A
fuga
Autor: Eduardo Pianalto de
Azevedo
Ptolomeu estava pensativo e, meio
dormitando em sua poltrona espreguiçadeira, recordava os últimos dias de suas
férias. O retorno ao serviço não trouxeram qualquer prazer, embora faltassem
poucos anos para aposentadoria. Não tinham mais nenhuma vontade de trabalhar.
Tudo o irritava, impacientava. Jogava, religiosamente, na loteria na esperança
de ganhar um prêmio que lhe trouxesse a almejada estabilidade financeira e a
possibilidade de parar de trabalhar antes mesmo do tempo de aposentadoria. Não
escondia de ninguém seu desejo de parar. Queria estar com sua mulher e
aproveitar a vida. Seu resto de vida, como vivia a repetir.
“Vinte Conto” olhava o teto da cela.
Suas últimas leituras haviam trazido certo sentimento de desencanto,
desesperança. Não acreditava nos amigos, em suas mulheres, em ninguém. Sabia
que, por traz de cada gesto de atenção, de carinho, de gentileza, havia um
interesse. Inconsciente ou conscientemente todas as pessoas faziam as coisas em
troca de algo. Ainda que, para algumas, muito poucas, fossem em troca de amor.
Tinha medo. Não sabia dizer exatamente
de que, mas tinha medo. Tentava entender esse medo e, de certa forma, sabia que
resultava de sua consciência de estar totalmente só e que apenas dependia de si
próprio. Isso o prendia, limitava, mas também trazia a certeza de que qualquer
saída que houvesse dependeria de sua própria pessoa. Naquele momento, pensava
na liberdade, ainda que soubesse que esta mesma liberdade o condenaria a outra
prisão. Não, certamente, aquela em que estava, mas a que estaria para não
voltar mais aquela Penitenciária. Tinha vontade, desejo e determinação de
fugir, contudo não tinha qualquer plano concreto. Foi interrompido em seus
pensamentos por “Gafanhoto”, preso do final do Pavilhão. Fazia dias que vinha
adulando “Vinte Conto”, mas ainda não tivera coragem de pedir o que queria.
Fazia jus ao apelido. Sua magreza e, principalmente, seu rosto fino e um queixo
proeminente, lembravam um gafanhoto.
- E aí Chefia, “tava” querendo levar um
papo contigo.
- Diga “Gafanhoto”. Não enrola. Comigo o
papo é reto.
“Gafanhoto”, entretanto, preferiu
iniciar com algumas amenidades. Falou do torneio de truco, que “Vinte Conto”
participara e fora as finais. Perdera, segundo “Gafanhoto”, por causa de seu
parceiro que trucou errado. Conversou um pouco também sobre futebol, sobre
mulheres. Queixou-se de sua companheira: uma “nega” muito mimada. Contudo,
reconhecia sua culpa. Dera “balda” demais a mulher. Passou-se quase meia hora
nessa conversa mole até “Gafanhoto” falar o que queria. Precisava de dinheiro.
Tinha algum, mas era pouco para ajudar o irmão. Era gêmeo dele, mas apenas na
aparência física. Sempre trabalhou honestamente e o problema é que “Gafanhoto”
“metera umas broncas” e usara o nome do irmão, quando foi preso. Foram apenas
duas ocasiões, entretanto prejudicara muito seu irmão. Ele chegou a perder um
bom emprego na Prefeitura por que acreditaram que tinha antecedentes policiais.
Justamente as duas ocasiões em que foi preso e “se passou” por ele. Fizera por
justa causa, pois tinha mandado de prisão em seu nome e do irmão estava limpo.
Tinha uma dívida com ele. Precisava de dinheiro para pagar o advogado que
estava “limpando” o nome do irmão.
“Vinte Conto” conseguiu ouvir apenas o
início da conversa de “Gafanhoto”, depois, conseguia apenas pensar em seu plano
de fuga. Tinha a ideia geral. “Gafanhoto” é que, sem querer, auxiliara-o a
pensar um plano.
Deixou que conversasse um pouco mais e o
interrompeu:
- Qual é o valor que tu queres?
“Gafanhoto” ainda tentou fazer um pouco
de rodeio, mas “Vinte Conto” foi incisivo:
- O valor...qual o valor?
Era bem menos que imaginara.
- Vou te dar um endereço e tu pede, para
quem for lá, conversar com o “Beiço”. Diz para ele que é teu amigo. Manda o
“cara” falar o teu apelido e falar também o valor que foi buscar. A “grana” vai
estar à disposição a partir de segunda-feira, depois da visita de domingo.
- “Tô” emocionado com tua bondade, “
Vinte”.
- Não tem bondade nenhuma nisso,
“Gafanhoto”. Tem é uma dívida que vou te cobrar.
Despediram-se e “Vinte Conto”, meio sem
jeito, percebeu lágrimas correndo no rosto do preso. Até poderia ter
presenteado “Gafanhoto” com o dinheiro, mas tal gesto nem sempre era bem
entendido. Ademais: negócios eram negócios.
No seu terceiro dia de trabalho, depois
do retorno das férias, Ptolomeu ficou curioso para saber o que “Vinte Conto”
queria consigo. Fosse o que fosse, com certeza, não seria nada importante.
Novamente fazia as contas de quanto tempo faltava para sua aposentadoria. Era
uma coisa compulsiva. Talvez, um pouco, fosse por causa de sua companheira.
Tinha ciúmes, embora procurasse não demonstrar. Era uma mulher linda.
Morena, olhos esverdeados. Corpo
escultural. Chamava atenção. Mesmo sendo um homem bastante bonito, Ptolomeu era
bastante inseguro em relação a sua mulher. Chegava a duvidar que ela gostasse
dele, ainda que não encontrasse qualquer justificativa plausível para o fato de
estar com consigo. Era pobre e não tinha nada para oferecer a ela que não fosse
seu amor. Contudo, o fato de não saber onde ela estava, o que fazia, com quem
falava, enquanto trabalhava, deixava-lhe angustiado. Pensava sempre no pior:
que ela o estava traindo. Controlava-se ao máximo, mas estava sempre querendo
estar com ela e pensando que iria perdê-la. Sua aposentadoria, acreditava,
seria a solução. Era o que precisava para sua felicidade com ela, sua
exclusividade com ela.
