terça-feira, 31 de março de 2015

5 reflexões sobre redução da maioridade penal no Brasil

Fonte: Estadão*
Hoje, 31/3/2015, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou a proposta de emenda à constituição que visa à redução da maioridade penal. Após isso, a proposta deverá ser debatida e finalmente votada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. Se a PEC for aprovada, a Constituição será modificada e as pessoas maiores de 16 anos poderão ser responsabilizadas penalmente. Na prática, isso quer dizer que um adolescente poderá ir para a cadeia caso cometa algum crime.

Sinto que há um grande número de pessoas apoiando essa medida. Essa massa raivosa é a gasolina de popularidade de que se nutrem os deputados que comemoram cada passo adiante dessa proposta. Se você faz parte desse contingente que acredita que a imputabilidade penal deve ser diminuída para 16 anos, peço permissão para lhe instigar algumas reflexões.

Primeiro: o sistema prisional funciona para os adultos? Não. Todos sabem que não. Há uma falta de estrutura geral, tanto física quanto pessoal. Os índices de reincidência são altíssimos. Nesse cenário, incrementar a população prisional seria algo benéfico ou prejudicial? Prejudicial, sem dúvidas. Logo, a redução da maioridade penal só vai lançar mais pessoas para um sistema que nem sequer está funcionando.

Segundo: uma criança de 10 anos é capaz de cometer crimes? Sim. Então, se você pensa que “hoje em dia pessoas de 16 anos são capazes de cometer crimes, mas ficam impunes”, seja ao menos coerente e lute de uma vez pela extinção da maioridade penal. Assim bebês que estressarem seus pais também poderão ir para a cadeia, talvez. E se você acha que cadeia é lugar para se vingar de uma pessoa, procure ajuda para descarregar essa raiva. O Estado não é um psicólogo para aliviar a raiva alheia. O Estado existe para organizar a sociedade e tratar todos de forma igual – no “todos” também se incluem aqueles que cometem crimes.

Terceiro: adolescentes de 16 anos devem ter permissão para dirigir? Se você acha que não, mas torce pela redução da maioridade penal, reveja seus conceitos. Possibilidade de ir para a cadeia é algo muito mais sério do que possibilidade de sentar atrás de um volante.

Quarto: você pensa que no Brasil os adolescentes não respondem pelos seus atos? Ledo engano. Como na maioria dos países do mundo inteiro, o Brasil tem um código específico para punir condutas praticadas por adolescentes (trata-se do Estatuto da Criança e do Adolescente). Adolescentes que praticam atos graves (como homicídio, estupro etc) podem ser punidos até com o internamento, que na prática é uma prisão especializada para adolescentes.

Quinto: em vez de pensar em punir adolescentes, por que não focar em prepará-los melhor? Por que não pensar em dar mais estrutura aos pequenos? Por que retroceder? A estratégia do encarceramento apraz mais àqueles que estão mais dispostos a esconder o problema do que a enfrentá-lo com coragem e humanidade.

Luís Henrique Kohl Camargo - Gedis

*Link da foto: http://img.estadao.com.br/resources/jpg/3/8/1427822593583.jpg

quinta-feira, 26 de março de 2015

5 argumentos reacionários ao reconhecimento do direito de adoção por casais homossexuais pelo STF

Semana passada, o Supremo Tribunal Federal (o mesmo que julgou o mensalão) reconheceu pela primeira vez na história o direito de adoção por casais homossexuais. Até então, o Brasil contava apenas com decisões de juízes de primeiro grau decidindo dessa forma. A tendência é que essa decisão desencadeie um efeito cascata no Brasil inteiro, vinculando todos os juízes a decidirem dessa mesma forma.

Mas toda boa novidade não pode vir desacompanhada dos bons e velhos jargões reacionários, aquela argumentação solipsista (e não raro recalcada) daquele sujeito que coloca seus valores e crenças à frente dos direitos da outra pessoa.

É possível prever alguns argumentos assim. Vamos lá.

1) O argumento pedagógico: "as crianças criadas por homossexuais aprenderão que homossexualismo é certo e tenderão assim a serem homossexuais também no futuro" – ora, se fosse assim os homossexuais nem existiriam, pois afinal o que eles aprenderam com os casais heterossexuais de onde vieram? Na verdade, seguindo esse raciocínio, dramática mesmo seria a situação de quem foi criado só pelo pai ou só pela mãe: sem dúvida essa pessoa aprende que o certo é viver sozinho e não ter relações com outras pessoas. Morre virgem.

