terça-feira, 26 de março de 2013

Duas opiniões sobre o corte no fornecimento de luz e água às moradias irregulares de Xanxerê/SC



           
O GEDIS preza pela pluralidade do pensamento. Nesse sentido, dentre as várias questões discutidas entre os membros do grupo, algumas não se batem por uma opinião unívoca. A divergência é natural e estimulante, quando tratada com respeito.
Separamos dois textos elaborados por membros do GEDIS acerca de um assunto polêmico: o corte no fornecimento de energia elétrica e água àqueles que residem em loteamentos/construções irregularidades perante a administração municipal e às normas de direito urbanístico. Há divergência entre eles. Decidimos expor ambas as opiniões àqueles que acompanham o trabalho do GEDIS, para fomentar o debate e incentivar a todos à exposição de seus pensamentos.
É um espaço livre. Posicione-se, exponha sua opinião ou, então, aprecie a diferença.



Luz para a Clandestinidade



Por que fornecer luz e água a moradias juridicamente irregulares

Às vezes temos pontos de vista diferentes sobre alguns assuntos no GEDIS e achamos isso salutar. A unanimidade é pobre porque não fomenta o pensar além da opinião previamente formada. Assim fomos instigados dentro do grupo a travar uma discussão sobre direitos básicos e clandestinidade. Talvez seja um dos assuntos mais difíceis para um urbanista escrever: falar da cidade clandestina que existe dentro da cidade legal na maioria dos municípios do Brasil, e mais difícil/comovente, cidade clandestina onde moram famílias, com seus filhos pequenos, seus pais idosos e pessoas doentes.
 Mesmo os tecnocratas, que não têm grande sensibilidade, devem questionar-se: com que justificativa negar direito a luz e água para alguém que tem tanto direito quanto eu e você as mínimas condições de vida?
Para iniciar é preciso aprofundar-se e entender a perversidade do sistema. Sou contra o mecanismo que alimenta a clandestinidade. Em todas as campanhas políticas presencia-se, e de muito perto, o dinheiro público que desaparece sem deixar vestígios, contudo deixam obras públicas mal feitas, áreas para habitação não compradas, crianças que vão à escola e não aprendem, pessoas cada vez mais doentes (emocionalmente) mendigando atendimento nas filas do sistema de saúde, etc. Deixam também caixa-dois e mensalão sendo publicizados aos extremos, como se fosse raridade e nunca houvesse acontecido e pessoas trocando voto por cinquenta reais. Um sistema falido, uma parcela da população sem perspectiva à curto prazo e poucos tentando fazer algo para mudar este cenário, porque o sistema é contaminante e diz que para ele (e os que se beneficiam dele) sobreviver deve continuar assim.
Loteamentos clandestinos e favelas como Cidade de Deus (Rio de Janeiro), Santa Cruz (Xanxerê), Morro do Bumba (Niterói) surgiram porque o sistema alimenta-se desse caos e, enquanto desvia dinheiro público, permite que a clandestinidade ganhe o mínimo (acesso à luz e água) para não perturbar em demasia. Quando o morro despenca, a várzea alaga, a ambulância e a segurança não chegam, não comove o sistema que alimenta a clandestinidade, porque os votos continuarão lá, mesmo que morram alguns. Para eles, pobres são como ratos: por mais que alguns morram, sempre haverão outros, pesteados e famintos. Poucos se dão conta que estes inocentes morrem ou tem uma vida miserável devido à corrupção existente, e é mais fácil abrandar/acalmar a opinião pública permitindo acesso à luz e água para os miseráveis em locais impróprios do que perder as vantagens que o dinheiro desviado, que poderia ser destinado para habitação, propicia à parcela que se beneficia desse. É mais fácil colocar a culpa na promotoria, que exige garantias mínimas e cumprimento da lei para população, do que punir os dirigentes do sistema, que não garantem o mínimo constante na constituição, como moradia digna.
Se ninguém reclama ou cobra é mais fácil deixar tudo como está, porque quem mais se beneficia do sistema continua morando no seu apartamento de luxo, com luz, água, carro importado na garagem e, se for deputado (com salário que ultrapassa 20 mil reais[1]), ainda recebe auxilio moradia (de 4 mil reais[2]).