Não era segredo para ninguém a obsessão
de Ptolomeu pela mulher. Todos comentavam, pois ele não conseguia se controlar.
Seu desejo de aposentadoria e suas reclamações pela falta de dinheiro eram
objeto de comentários até mesmo pelos presos. “Vinte Conto” conhecia bem este
perfil de homem. Não esquecia as brigas entre seu pai e sua mãe. Seu ciúme e
sua possessividade. Por vezes, tinha como se flashes do dia em que ele a matara
e, depois, se suicidara na sua frente e dos demais irmãos. Tinha apenas doze
anos de idade e aquilo, embora estivesse quase sempre esquecido, estava vivo em
sua memória. Saberia como tirar partido de Ptolomeu, pois, embora doloroso pela
lembrança, seria uma espécie de vingança a seu pai. Conhecia aquele tipo de
homem, sua obcessão. Era sua grande fraqueza, seria, para “Vinte Conto”, sua
enorme vantagem. Havia mandado um recado para Ptolomeu, mas ele ainda não o
atendera. Teve que mandar outros três recados até que fosse atendido.
- O que é que tu queres comigo? Ptolomeu
falava do outro lado da grade, embora a cela estivesse aberta, não entrou.
Ficou no corredor e fez sinal para que “Vinte” permanecesse onde estava.
Respondeu-lhe que ali não seria o lugar
adequado para conversarem e alcançou-lhe um celular. Falaria no dia seguinte,
quando Ptolomeu estivesse de folga. Marcou para as dez da noite e avisou-lhe
que teria de devolver o celular.
- Deixa que eu te ligo porque esse
celular é de crédito e o que fiquei comigo é de linha.
A conversa foi longa, mais longa que
“Vinte Conto” imaginava. Ptolomeu começou pedindo um milhão de dólares.
Insistia que o plano de “Vinte Conto” acabaria por fazê-lo perder o emprego e
necessitava ter o suficiente para sobreviver. Explicou-lhe qual era seu plano e
conseguiu tranquilizá-lo e demonstrar que, se desse tudo certo, no máximo,
sofreria uma punição administrativa, mas jamais seria demitido ou acusado de
qualquer crime.
Demorou ainda mais duas semanas até que
chegassem a um a acordo em cento e cinquenta mil, que seria paga em três vezes.
Uma entrada de trinta mil e, o restante, em duas prestações de sessenta e cinco
mil, após a fuga.
Não tinha receio da fuga. Tinha a quase
certeza de que tudo daria certo. Continuava, entretanto, preocupado com o
depois de sua fuga. Seria uma troca de prisões. De qualquer forma continuaria
preso. Preso a liberdade, a mantença dessa liberdade. Estaria preso a sua
constante e permanente fuga.
Avisou uma de suas mulheres para que
providenciasse, com a proprietária do Salão de Beleza que frequentava, o
material necessário e o profissional para execução de parte do plano. Tratariam
dos detalhes nas visitas seguintes.
Tinha em mãos a escala de serviço dos
agentes, fora fornecida pelo próprio Ptolomeu, e pode marcar a data para quando
ele estivesse no comando do Setor de Segurança e Revista dos visitantes. Dois
dias antes, simulou uma doença e teve prescrito repouso por uma semana, além de
diversos medicamentos. Na verdade, foi atendido por um enfermeiro, que se fez
passar por médico. Na confusão que era o Pronto Socorro, não foi difícil a
farsa, pois os dois agentes que o escoltaram não conheciam ninguém no hospital.
Custou-lhe dez mil reais, mas valeu a pena. Havia subornado dois enfermeiros.
Um encaminhou-lhe ao falso médico, que era o outro enfermeiro, sobrinho de uma
de suas sogras. Tudo corria como planejado. Agora teria direito a receber suas
visitas na cela.
Recebeu, no dia marcado, apenas a visita
de uma de suas mulheres, que estava acompanhada de seus dois filhos e uma irmã.
Não queria chamar a atenção para nada. Manteve o ritmo das visitas que sempre
recebia: suas mulheres e seus filhos e, por vezes, algum parente.
Não demorou muito e surgiram as pessoas
que esperava e que se passaram por visitantes de “Gafanhoto”, que pagava sua
dívida muito mais rápido que pensava e de forma baratíssima.
Um deles despiu-se, entregou sua roupa a
“Vinte Conto” e vestiu rapidamente o uniforme dele, tomou o remédio que “Vinte
Conto” forneceu-lhe e deitou-se em sua cama, onde permaneceria até que as
visitas irem embora. Estaria dormindo. Era seu álibi: Tinha sido abordado por
três presos que o obrigaram a tomar um remédio e acordara naquela cela. Não
lembrava mais nada.
O outro era o maquiador. Já tinha
consigo uma peruca pronta com o corte e cor de cabelo igual àquele por quem
“Vinte Conto” iria se passar. Uma prótese imitando a barriga, o bigode e a
barba deram o toque final à transformação. Não ficara igual, mas, com toda a
certeza, bastante parecido.
Dirigiu-se ao local onde se encontrava
“Gafanhoto” e permaneceu com ele e outros visitantes até o sinal de fim das
visitas. Tão logo se encerraram, juntou-se a sua mulher e filhos e demais
pessoas e dirigiu-se à saída. Ptolomeu, quando os viu, deu algumas ordens, aos
gritos, pedindo que as visitas apurassem o passo, que saíssem logo, sob
pretexto que ainda tinham que contar os presos. Gritou algumas palavras de
ordens a dois outros agentes, de forma a distraí-los.
“Vinte Conto” ficou admirado de seu
sangue frio. Sequer havia suado, como sempre acontecia quando ficava nervoso.
Sempre tivera certeza que tudo daria certo. Era simples demais; não tinha como
errar. Não conversou com a mulher, a cunhada e os filhos até chegar à casa que
pedira para ela alugar em nome de um irmão.
Acompanhou o noticiário por duas semanas
depois de sua fuga: nenhuma notícia. Somente quase um mês depois, soube,
através de um preso, que ganhara liberdade em razão de Livramento Condicional,
que haviam instaurado um inquérito policial e um processo administrativo para
apurar os fatos e os possíveis envolvidos. Entretanto, era voz corrente que
ninguém seria punido. O rapaz que ficara em seu lugar chegara a ser preso, mas
fora solto no dia seguinte.