2) O argumento religioso: "a família criada por deus é homem e mulher" – ok, e quem não acredita nisso, como fica? E quem não acredita em deus? E quem acredita em Zeus, um deus fanfarrão que teve várias paixões? Você, mulher, concordaria que seu marido tivesse várias esposas caso ele acreditasse no alcorão? Pensando assim, teria que ter um modelo de família para cada crença. Mas não, adoção não é religião, pois o Estado é laico. Uma coisa é crença, outra é direito. Não há respaldo jurídico nenhum para que uma crença religiosa por si só limite um direito, tanto mais quando se trata de uma questão tão íntima quanto aquelas relativas às famílias.

3) O argumento pseudo-protetor: "a criança adotada por homossexuais sofrerá preconceito na escola" – se pensarmos assim, o correto seria evitar que as crianças com deficiência saíssem em público, porque elas também são alvo de preconceito por parte de alguns. Casais de gordos e feios, então, adotar nem pensar: imagina quanto bullying sofrerá a criança! Obviamente o raciocínio está errado. Quem deve ser punido é quem pratica, não quem sofre, o preconceito.

4) O argumento malthusiano: “se o homossexualismo for aceito, não haverá mais reprodução (pois só reproduz homem com mulher) e assim a sociedade acabará” – muita calma nessa hora, champs. Quer dizer que a partir do momento em que as pessoas tolerarem conviver com homossexuais, todo mundo automaticamente será homossexual? Acho pouco provável... (segue um conselho amigável a quem pensa assim: vai ver com um especialista isso, resolve essa pendência e seja feliz!). Fosse seguir esse pensamento, o correto seria extinguir o celibato dos padres: vai que essa moda pega e ninguém mais queira fazer sexo. Não vamos mais reproduzir. Acabou.


5) O argumento tradicionalista: “sempre foi: homem e mulher” – para a pessoa que pensa assim bastaria ler “O Banquete”, de Platão: relatos de banquetes regados a filosofia, bebidas e orgia – só entre homens. Lá no tempo de Jesus os romanos também eram, digamos, bastante liberais em relação à homossexualidade masculina. Então não, não foi sempre homem e mulher.

Luís Henrique Kohl Camargo - Gedis

quinta-feira, 19 de março de 2015

O que se esconde detrás do 15 de março?

Nesse domingo, dia 15, ficou comprovado que o Brasil é um país onde há liberdade de expressão. Muitas pessoas saíram às ruas levantando bandeiras que iam desde luta contra a corrupção até impeachment da Dilma, temperadas inclusive por amedrontadoras manifestações pró-intervenção militar.

Foi interessante ver a manifestação política acontecer num clima de normalidade. Isso mostrou que a democracia brasileira está amadurecendo. O governo federal demonstrou desde o início absoluto respeito para com os manifestantes – muito embora em vários momentos esse respeito não tenha sido recíproco.

Não obstante, observa-se que as pautas da manifestação são bastante anêmicas. Impeachment é uma coisa para se falar, bradar, mas na prática, hoje, não tem elementos para acontecer. A luta contra a corrupção é uma luta vazia, pois ninguém é a favor da corrupção. Pedir penas mais duras para as práticas de corrupção também é pouco efetivo, pois a grande questão é o fato de a corrupção ser uma opção atrativa para as pessoas e isso a punição por si só é incapaz de modificar. A volta da ditadura militar (que eufemisticamente é chamada de “intervenção militar”) é um delírio, uma bobeira, uma medida sem o mínimo respaldo constitucional e portanto juridicamente impossível. Uma insubordinação militar desse porte seria algo juridicamente tão grave quanto uma invasão das Farc no Brasil.

Mas afinal, o que a fraqueza dessas pautas oculta?

O Brasil já passou momentos assim em outros períodos de nossa história. Esses períodos coincidem com os momentos em que os pobres tiveram mais poder de compra, em que o salário mínimo teve maior valor real. Os movimentos reacionários a isso são impulsionados por uma elite decadente que se identifica pelo padrão de consumo que consegue ostentar frente à classe pobre. Quanto mais o poder de consumo se equipara, maior a raiva. O perfil da população que participou das manifestações desse último domingo comprova essa afirmação: a maioria era composta de brancos que votaram em Aécio, preferem o PSDB e recebem mais de seis salários mínimos. Logicamente, como em todas as outras movimentações, alguns pobres acabam sempre absorvendo o discurso da elite decadente e terminam por levantar a mesma bandeira que ela, mas são a minoria dentro da manifestação.