De acordo com o levantamento do IBGE (2008), o percentual de municípios que relataram existência de favelas passa de 27,7% naqueles com até 50 mil habitantes, para 70,8% dos 319 que têm entre 50 mil e 100 mil habitantes, chegando a 84,7% dos 229 municípios que têm entre 100 e 500 mil habitantes. Aproximadamente 46% das prefeituras declararam a existência, em seus municípios, de loteamentos irregulares cadastrados totalizando 63 mil oficialmente levantados em todo país. Somente em Xanxerê há mais de vinte loteamentos irregulares e mais de 600 domicílios não regularizados sobre áreas públicas, sem direito a obter financiamento, sendo muitos sub-habitações (casebres).
Para diminuir os parcelamentos irregulares, que, na maioria dos casos, não proporcionam qualidade de vida e em outros coloca a vida da população em risco, é um dos casos onde o poder público poderia intervir facilmente – quando a área ainda conta com poucas edificações e propuser ao proprietário uma operação urbana consorciada ou iniciativa público-privada. A municipalidade, auxiliando na elaboração dos projetos, execução da infraestrutura, com terraplenagem, abertura de valas para tubulação, poderia, em troca, ficar com terrenos para serem utilizado para implantação de habitação de interesse social.  Caso não se concretize o aceite do proprietário, o Ministério Público deve ser cientificado para intervir e notificar o parcelamento clandestino. Após a ocupação, as operações público-privadas tornam-se mais difíceis, pois a moeda de troca, que seria a terra, já foi ocupada. Mas o sistema prefere beneficiar e fechar os olhos para o loteador clandestino e permitir que os moradores tenham acesso à luz e água.
Em alguns municípios catarinenses, após o aumento de ocorrências de desastres e emergências, que vitimaram dezenas de pessoas, o Ministério Público proibiu a ligação de água e energia pelas respectivas concessionárias das moradias sem o alvará de construção/regularização das edificações e certidão do imóvel em nome do proprietário. Essa parceria busca coibir os loteamentos clandestinos, já que, para aprovar o projeto, o morador precisa ter a certidão do imóvel em seu nome. A legislação municipal também precisa ser eficiente, determinando o número máximo de edificações sobre áreas não loteadas, sem necessidade de constituição de condomínio, para que não incentive loteamentos clandestinos por omissão.
Constata-se que o papel social da propriedade e principalmente da cidade não vem sendo cumprido em nosso município. O Estatuto da Cidade (lei 10257/2001) prevê alguns instrumentos como IPTU progressivo que poderiam diminui a segregação, aumentar a mobilidade e evitar desastres, mas é mais fácil deixar tudo como esta, desviar muito dinheiro e na véspera das campanhas comprarem os votos com dinheiro público de caixa dois[3].
A cultura da sociedade brasileira também contribui para a perpetuação dos desastres anunciados devido à falta de responsabilização dos técnicos e gestores públicos pelos desastres construídos ou incentivados. Exemplificando o exposto, o desastre do Morro do Bumba no município de Niterói (RJ), ocorrido em 2010, matou dezenas de pessoas; mesmo tendo elas sido incentivadas a permanecer no local com as melhorias de infraestrutura oferecidas, não foi questionada a inexistência de documentos de responsabilidade técnica para pavimentar as ruas e construir equipamentos públicos num loteamento irregular. Não existindo documentos de responsabilidade técnica, os dirigentes públicos deveriam ser responsabilizados pelo CREA (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia) ou pelo CAU (Conselho de Arquitetura e Urbanismo) por executarem obras sem a documentação mínima necessária para uma obra legal. Mas, como as vítimas são anônimas (pobres desconhecidos), os Conselhos Técnicos, o Ministério Público e a população em geral aceitam passivamente o desastre como fatalidade.
Desejo luz, água e casas com o mínimo de dignidade e legalizada para todos. Todos têm direito a legalidade e para isso é preciso enfrentar o sistema. Quem tem casa sem luz e água irá bater nas portas da Prefeitura todos os dias, só assim dar-se-ão conta que para ter mais sossego é melhor para todos que o sistema mude.