Iria pagar o restante do valor combinado
a Ptolomeu a vista e não em duas parcelas como havia combinado. Estava
preocupado, mas feliz. Deu um sorriso meio forçado: Começava uma nova velha
vida.
* * *
Uma
nova política
Autor: Eduardo Pianalto de
Azevedo
“Vinte Conto” andava preocupado com a
notícia de mudança na Direção da Penitenciária. Mudanças nunca eram bem vindas,
pois sempre estavam antecedidas de insegurança, de instabilidade e a massa
carcerária ficava apreensiva e nervosa.
A troca de Diretor vinha sempre sucedida
de alterações na forma como os presos eram tratados, alterações nas visitas dos
familiares, comida e também mudanças nas chefias da carceragem e na indicação
dos “regalias”, presos que recebiam benesses dos carcereiros e, em
contrapartida, eram contemplados com trabalhos e funções privilegiadas no
estabelecimento penal.
- “Vinte Conto” quem tu achas que vai
assumir a Diretoria?
- Não tenho ideia, embora alguns digam
que possa ser o agente Demóstenes.
- O Chefe da Segurança?
- Ele mesmo. Isso me preocupa bastante.
- O “cara” é muito mau e bate sem dó e
piedade. Bate, às vezes, por bater. Acho até que ele é meio pirado.
- O pessoal até aceita apanhar, mas
quando os agentes tem razão. Agora, apanhar por nada...não está certo. Não se
pode bater sem o “cara” dever nada.
- Claro que não!
- Nossa sorte é que tem uma turma que
não gosta dele. Vamos esperar para ver. Segundo ouvi, até quarta-feira,
saberemos o nome do novo Diretor.
- Tu tens como reverter isso, “Vinte”?
Apenas olhou seu companheiro de cela,
mas não respondeu. Era óbvio que não tinha o que fazer, mas não podia admitir
isso. Por vezes, o melhor era nada fazer ou falar porque se algo acontecesse,
para o bem ou para o mal, acabavam creditando a seu poder. Aprendera que certas
ocasiões o melhor era nada dizer e nada fazer, embora sempre devesse insinuar
que poderia fazer algo.
Já haviam lhe dito que Demóstenes é quem
seria o novo Diretor, mas “Vinte Conto” aguardava a notícia oficial porque
sabia que, em política, as coisas podem mudar rápida e inesperadamente.
Na semana seguinte, confirmou-se o nome
de Demóstenes na Direção da Penitenciária. Ainda demorou quase um mês para que
assumisse aquela Direção. Reunidos todos os presos no pátio da Penitenciária, o
novo Diretor discursou sem muitos floreios. Disse que já o conheciam e também a
seus métodos, portanto, a partir de então, não haveria mais mordomias e a
disciplina seria “arrochada”. Todo preso teria seus direitos garantidos, mas
apenas os direitos, desde que cumprisse com todas suas obrigações.
Não queria se precipitar, portanto,
resolveu esperar um pouco e ver qual seriam as atitudes do novo Diretor.
Na semana seguinte, a nova Direção
começou a “dar sua cara”: redução no horário de visitas, rigor na revista dos
presos e visitantes e, por qualquer deslize, o “pau comia”.
Demóstenes, pessoalmente, comandava as
“seções de penitência”, como costumava denominar as surras aplicadas aos presos
que, depois, eram também colocados no isolamento. Não havia qualquer
procedimento administrativo na aplicação de tais penalidades, nenhum processo.
Nada. Inobstante a violência e a arbitrariedade, havia um fator positivo nessa
forma de agir, pois, em face a inexistência dos devidos procedimentos
administrativos, ninguém tinha perda de dias remidos, regressão de regime
prisional e outros efeitos legais decorrentes das denominadas faltas graves. Em
razão disso, a maioria dos presos não se mostrava propenso a denunciar ou
reclamar das arbitrariedades cometidas pelo novo administrador.
No entanto, “Vinte Conto” contabilizava
prejuízos. Seus canais de contato estavam reduzidos, pois podia apenas contar
com dois telefones celulares. Um que mantinha em sua cela escondido e outro que
estava na posse de um agente e que o alugava duas vezes por semana apenas para
conversar com família.
O rigor nas revistas e a transferência
de alguns agentes prisionais para outras unidades diminuiu o fornecimento de
drogas, pois teve reduzida para menos da metade a maconha que costumava
receber.
Não lidava com “crack” e nem cocaína
porque davam “fissura” e a abstinência, quando faltava droga, trazia inúmeros
problemas, notadamente agressões físicas que, não raro, acabavam em morte. A
bebida somente era autorizada em ocasiões especiais: aniversários e alguma
festividade, como o Natal ou saída de preso. Era preciso manter a ordem e a
disciplina. A maconha só “dava um barato bom”, como costumava justificar. Droga
do sossego, portanto era permitida.
“Vinte Conto” aproximou-se de Demóstenes
- estavam todos no “horário do sol” - de
mãos nas costas, postura de humildade e, principalmente, submissão, e
parabenizou-o pelo novo cargo. Enalteceu sua postura sempre rígida, mas justa e
disse-lhe que a Direção da Penitenciária era um merecido prêmio que fazia jus.
- Tua “tá” me gozando 345.810?
Não gostava de ser chamado pelo seu
número de matrícula, contudo essa era uma praxe no sistema prisional, onde
ninguém tinha mais nome e sempre era tratado pelo número de matrícula.
- Não Doutor! É um cargo que o senhor
merece e sempre lhe admirei.
- O que é que tu “tá” querendo? Fala
logo que não tenho tempo a perder.
- Aqui não é o lugar adequado, Doutor,
pois tem muita gente em volta.
- Depois do “recreio”, vou mandar te
levarem no meu gabinete para conversarmos.
“Vinte Conto” não disse nada, apenas
pediu licença e afastou-se. Precisaria ter muito cuidado na conversa com
Demóstenes, visto que o conhecia muito pouco. Faziam menos de dois anos que
viera trabalhar naquela Penitenciária e nunca mantivera contato mais próximo
com os presos, sempre se mantendo à distância de tudo, até mesmo de seus
colegas. O traço mais perceptível de sua personalidade, além dessa reserva com
tudo e todos, era o sadismo. Por qualquer pretexto estava batendo nos presos e
se podia perceber que fazia isso com gosto. Quando era desrespeitado, perdia a
cabeça, e batia nos presos onde se encontravam, sem nem tomar precaução com as
demais pessoas.
