discutidos pela teoria do direito. Muito se fala acerca da limitação de sua ação, proferem-se discursos – que por muitas vezes beiram o “fanatismo ideológico” – voltados à busca por um controle absoluto, o estabelecimento de regras rígidas que possam trazer “segurança jurídica” à sociedade, confundindo, muitas vezes, a segurança jurídica com a possibilidade de se “prever” o conteúdo de uma decisão judicial. Por outro lado, há também aqueles que consideram positivo proporcionar uma maior margem de liberdade de atuação ao magistrado, afinal é ele quem analisa e possui o poder político de construir o sentido institucional da linguagem legal.
De antemão, é forçoso levantar que reconhecer a existência do “outro” é um desafio que envolve um esforço reflexivo que, por sua vez, é requisito para a alteridade. Quando relativizamos as garantias individuais, por exemplo, em um determinado caso concreto (deve-se lembrar aqui dos casos fastidiosamente instigados pela mídia - Suzane Von Richthofen, o goleiro Bruno, Isabella Nardoni etc), esquecemos que tais garantias são basilares para a construção e reprodução de um regime democrático, e que, por essa razão, devem ser aplicadas em sua integralidade, mesmo que isso custe a liberdade de um culpado.
O jurista não pode se esquecer que a construção da verdade legítima se dá no processo, e que o regime democrático sucumbe se os indivíduos não contarem com as prerrogativas individuais que possuem em relação às regras desse jogo (devido processo legal). Também é importante ter em mente que o direito é pautado por incertezas, falhas, imprevisibilidades, e que isso não quer dizer necessariamente ausência de segurança jurídica.
O direito é incerto e imprevisível porque está ligado diretamente com o homem. Hannah Arendt (em “A condição humana”) disserta acerca das características ínsitas do ser humano enquanto tal, e entre elas estão a capacidade de errar e de ser imprevisibilidade constante. O ser humano é o inesperado, dele surge o novo, ele possui a capacidade de agir e fazer – e falhar. Pensar em um direito sem falhas é idealizar um projeto que esconde, em suas estruturas ocultas, a incapacidade de reconhecer o homem enquanto tal, ou seja, a vontade de idealizar o “outro” pautado pelos valores presentes no “eu”, como se o “outro” não possuísse seus próprios valores e sua própria cosmovisão.
Dessa dificuldade do exercício da alteridade (reconhecimento do “outro”) é que surgem as incompreensões – e as angústias – acerca da atividade do juiz. Ora, a função de um juiz não é produzir uma sentença idêntica ao seu colega juiz para casos análogos – como se isso fosse segurança jurídica –, mas realizar a prestação jurisdicional, respeitando as regras do jogo expostas pela constituição e pela legislação infraconstitucional (que esteja conforme a constituição). Não se deve esquecer, também, que o magistrado é o agente político incumbido de traduzir o sentido da legislação no caso concreto, ou seja, ele constrói o sentido politicamente imposto a todas as pessoas da sociedade. Tal tradução, porém, não se dá de forma unívoca entre todos os juristas, até porque não é essa a intenção da estrutura política construída pela constituição, pois, se assim não fosse, não haveria razão para o duplo grau de jurisdição, ou para a reapreciação da lide por um órgão colegiado. O direito institucional é divergente, e só existe porque há divergência.
A busca angustiante que se percebe em alguns juristas pela segurança jurídica é fruto, muitas vezes, de uma incompreensão acerca do abismo existente entre o “eu” e o “outro” (abismo esse que, segundo E. Dussel, somente se transpõe pela fé). Se visualizassem tal questão, compreenderiam as dificuldades linguísticas existentes na vida social. Entenderiam, também, que o processo não surge como uma ferramenta para “descobrir” qual a solução “mais correta”, mas para proporcionar um ponto de partida comum entre as partes envolvidas, tendo como resultado final a imposição pelo manipulador legítimo da força (Estado) de um sentido emanado por um agente político (juiz), que é encarregado de, com base nas regras do jogo (que são construídas por outro agente político – o legislador), construir uma verdade que será adotada coercitivamente como realidade por toda a sociedade.
Procurar por uma “segurança jurídica” fora dos moldes presentes na constituição pode levar a uma perigosa ilusão que põe em risco a existência do regime democrático. A possibilidade de “prever” o conteúdo das decisões não significa, necessariamente, “segurança jurídica”, e a existência de divergência entre os julgadores tampouco significa a falta dela. O direito é humano, e a verdade uma construção política.

Luís Henrique Kohl Camargo - GEDIS