Rosângela Favero - GEDIS





         Evidente que luz, água e moradia são elementos básicos para uma vida digna. Também sabemos que a dignidade da pessoa humana é princípio jurídico declarado expressamente pela Constituição Brasileira de 1988. Habitação, além do mais, é direito social, exigindo uma postura ativa do Estado no sentido de garantir a todos a efetividade de tal direito. Luz e água são consequências diretas do direito à habitação; devem ser tratados, juridicamente, da mesma maneira. São lições básicas de conhecimento difuso, até mesmo fora do âmbito dos profissionais/acadêmicos do direito. Diante disso, discute-se acerca da forma como o Estado deve lidar com essas obrigações, tendo em vista seu dever em realizar a todos tais previsões legais.
         Em Xanxerê, instaura-se uma controvérsia: as concessionárias de água e energia elétrica, sob o aval da Promotoria Pública e a proteção do Poder Judiciário, estão cortando o abastecimento em relação aos moradores de loteamentos irregulares e àqueles que não possuem sua residência regularizada nos órgãos públicos (Alvará de Construção, Habite-se, etc.). É necessário atenção para vermos os reais motores de tais condutas, para após observarmos sua adequação jurídica.
         Em geral, a história das ocupações urbanas se inicia com a inércia do Poder Público em fiscalizar as construções que vêm surgindo. A ausência dessa fiscalização, na maioria dos casos, tem uma razão política: a população que ocupa áreas irregulares possui, de regra, baixa instrução e, por serem socialmente vulneráveis e não verem sentido no regime político que se instaura – pois, mandato vai mandato vem, sua situação concreta como classe substancialmente não se altera –, aparecem como excelentes cabos eleitorais e uma abundante fonte de “votos fáceis”.
         Pontuado isso, é necessário observar outra dimensão da questão: a população alvo das medidas em foco neste texto é de baixíssima renda, em sua ampla maioria. Se sequer possuem renda para adquirir uma habitação digna, quando se dispuseram a pagar os (proporcionalmente) altos valores tributários que recaem sobre a concessão de um alvará de construção e um habite-se, além dos custos com projetos e o custeio de um profissional legalmente habilitado para a execução? É claro que tensionarão ao máximo para evitar tais submissões legais, posto que dispender valores a título de despesas administrativo-burocráticas pode ser o sacrifício da alimentação, do vestuário, em suma, da dignidade mínima do mês.
         Tecnicamente, quando o exercício de um direito fundamental pede o sacrifício de outro, o raciocínio jurídico que se exige do jurista é a ponderação: diante do caso concreto, levantam-se suas peculiaridades e os bens jurídicos protegidos, sopesando quais são mais importantes e merecem maior proteção. É diante de um caso assim que estamos: o descumprimento das normas de urbanização pelas pessoas que se instalam irregularmente se dá pela sua vulnerabilidade social, pela impossibilidade de adquirirem um imóvel/habitação regular, e não por uma simples afronta ou descaso com os preceitos legais.
Não dá para voltar as costas a problemas sociais como o desemprego, a baixa qualidade do ensino público e a precarização do empregado, que são, entre outros, os motores de tais condutas. Se o sujeito tiver de escolher entre um prato de comida e o pagamento das despesas administrativas para a realização de um direito que já é seu (habitação), creio que não haverá séria discordância acerca da escolha que provavelmente será adotada. É diferente do grande empresário que sonega impostos, por exemplo, onde o ato ilegal está movido por outros fatores que não a realização de direitos de dignidade básicos, visto que já usufrui dessas prerrogativas; não praticar tal ilegalidade não fará com que deixe de contar com o mínimo exigível para o exercício de sua dignidade individual.
Assim, uma ocupação irregular não se resume a um problema urbanístico de organização espacial da área urbana: ela revela um direito social que não foi devidamente efetivado pelo Estado, que é o direito à habitação digna. Assim, quando afirmamos que um erro não justifica o outro, é possível aplicar, inversamente, o mesmo raciocínio: a falha do Estado quanto à garantia de um direito social não justifica o tolhimento de outro direito social (abastecimento de água e luz).
Questão que corriqueiramente se levanta é o fato de que a agitação social ocasionada com tal corte no abastecimento de água e energia elétrica seria uma motivação ao Poder Público para que regularizasse a situação dessas pessoas e providenciasse efetivas medidas de urbanização que liquidassem o problema da desorganização do espaço urbano. Ora, aceitar tão facilmente a negativa de um direito social básico desse porte é tão ilógico quanto mandar fechar as escolas privadas para fazer com que os pais dos alunos pressionem o Poder Público para melhorar a qualidade das escolas públicas. É como matar os presos para pressionar os “bandidos” a pararem de cometer crimes. Direitos humanos não são bens banalmente negociáveis, não são elementos “em perspectiva”: devem ser realizados todos, hoje.
Uma urbanização deficiente é também um problema social, que causa desastres, mata pessoas e acarreta sérios prejuízos sociais, que são partilhados entre todos. Acredito, porém, que cessar o abastecimento de água e luz não fará muito para resolver o problema, tendo em vista que as pessoas alvo dessas medidas não possuem força econômica ou política para ou adquirir um imóvel habitacional regular ou pressionar o Poder Público para que garanta a eles tal direito social. Isso porque, como já vimos, a situação de vulnerabilidade social, baixa renda e baixo nível de instrução faz com que tais pessoas se movimentem, politicamente, como “massas amorfas”, em geral sem poder para, em grupo, exigir mudanças urbanísticas a longo prazo, visto possuírem necessidades individuais mais urgentes a serem sanadas hoje (alimentação, saúde, transporte etc.).
         O resultado prático dessas medidas será um acréscimo na arrecadação do Poder Público, em relação àqueles que podem pagar os tributos e regularizar a situação de sua casa, e uma maior insegurança sentida por aqueles que não possuem renda sequer para adquirir uma casa juridicamente regular. Continuarão eles sendo movimentados, de um lado para o outro, elementos necessários, mas “indesejáveis” para o sistema. Se a decisão em questão quer ser um desincentivo ao descumprimento das leis, vê-se que não atinge sequer os principais culpados por tal situação: jurídico-positivamente, o Estado; materialmente, as amarras políticas e econômicas que impedem sua atuação no sentido de realização integral dos direitos sociais. A corda sempre estoura no lado mais fraco.

Luís Henrique Kohl Camargo – GEDIS  




[1] oas.com.br/noticia/1655/politica/2012/04/12/maioria-dos-deputados-estaduais-ganha-15-salarios.html
[2]http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2012/12/alesc-aprova-aumento-de-79-no-auxilio-moradia-dos-deputados-de-sc.html
[3]http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI975955-EI6578,00.html . Senador pelo PSDB (AM) Arthur Virgílio afirma: caixa dois é prática corriqueira no país e tem que ser banida.