Dois dias depois, “Vinte Conto” foi levado,
algemado, à presença de Demóstenes, que o recebeu com os pés sobre a
escrivaninha. Não mandou que o preso sentasse, embora tivesse a seu lado uma
cadeira. Deixou que permanecesse algemado e de pé. Com certo desdém, disse-lhe
que já estava esperando por tal conversa, depois, ficou apenas olhando “Vinte
Conto” parado a sua frente por cerca de uns cinco minutos, sem nada falar,
quando então disse-lhe:
- Desembuche!
- Queria apenas colocar-me a sua
disposição.
Demóstenes levantou-se e olhou-o de
soslaio, aproximou-se do preso e colocou-se atrás dele e, com a boca quase
encostando em sua orelha, murmurou:
- Tu não vai ter moleza comigo
vagabundo. Não quero o teu dinheiro, não por que não precise, mas por uma
questão de princípios. Se é que tu sabes o que é isso! Tu vai ser tratado como
todos os presos, sem qualquer distinção.
“Vinte Conto” esboçou um gesto de falar,
entretanto foi interrompido por Demóstenes, que lhe disse que, na sua presença,
somente falaria quando tivesse permissão. Em seguida, chamou o agente que o
trouxera e mandou levá-lo para sua cela.
Quando chegou a sua cela, “Vinte Conto”
percebeu que tudo estava revirado, pois os agentes haviam realizado uma revista
no local, contudo, para sua sorte, não localizaram seu celular.
“Vinte Conto” não comentou nada, apenas
olhou para seu companheiro de cela e falou:
- “Sabonete”, avisa “pros” parceiros que
a bebida e os “bagulhos – disse referindo-se a cocaína e “crack” - estão
liberados. Quem conseguir trazer pode vender a vontade. Diz também que não
quero mais maconha: “Tá” proibida a venda!
“Vinte Conto” tinha plena confiança em
“Sabonete”. Sabia que ganhara seu apelido pelo fato de o julgarem muito
escorregadio, bajulador, pois vivia agradando todo mundo para “se dar bem”.
Contudo, conhecia-o suficientemente bem para saber que “Sabonete” era um
parceiro de fé, pois não costumava deixar seus amigos “na mão”. Além disso,
embora não aparentasse, era um sujeito muito valente.
À noite, quando da contagem dos presos,
“Vinte Conto” aproximou-se do agente Misael e o sondou sobre o novo Diretor.
Ficou satisfeito com o que ouviu. Havia muito agentes insatisfeitos, não só por
terem perdido alguns “esquemas” com os presos, como aluguel e venda de
celulares, além de outras mordomias, mas também pelo perfil extremamente
autoritário e violento do Diretor. Havia um clima de insatisfação, embora
curiosamente, muito mais por parte dos agentes do que pelos presos. A notícia
de liberação das drogas e bebidas trouxe certa euforia para maioria dos presos,
ainda que com uma maior rigidez na disciplina e revista, sempre existiam
possibilidades de “negócios” para todos.
Em menos de duas semanas, o Presídio
começou a “pegar fogo”, a bebida e as drogas deflagraram uma série de brigas
entre os presos. A maioria por causa da embriaguez e algumas por disputas de
pontos de venda de drogas e cobranças por dívidas, mas “Vinte Conto” sabia que
isso não bastava. Lá fora, atribuiriam todo esse clima a mudança de Direção e a
rigidez disciplinar de Demóstenes e, principalmente, com a supressão de
mordomias de alguns presos. Tinha consciência que era preciso sensibilizar a
mídia. Deu nova tarefa a “Sabonete”:
- Levanta “prá” mim quem é que “tá
prometido”, mas quero uma “treta” forte. Coisa séria. Juramento de morte.
Na tarde do dia seguinte, “Sabonete”
trouxe a informação:
- “Vinte Conto” a “treta” forte e “dum
pessoal” do Pavilhão Seis com um “tal de Alemão”, aqui do nosso Pavilhão.
- É coisa pessoal?
- Negativo, segundo sei, foi problema da
divisão de um roubo. Parece que o “tal de Alemão” deu “um cano” nos parceiros.
Ficou com mais da metade do dinheiro roubado – assaltaram um banco – e ainda
fez dividirem com ele o resto. Os “caras” somente souberam disso depois e,
agora, querem acabar com ele. O “Alemão” está apavorado e quase nem sai da
cela. Fica o tempo todo se cuidando.
- É muito dinheiro?
- Nem tanto. Coisa de cerca de setenta
mil reais.
- Vou falar com os “caras” do Pavilhão
Seis e tu vai junto. Será amanhã.
No dia seguinte, com auxílio do agente
Misael, “Vinte Conto” conseguiu conversar com o pessoal do Pavilhão Seis e
acertou o pagamento da dívida, contudo teve apenas acertado que “Alemão” não
seria mais morto ali na Penitenciária, mas, na rua, teria seu castigo. Uma
coisa era certa: não seria morto. Enquanto estivesse preso, estava liberado até
mesmo do futuro castigo.
Á tarde do mesmo dia, “Vinte Conto”
recebeu a visita de “Alemão”, um negro magrinho, baixinho, meio careca, que
tinha um sorriso cativante e uma “cara” de malandro, meio debochado, mas uma
pessoa extremamente simpática.
Foi direto no assunto, disse que iria
comprar a dívida dele com o pessoal do Pavilhão Seis e que conseguiria que
tivesse a vida poupada – embora isso já tivesse sido feito – entretanto,
precisava de um favor, o que, provavelmente, lhe renderia uma boa surra.
“Alemão, inicialmente, relutou em aceitar a proposta, contudo sabia que se não
o fizesse teria mais outra “treta” para resolver. Como tinha boas referências
de “Vinte Conto” e também sua garantia de vida, o sujeito mais respeitado da
Penitenciária, concordou em fazer o que lhe pedia.
