domingo, 4 de agosto de 2013

Corrupção: uma questão de foco

"A questão da corrupção, portanto, surge
muito mais como uma cortina de fumaça
que encobre as dificuldades estruturais do
próprio sistema do que aquilo que impede
que o sistema funcione 'como deveria funcionar'."

Ouve-se falar que a "corrupção é o pior inimigo do Brasil". Ulysses Guimarães, ex-deputado, certa vez afirmou que "corrupção é o cupim da república". É necessário um olhar atento ao alcance dessas frases, para que não sejamos vítimas de uma ideologia que, por meio de confusões designativas e denotativas, nos faz acreditar que a "corrupção", pura e simplesmente, é o que impede o "desenvolvimento" do Brasil e que, por causa dela, os brasileiros não têm acesso à educação e à saúde públicas de qualidade, por exemplo.


Existe certa confusão acerca de que condutas possam ser qualificadas como "corrupção" (chama-se isso de confusão designativa - o que é, até certo ponto, normal dentro da política). O consenso que se pode notar é o de que, ao termo "corrupção", se relacionam as condutas que, de uma forma ou de outra, violam as regras do "jogo social" - regras essas que não precisam estar necessariamente ligadas a sanções de ordem jurídico-positiva. Isso porque se reconhecem como corruptas tanto as ações de desviar dinheiro público (que é um crime, logo previsto em lei) quanto de furar a fila do banco (que não é crime, mas apenas uma conduta "anti-ética"). "Corrupção", portanto, é um termo que possui um forte (senão exclusivo) cunho ético, sentimental: não precisa estar escrito em lugar nenhum para que se sinta que determinada atitude possa ser considerada "corrupta".

Quando a gente fala que alguém fez algo corrupto, queremos dizer, em geral, que aquela pessoa quis tirar vantagem de alguém, trapaceou, se deu bem às custas de outrem, porque é um espertalhão. Mesmo porque, por outro lado, a agressão física ou o homicídio, por exemplo, geralmente não são considerados atos de corrupção; da mesma forma, um incompetente/ingênuo não é um corrupto, porque não passa de um incapaz - sequer de enganar os outros.

Dito isso, fica claro que a existência da corrupção na sociedade não pode ser considerada coisa anormal, assim como a existência do crime. Violações dessa natureza sempre existiram e sempre existirão na sociedade, independente de qual seja. Então, contra qual corrupção as pessoas estão lutando quando se mobilizam, como se mobilizaram atualmente, em pacíficas passeatas e comícios (vide texto do Samuel) que "tomaram o Brasil inteiro nos últimos dias"?

O que se pode notar é um sentimento comum de que "não é possível que com tantos impostos pagos tão pouco se faça". A lógica popular aparece bem clara no seguinte silogismo: 1. Pagamos muitos impostos; 2. Ora, não achamos que os investimentos públicos são proporcionais aos impostos que pagamos; 3. Logo, algo errado está sendo feito por aqueles que administram nossos impostos, ou porque são incompetentes, ou porque são corruptos. Daí vem o seguinte raciocínio: ora, se foram espertos o suficiente para ganhar tantos votos e se elegerem, claro que não são incompetentes; logo, são corruptos.

Dessa forma, utilizando-se de tais raciocínios torna-se possível restringir a discussão ao problema da corrupção, deixando para trás uma série de outras variadas - e importantes - discussões políticas: o funcionamento da economia, a origem das desigualdades sociais, as relações entre o público e o privado e por aí vai.

Há um sentimento comum de que "é impossível que o sistema esteja errado, as pessoas é que são corruptas e, por isso, causam a ineficácia do sistema"; e de que "não há opção, o comunismo já faliu, nos resta o capitalismo" e que, por isso, "devemos nos esforçar para que o capitalismo dê certo". Daí porque sequer nos permitimos pensar sobre a relação entre a concentração de riquezas privadas e a miséria. Também não nos damos conta do poder detido pelas grandes empresas privadas - poder que, já se sabe há muito, torna submisso inclusive o próprio poder público na tomada de decisões.

A questão da corrupção, portanto, surge muito mais como uma cortina de fumaça que encobre as dificuldades estruturais do próprio sistema do que aquilo que impede que o sistema funcione "como deveria funcionar".

Corrupção é um conceito difuso: prova disso é que sequer sabemos, ao certo, quando e onde ela incide na administração pública, e geralmente não buscamos dados confiáveis acerca do patrimônio público disponível e das possibilidades/limitações em sua aplicação. Não basta afirmar que "pagamos trilhões de impostos", se não sabemos ao certo a real dimensão das possibilidades de investimento desse dinheiro, tomando em conta as despesas da própria máquina burocrática e as flutuações de valor que não dependem só do poder público.

Deixar a questão da corrupção dominar a discussão política é aceitar que essa cortina de fumaça nos force a ver um inimigo distante em detrimento da percepção dos inimigos próximos - que não são só as atitudes dos Prefeitos ou dos vereadores, mas podem também ser, por exemplo, os monopólios financeiros encarnados nas grandes empresas privadas que existem em todas as cidades.

Assim, acreditamos ser necessário repensar o próprio sistema econômico e suas falhas estruturais, não deixando que o problema da corrupção passe a ser o protagonista da discussão. Os problemas éticos por nós vividos podem muito bem ser uma consequência do próprio sistema e, apenas de uma maneira reflexa, das atitudes das pessoas.

Cíntia Tirloni Zandoná e Luís Henrique Kohl Camargo - GEDIS