Não é que a classe média decadente deseje que os pobres continuem sendo pobres. Ela pretende apenas manter seu parâmetro de identidade, que é construído pelo padrão de consumo em comparação à população pobre. É muito difícil para a classe média compreender que, enquanto o pobre ascendeu socialmente, ela estagnou (ainda que em uma posição social bastante confortável).

Diante disso, a leitura que faço é que essas pautas contra a corrupção (só a do PT), pedindo intervenção militar ou impeachment da Dilma servem para esconder um ressentimento incompreendido com a igualdade cada vez maior entre as classes sociais.

Luís Henrique Kohl Camargo - Gedis

quinta-feira, 12 de março de 2015

O cidadão de bem é um cidadão do mal

"O Cidadão de Bem" era o nome da revista da Ku Klux Klan
O sujeito autointitula-se cidadão de bem. Reputa-se honesto, correto. Do bem. Esse sujeito louva aqueles que pelo mérito conseguiram uma posição social de prestígio - o rastro desse vislumbramento é o desprezo àqueles que vivem na base. Aos criminosos, pede punição severa. O cidadão de bem não se importa com as péssimas condições da cadeia (alguns até gostam que seja assim), não se preocupa com o assaltantezinho amarrado nu no poste e pensa que bandido bem que merece levar uns tabefes da polícia. O cidadão de bem é um moralista, não raro religioso, que prega a eliminação de outros seres humanos (desde que eles tenham cometido crimes graves).

O cidadão de bem é um cidadão do mal. Ele reprime sua maldade mal resolvida e projeta-a em um determinado lugar da sociedade. Existe um lugar socialmente preparado para sofrer, para ser saco de pancada. É exatamente aí que o cidadão de bem projetará suas angústias. O processo funciona mais ou menos da seguinte forma.

Por exemplo: a pessoa interiorizou que decote é feio. Não usa decote, não chama atenção, sofre por isso. Lá no fundo ela queria transar de forma livre e sabe que isso inclui chamar atenção com seu corpo, como qualquer homem pode fazer. Ela não, ela é mulher, ela não pode. Ficaria feio para ela. Afinal, ela quer ser uma cidadã de bem. Então ela sofre, porque reprime seu desejo.

Consequentemente, essa pessoa passa a punir aquela outra pessoa que ousou usar decote. É bastante lógico: se não usar decote é algo "bom", usar decote é algo "mau". Pessoas boas fazem coisas boas, portanto as coisas más são feitas por pessoas más. O sujeito conclui, então, que usar decote é coisa de gente "má" (traduzo: sem vergonha, safada, vadia, vagabunda e todos os adjetivos pejorativos imagináveis). Gente má merece ser punida para aprender a virar gente do bem. A partir daí, o cidadão de bem aceitará de forma complacente a punição do diferente, para que ele se transforme em igual: afinal, se sou do bem, por que aceitaria conviver com alguém que é do mal?

O pano de fundo para esse raciocínio é a raiva. A pessoa que sofre por não ser livre tende a projetar naquele que é livre o peso da raiva contida pelo desejo reprimido. A pessoa dirá para a mulher do decote: "é por tua causa que não respeitam as mulheres! É por tua causa que estou sofrendo!", e aí manifestará sua raiva em relação a essa mulher.

Para manifestar raiva, é preciso antes desumanizar a pessoa alvo. É necessário colocá-la num escalão menor de qualidade, dizer que ela vale menos por agir de determinada forma. Aí, consegue-se aceitar mais tranquilamente que essa pessoa sofra. Passa-se a desejar que a pessoa sinta dor, que seja presa, que seja estuprada, que seja xingada, que perca o emprego. Tudo para aprender a ser correta tal qual o cidadão de bem.

Alguns moralistas até conseguem manter um clima "paz e amor", mas é no culto evangélico, na conversa de bar, nos comentários em redes sociais, na seleção de emprego que a coisa se revela.

O cidadão que se autodeclara "cidadão de bem" é, portanto, um cidadão de bem apenas para consigo mesmo e para quem é parecido com ele. Para ele, o resto é degradação moral, é ilícito, é sem vergonha, é anomalia - o "cidadão de bem" pratica o mal para as pessoas diferentes dele, unicamente porque, praticando o mal contra elas, o cidadão de bem acredita que um dia essas pessoas se tornarão assim, igual ele: boas, probas, ótimas, normais. Até que isso não aconteça, vale toda a maldade para fazer o diferente sofrer... até aprender a ser igual!