Três semanas depois, “Vinte Conto”
saboreava as manchetes dos jornais – mandara comprar todos – sobre a demissão
de Demóstenes da Direção da Penitenciária, a quem apelidaram de “Carrasco do
Bom Retiro”, em alusão ao nome do bairro onde se localizava a Penitenciária. A
filmagem de Demóstenes surrando “Alemão” no pátio interno da Penitenciária, na
presença de diversos presos, apareceu em todos os canais de televisão do país e
até mesmo em alguns no estrangeiro. “Vinte Conto” lamentava apenas a perda de
seu celular que tivera de ser encaminhado à imprensa, pois fora nele que fizera
a filmagem.
“Alemão”, conforme se comprometera,
provocou o Diretor, chegando a cuspir-lhe no rosto. Apanhou muito. Chegou a ter
três costelas e dois dedos da mão direita quebrados e foi parar no hospital, em
razão do traumatismo crânio-encefálico também sofrido. Contudo, não voltara
mais para aquela Penitenciária, sob pretexto que poderia sofrer represálias dos
demais agentes. Dessa última notícia, “Vinte Conto” deu risada. Agora, tinha
outra preocupação: quem seria o novo Diretor. Havia boatos que poderia ser
Misael. Apenas boatos. “Vinte Conto” nem queria acreditar.
* * *
O
presente da debutante
Autor: Eduardo Pianalto de
Azevedo
- A filha do “Doutor” quer debutar, tu
vais ajudar?
- Estou pensando...não sei se ele
merece.
- A questão não é dele merecer ou não,
mas é da filha dele merecer.
- De certa forma tens razão. Entretanto,
ainda não decidi.
- Pensa bem “Vinte Conto”...pensa como
se fosse tua filha.
- Isso é chantagem. Isso é sacanagem
tua. Cai fora daqui!
“Vinte Conto” sentou na cama de cela e
lembrou-se da festa de debutante de uma de suas filhas. Ainda estava em
liberdade. Foi uma festança. Começou de manhã, com show de um grupo de pagode
e, à noite, um baile com uma dupla sertaneja. Alugou um estádio de futebol e a festa
foi aberta ao público. Contratou mais de cem seguranças, entre os quais alguns
policiais militares que, à paisana, fizeram a segurança da festividade. Mesmo
passados quase dez anos, ainda se fala daquela festa. Contudo, auxiliar
“Doutor” no “debut” da filha era coisa para ser muito pensada. Tinha
consciência que esse exibicionismo todo é que acabara por fudê-lo à medida que
criou inveja e trouxe à mídia até seu nome. Lembrava muito bem que, logo depois
da festa, passada pouco mais de uma semana, um jornal de grande circulação
estampou manchete sobre a festa que realizara para filha. Depois disso, não
teve mais sossego. Começou a “mordeção” dos policiais, tanto civis quanto
militares, além de ser considerado um dos maiores traficantes do Estado pela mídia.
Virou notícia e isto foi para mau os negócios.
Tinha consciência, depois disso tudo,
que o menos era mais. Entretanto, soubera tarde demais, pois já estava preso.
A época, seu “braço direito”, “Joca
Porrada”, foi quem mais o incentivou às ostentações de riqueza e, somente
depois de sua prisão, quando tentou assumir sua “boca de fumo”, é que “Vinte
Conto” percebeu que fora tudo premeditado. O cadáver de “Joca Porrada” ainda
repousa tranquilo entre os alicerces do prédio de três andares que construiu para
sua mãe e irmãos. Não têm remorsos e, tampouco, raiva ou alguma mágoa. Foi
apenas uma “treta” de negócios. Faz parte.
Tentava encontrar uma razão plausível
para ajudar no “debut” da filha de “Doutor”. “Doutor” era do Pavilhão Seis e
estava cumprindo pena por “assalto à Banco”, portanto, era preso de “responsa”.
Ganhara esse apelido porque fora Técnico de Enfermagem e chegara a tratar de
algumas lesões de alguns de seus parceiros de crimes, decorrentes de tiroteios
com a Polícia. Era um homem considerado e respeitado no meio. Sabia-se que
tinha trocado tiros com policiais por diversas vezes e, inclusive, já fora
baleado. Atribuía-se a ele a morte de um policial militar, durante um dos
“assaltos”, mas nunca fora processado por este crime. Somente o pessoal do
“meio” sabia que ele era o autor. Os
policiais nunca conseguiram provas contra ele. Um favor a “Doutor” repercutiria
bem entre os companheiros de cela, entretanto era necessário saber se ele
aceitaria tal favor. Tinha outro fato importante: qual o interesse do preso que
viera falar-lhe sobre a festa da filha de “Doutor”. Conhecia-o suficiente para
saber que ele estava querendo “fazer uma média”, pois se tratava de um
“ladrãozinho chinelo”.
No dia seguinte, em conversa com o
agente de plantão, soube que o preso que pedira a festa para filha de “Pastel”
estava para sair em livramento condicional em dois meses. Suas suspeitas se
confirmaram. O vagabundo estava mesmo querendo “fazer média” e, possivelmente,
buscando uma vaga no bando de “Doutor”. Tinha que tirar a limpo. Mandou um
recado que precisava falar com ele.
“Mixaria” estava bastante ansioso com o
benefício da liberdade que receberia, mas tinha consciência das dificuldades
que teria na rua. Seus pais eram falecidos e a única irmã que tinha o odiava.
Não o aceitava e, nas poucas oportunidades que a procurou, foi expulso de sua
casa. Sendo que numa delas, a última, sua irmã chamou a Polícia.
Vinha já há alguns meses conversando com
“Doutorl” e o sondando sobre a possibilidade de integrar seu bando, que ainda
atuava em crimes de “assalto”, embora, atualmente, estivessem mais dedicados ao
roubo de cargas.
Inventara uma amizade com “Vinte Conto”,
visto que apenas o conhecera, fora da prisão, de vista e de fama. Na prisão,
conversa algumas vezes com “Vinte Conto”, mas não fizera amizade com ele. Tinha
alguma afinidade por terem morado no mesmo bairro e terem alguns amigos em
comum. Com a finalidade de agradar “Doutor”, “cantara marra” de convencê-lo a
patrocinar a festa de debutantes da filha, que sabia ser o xodó da família. Era
filha única e bastante mimada. “Pastel” confidenciara-lhe estar com muito
remorso por não estar presente numa data tão importante para sua filha e também
pela impossibilidade de proporcionar-lhe a festa que merecia. Gastara demasiado
com os advogados.
“Mixaria” estava um pouco nervoso quando
foi falar com “Vinte Conto”, pois não acreditava que ele fizesse o que
solicitara. De certa forma, estava conformado e foi com bastante surpresa que
recebeu a notícia que teria seu pedido atendido. Entretanto, havia uma
condição: “Vinte Conto” queria ter uma conversa reservada com “Doutor”.
Dois dias depois, “Vinte Conto” entrava
na cela de “Doutor”, cumprimentaram-se e conversaram um pouco sobre futebol,
quando “Vinte Conto”, disse-lhe:
- O “papo é reto”. Não vou fazer
rodeios. O que prometi...tá prometido. É compromisso. Só preciso saber quanto e
para quem entrego a grana. Quero deixar também esclarecido que não estou
fazendo isso por causa do “Mixaria”. Conheço pouco e não confio, mas ele não
precisa saber disso. Tenho simpatia por ti e sei que tu és um “cara de fé”.
- Fico agradecido. Não esperava isso de
ti, pois nunca fomos parceiros e mal nos conhecemos. Vou ficar te devendo esta
parada.
- Vai mesmo. Vais ficar devendo porque
isso não será presente. É empréstimo. Acho bonito teu sentimento com tua filha,
mas ela é tua filha e nada minha. Logo, “Doutor”, comigo é negócio. Os
sentimentos são bonitos. Enfeitam a vida, mas não garantem o “ganha pão”.
- “Tô” sabendo. Já tinham me falado que
tu é um homem de negócios.
- Não! Sou apenas prático. Não sei
quando tu vais pagar e nem qual será o preço, mas tenhas certeza que é uma
dívida que poderá ser quitada por ti. Estará ao teu alcance.
Apertaram-se as mãos e “Vinte Conto”
voltou para sua galeria. Três dias depois, através de seu pessoal, “Vinte
Conto” depositou trinta mil reais na conta indicada e mandou um bilhete para
“Doutor”, que foi entregue pelo “Mixaria”, onde apenas estava escrito o
seguinte: “Os cincão a mais é presente”.
A dívida somente foi quitada quase um
ano depois, numa saída temporária de “Doutor”, no Natal, para visitar a
família.
Dois garotos, que eram “olheiros” de uma
das “bocas de fumo” de “Vinte Conto”, ficaram demasiadamente ambiciosos e
acabaram furtando uma razoável quantidade de droga. Venderam tudo e gastaram o
dinheiro em roupas, festa e mulheres. Pensaram que ninguém sabia e nem ia
desconfiar. Cada um teve uma perna fraturada e amputados dois dedos da mão
esquerda.
Segundo haviam lhe contado, as fraturas
e, principalmente, as amputações foram muito bem feitas e o apelido de “Doutor”
era, sem dúvida, merecido.
* * *
“Vinte
Conto”
Autor: Eduardo Pianalto de
Azevedo
“Vinte Conto” observava a chuva fina
caindo no pátio da Penitenciária, enquanto aguardava a entrada em sua cela do
próximo preso.
- “Vô direto no assunto “Vinte Conto”?
- É melhor. Simplifica tudo e ajuda a
pensar melhor.
- A questão é que o “Nega Maluca” não
que dá mais o “rabo” prá eu.
- Qual a justificativa que ele te deu?
- Não interessa a justificativa “Vinte”,
pois o “cara” é putão. E, se é putão, tem que “fudê” sem “fazê” muita
“pregunta” e “inxigência”.
- Não é bem assim. O “cara” têm os seus
direitos. Tu maltratou ele?
- Claro que não! Até faço uns carinhos
no “Nega” e, quando “tô” muito na precisão, até “rola” uns beijinhos.
- Acontece, malandro, que “di grátis”, o
“Nega” “dá” só pro macho dele. Pelo que me falaram, tu “deu um sete um” no
“Nega” e “qué come ele sem pagá nada”.
- Quem me alcaguetô, “Vinte”?
- Ô malandro, sem essa! Tu “tá cansado
de sabê” que nesse lugar não tem segredo. O “papo contigo é reto”: tu só volta
a comê o “Nega”, depois de saldar tua dívida e paga as trepadas que tu der.
- Poxa, “Vinte”, é que “tô na precisão”
e também sem dinheiro!
- Então, malandro, vai “batê” punheta.
Teu assunto “tá” resolvido. Cai fora!
Foi avisado que aquele era seu último
cliente. Somando suas entradas e saídas, já estava cumprindo pena havia sete
anos e ainda teria que cumprir mais uns dez anos para obter algum benefício.
Tinha consciência que não havia injustiça em suas condenações. Apenas lamentava
que muitas mais pessoas tinham cometidos mais crimes que ele e pegaram penas
bastante menores. Um pouco da culpa era de seus advogados e outro pouco era
sua, pois vacilara e deixara muitas pistas e provas contra si.
Não podia se queixar, embora tudo
custasse muita “grana”, tinha uma vida mansa na Penitenciária. Recebia visitas
íntimas praticamente quando queria e nada lhe faltava, exceto a liberdade.
Por outro lado, tinha razões para
acreditar que, mesmo preso, estava mais seguro que se estivesse livre e
continuava a administrar seus “negócios” da mesma forma quando estava em
liberdade. Ainda que, de outra forma, não perdera seu poder e influência. Até
pelo contrário, a condição de preso trouxera-lhe um prestígio que desconhecia,
mas apreciava. Naquele lugar, era praticamente um rei e isto, de certa maneira,
o recompensava pela liberdade que não possuía. Pelo que havia lido, liberdade
significava não ser submetido ao poder de outro, de ter pleno poder sobre si
mesmo e seus atos. “Vinte Conto” sabia que tinha pleno poder sobre si mesmo e
sobre os outros e não se submetia a ninguém. Logo, era livre. Tinha liberdade.
O fato de estar restrito aquele lugar não significava que não tinha liberdade.
Lembrava-se de também ter lido um autor que falava apenas em liberdades
parciais, visto que esta somente existia na possibilidade do homem realizar-se
no mundo material e, neste, obviamente, estava sempre limitado.
A leitura passara a ser um de seus
passatempos prediletos e o resultado era os quase trezentos livros doados por
ele que compunham a biblioteca da Penitenciária. Obviamente não lera todos,
mas, por suas contas, mais da metade.