O maniqueísmo do "bem contra o mal" incapacita as pessoas, impossibilitando-as de ver a humanidade no outro. Para o cidadão de bem, o outro só é humano se não fizer nada muito grave. Se ele fizer algo errado, o outro passa a ser um "monstro" que merece sofrer. Por isso, o cidadão de bem é um cidadão do mal, mesmo sem se dar conta do mal que pratica contra o outro.

Luís Henrique Kohl Camargo - Gedis

domingo, 1 de março de 2015

15 de março: o falso discurso da corrupção


“Quando você fala em corrupção, o que lhe vem à cabeça?... plim!” Algo assim integrava o material de Aécio da campanha das eleições de 2014.

A campanha é genial. Contudo, observem: a sugestão só é possível porque a idéia de que o PT é o único partido corrupto do Brasil (ou talvez “o mais” corrupto) foi implantada com sucesso. Os caras perceberam que, da mesma forma que quando a Radija dizia “inxalá” na novela as pessoas iam às lojas comprar produtos indo-árabicos, essas mesmas pessoas também comprariam a ideia do antipetismo como moda se houvesse um esforço tendencioso por parte da grande mídia.

Observem que curioso: no ranking de partidos corruptos do Tribunal Superior Eleitoral, o PT está longe do primeiro colocado (p.s.: quem falar que o judiciário é vendido do PT sem dúvida não conhece o perfil do pessoal que trabalha dentro do fórum – e olha que eu trabalho lá!). Mesmo assim, o PT é sempre o único a ser ligado diretamente à corrupção.

Essa sugestão (“PT = corrupção”) vem sendo paulatinamente repetida na mídia e, por meio da repetição, tornou-se verdade. O efeito colateral é o surgimento de um falso discurso contra a corrupção, um discurso ideologicamente voltado apenas contra o PT.

Prezados leitores, atenção: não estou defendendo o PT. Estou apenas tentando lhes mostrar um fenômeno que, na minha opinião, é um obstáculo na luta contra a corrupção.

Percebo que esse falso discurso da corrupção está sendo encampado por aqueles sujeitos que (dizem) irão às ruas dia 15 de março. Todavia, ao que se vê de suas manifestações, esses sujeitos não estão nem um pouco preocupados com a questão real da corrupção. Se o estivessem, certamente não sairiam contra um único partido (pois eles sabem muito bem que há muitos partidos corruptos no Brasil) – pelo contrário: se esforçariam para que as pilantragens de todos os partidos fossem investigadas, mesmo aquelas encobertas pela grande mídia. Todavia, nenhuma bandeira denunciando o mensalão tucano, nenhuma bandeira sobre o trensalão etc etc etc.

Ao contrário do que querem fazer crer, esse 15 de março não é apartidário, porque possui uma ideologia: um dos sentidos de ideologia é aquilo que oculta alguma coisa da realidade em nome de uma ideia coletiva. No caso, oculta-se a corrupção dos outros partidos colocando a corrupção do PT em evidência.

Na verdade, esses indivíduos buscam apenas algo para ir contra o PT, e usam a corrupção porque sabem que não podem revelar o que realmente lhes causa desconforto: a ascensão de muita gente pobre, as possibilidades cada vez mais equiparadas, o fato de que os filhos da antiga classe média precisam disputar com alguém mais do que somente entre si. O curioso é que muitos antigos pobres compraram esse discurso: isso aconteceu porque eles ascenderam socialmente e passaram a transitar pelos mesmos círculos que a antiga classe média, absorvendo dela esse ódio irracional anti PT. O resultado: as fileiras antipetistas aumentaram, e contam inclusive com os antigos pobretões.

Ao contrário do que se prega por aí, o antipetismo é um obstáculo na luta contra a corrupção. Por detrás das reivindicações antipetistas, os demais partidos conseguem articular seus contatos com muito mais conforto, afinal sabem que não levarão a culpa (que será atribuída toda ao PT).

Estou do lado daqueles que lutam contra a corrupção. Se ficar comprovado que o PT agiu de forma corrupta, estou do lado daqueles que pedem a respectiva punição. Da mesma forma o faço com todos os outros partidos. Todavia, não sou tão inocente (ou cínico) quanto essas pessoas que pregam o impeachment como uma forma de avançar contra a corrupção.

Corrupção é endêmica. Enquanto não houver reforma política séria, a corrupção continuará movendo o país. Estranho que o 15 de março não inclua nada além de impeachment e verborragia na luta contra a corrupção. Bradam um discurso pouco efetivo em termos práticos, mas muito bem arquitetado em termos políticos.

Luís Henrique Kohl Camargo - Gedis