Aprendera muito com os livros e
acalentava a ideia de, quando saísse da prisão, voltar a estudar. Terminaria o
segundo grau e faria uma faculdade.
No dia seguinte, um dos carcereiros
comentou com “Vinte Conto” que um funcionário do Setor Jurídico estava com a
mãe doente. Ela tinha câncer e precisava tomar um remédio importado. Ele havia
ingressado na justiça com uma ação para que o Estado desse o remédio, mas o
juiz não dera a liminar e tivera que comprá-lo. Chegara a fazer um empréstimo
para adquirir o remédio.
- Quem é o “cara” carcereiro?
- É o Ximenes, aquele ruivo. Lembra?
- O que conseguiu aquela saída
temporária em que eu fugi?
- Aquele mesmo.
- Como é o nome do remédio e onde é que
se compra?
O carcereiro falou-lhe o nome do remédio
e indicou a farmácia onde Ximenes havia comprado o medicamento.
“Vinte Conto” ouviu atentamente. Pegou
um pedaço de papel e fez uma anotação e perguntou ao carcereiro:
- Tu consegues uma visita prá mim
amanhã?
- Quem virá te visitar?
- Vai ser uma das minhas sogras...a
Jurema, mãe da Virgínia.
- Vou providenciar, mas vai ser uma
visita de apenas meia hora. Tudo bem?
- Ok. Dez minutos bastam.
Dois dias depois da visita, “Vinte
Conto” fez contato com o carcereiro e disse-lhe para ir na “Baixada dos
Pinheiros”, no Bar do Noca, e falasse com o “Nego Beiço” sobre a encomenda para
o “Vinte Conto”.
- Tu não ”vai me por numa fria”,
“Vinte”?
- É limpeza. Tens minha palavra.
No dia seguinte, Ximenes foi até a cela
de “Vinte Conto”. Chegou de mansinho. Falou sobre o tempo, futebol e perguntou
pela família. Uma conversa monossilábica, que terminou com Ximenes agradecendo
pelas vinte e seis caixas de medicamentos para sua mãe. Ficou ainda uns minutos
sem dizer nada, depois, já com um sorriso no rosto, mas com a voz embargada,
limpando as lágrimas, Ximenes falou quase num sussurro:
- Desse jeito, acho que nem seria
preciso entrar na Justiça. Fico te devendo essa “Vinte”!
No fim de semana seguinte, por ocasião
das visitas, um de seus sobrinhos entregou-lhe um jornal, dizendo que um dos
carcereiros do “setor de revista” pedira para lhe entregar: era um presente.
“Vinte Conto” abriu o jornal e deu
apenas uma olhada no noticiário policial, onde uma notícia sobre um “assalto” a
uma farmácia estava assinalado com caneta vermelha. Não precisou ler a notícia,
pois a conhecia suficientemente bem. Jogou o jornal em cima do catre e falou
para o sobrinho:
- Moleque, quando tu saíres, diz “pro”
carcereiro que “tô” agradecendo o presente.
* * *
Questão
de fé
Autor: Eduardo Pianalto de
Azevedo
Estava bastante cansado. Aquelas
pregações davam-lhe muito prazer, pois estimulavam seu ego. O domínio sobre as
pessoas fazia-lhe bem. Sentia-se poderoso. Contudo, estava começando a ficar
muito cansado ao final de cada culto, mesmo tendo limitado suas pregações a uma
por dia.
- Pastor Pokaphe, a arrecadação do
dízimo tem diminuído sensivelmente de uns quatro meses para cá.
- Já havia percebido, pois tenho sempre
acompanhado nossas estatísticas. Muito embora não se tenha percebido, estamos
diante de uma inflação bastante grande para os parâmetros anteriores.
- Não podemos esquecer, Pastor, que
também temos uma concorrência cada vez maior.
- Estás te referindo a Igreja da
Iluminada Congregação dos Filhos do Senhor?
- Exatamente. Temos perdido devotos para
a nova igreja. Eu já havia lhe avisado que isso iria ocorrer, pois o pastor
deles é bastante carismático.
- Acredito tê-lo subestimado, mas vou
tomar providências.
Essa era parte que menos prazer trazia:
administração dos problemas e toda burocracia envolvida. Não tinha, na verdade,
maiores preocupação com o dinheiro, pois, o que perdia na arrecadação, não
fazia nenhuma diferença. A questão era sua vaidade. Entretanto, deveria agir
com cautela e sem quaisquer exageros ou mesmo apelação. Encarava como um
desafio pessoal e de fé, consequentemente, teria que atender as regras éticas e
religiosas recomendadas num confronto dessa ordem.
No dia seguinte, faria sua visita semanal
na Penitenciária Agrícola. Precisava preparar-se. Embora estivesse acostumado
com visitas a estabelecimentos penais, não se sentia bem naqueles locais. O
cheiro incomodava-lhe bastante, principalmente da creolina usada na limpeza.
Tinha também uma sensação estranha, pois parecia sempre observar um clima de
tensão, de nervosismo e ansiedade. Entretanto, a receptividade dos presos e até
mesmo dos agentes prisionais, o estimulavam. Compensavam os dissabores.
Negava-se a levar drogas, armas,
celulares ou qualquer coisa que não fossem as mensagens e os recados vindos de
fora. Era imprescindível manter o nível, como costumava dizer para os presos.
Depois da pregação, misturou-se aos
sentenciados, como sempre fazia e permitia-lhe manter disfarçadamente contato
com os líderes ou seus “pombos-correios”, pois, se os agentes percebessem
contato muito frequente, poderiam desconfiar. De posse das informações, com
certo alívio, fez uma despedida geral, algumas bênçãos e dirigiu-se à portaria
do Presídio. Pediu para falar com o Diretor. Foi breve o encontro. Praticamente
resumiu-se numa saudação e na entrega do dinheiro. As mordomias de “Vinte
Conto” tinham seu preço.
Arrependeu-se de não ter conversado com
“Vinte Conto”, o principal líder daquele Presídio e de uma quadrilha de
traficantes da “Baixada dos Pinheiros”, onde se localizava seu templo
religioso. Tinha algumas questões a tratar com “Vinte Conto”, entre as quais,
onde aplicar a última remessa de dinheiro que recebera: imóveis ou dólares.
Preferia que fosse imóvel porque sempre
conseguia ficar com uma parcela no negócio...uma comissão, ainda que nunca
superior a dez por cento. Nunca havia
falado nada sobre a comissão para “Vinte Conto”, embora tivesse quase certeza
que ele soubesse. Os imóveis adquiridos ficavam em nome da igreja. Era forma de
burlar a Receita Federal e não despertar a atenção da Polícia. Cobrava uma
espécie de taxa mensal de “Vinte Conto” que, como garantia, tinha uma
procuração em nome de um “laranja”, com plenos poderes na administração dos bens
que estavam em nome da igreja, mas lhe pertenciam.
Evitava sempre que possível contatar
pessoalmente com “Vinte Conto”, por duas razões bastante plausíveis: uma era
para evitar que fizessem, no futuro, qualquer ligação sua com ele e o
associassem a quadrilha dele e a outra era por que não se sentia bem na
presença dele, pois mantinha um relacionamento secreto com uma das mulheres do
preso. Se ele soubesse, seria sua sentença de morte. Sempre que conversava com
“Vinte Conto”, lembrava-se de sua mulher confidenciando-lhe seus defeitos,
inclusive sua impotência sexual. Não amava Amélia, mulher de “Vinte Conto”, mas
tinha atração sexual muito forte por ela. Era uma mulher bastante ignorante,
entretanto era jovem, muito bonita e extremamente fogosa. Transpirava sexo.
Fazia apenas três meses que passaram a relacionar-se.
Saiu do Presídio e foi direto
encontrar-se com ela, que lhe havia telefonado e dizia ter uma notícia muito
importante. Os encontros davam-se num apartamento comprado pelo próprio Pokaphe
e colocado em seu próprio nome, com o dinheiro que desviava dos negócios que
celebrava em nome da igreja. Deveria ter sido colocado para alugar, mas, quando
o comprou, já iniciara seu romance com Amélia e reservara o imóvel para seus
encontros amorosos.
Quando chegou no apartamento, Amélia lá
se encontrava e o recebeu com a fisionomia bastante preocupada e, sem muitos
rodeios, declarou-lhe:
- Estou grávida de ti.
Ficou perplexo. A notícia atingiu-lhe
como uma bomba. Por alguns segundos ficou sem qualquer reação e, quase num
murmúrio, perguntou-lhe:
- Como podes ter certeza que é meu?
- É óbvio Pokaphe, pois é contigo que
tenho mantido relações sexuais.
- Mas tens também feito visitas íntimas
a “Vinte Conto”.
- Mas ele é impotente!
- Como? Se tu mesma me confidencias-te
que, quando transas com ele, pensas em mim.
- Ele é apenas impotente, mas consegue
transar.
- Isso não é possível! Se ele é
impotente, não podes estar grávida.
- Transar ele pode e sempre transou
bastante. Ele é impotente para ter filhos.
- Meu Deus, Amélia! Então ele não é
impotente, mas estéril!
- Não diz bobagem Pokaphe, estéril que
eu saiba é aparelho de som.
- Jesus Cristo, aparelho de som é
estéreo.
- Não é a mesma coisa?
- Claro que não irmã!
Viu-se, repentinamente, vendo-a apenas
como uma fiel. Acabara sua paixão. Tinha raiva, muita raiva e vontade de
dar-lhe uma surra. Matá-la? Não se imaginava matando-a. Não teria coragem. Só
havia uma saída.
- Vais tirar o nenê.
- Jamais. Sou evangélica, Pokaphe. Sou
crente da tua igreja e tu mesmo falas contra o aborto. É pecado, Pastor.
Ela chorava convulsivamente. Ficou
excitado. Começou a beijar-lhe. Ela protestou. Falou que jamais abortaria, que
seria melhor fugirem e outras coisas que não entendia mais, não ouvia mais. Foi
tirando-lhe a roupa e beijando-lhe o corpo inteiro. Ouvia sua voz como
murmúrios, ao longe. Ardia em desejo de possuí-la e o fez, depois, deitou-se ao
seu lado e dormiu. Foi pouco tempo. Uns dez ou quinze minutos, mas descansou.
Ficou aliviado. Acordou e não disse nada. Olhou-a como se fosse uma estranha.
Ainda chorava. Vestiu-se. Pensaria em algo. Acabaria convencendo-a a abortar,
entretanto precisava sondá-la.
- Como vais falar para ele de tua
gravidez?
- Não é o que mais me
preocupa...simplesmente vou dizer que estou grávida.
- Como pensas que ele vai aceitar isso?
- Meu medo maior é o que ele vai achar
de mim...como vou ficar.
- Como assim?
- Ele sempre disse que a melhor coisa
que tinha com a impotência dele é que meu corpo sempre estaria bonito...que eu
sempre estaria gostosa, com o corpo em forma... Agora, que vou ficar grávida, como vai ficar
o meu corpo...vou engordar...vou ficar feia...ele não vai aceitar!
- Deus do céu, Amélia! Ele vai ficar
furioso quando souber que tu o traíste.
- Ele nunca demonstrou ciúmes.
Percebeu que não adiantaria conversar
com ela. Era por demais burra. Jamais entenderia a dimensão de sua traição.
Amaldiçoou-se por ter se envolvido com ela. Burro mesmo...era ele. Estava
decidido a fazer aquele aborto. Soube que sua gravidez era de pouco mais de um
mês. Tinha tempo para fazer alguma coisa. Havia, pelo menos, uma coisa boa:
ninguém sabia da gravidez de Amélia. Segundo ela lhe confidenciara, não falara
sobre o assunto com ninguém, exceto com sua melhor amiga que era de toda
confiança.
Deitado em sua cela, “Vinte Conto”
recordava do tempo de moleque, quando iniciara no tráfico trabalhando,
primeiro, de “olheiro” e, depois, de “vapor”, quando ganhou o apelido porque
tudo que vendia tinha um preço: vinte conto. Na verdade, a droga que vendia
custava quinze reais, mas cobrava vinte para ficar com cinco para ele. Acabou
tomando uma surra porque um amigo, para quem confidenciara sua esperteza, o
alcaguetou. Parou de vender acima do preço, mas o apelido pegou.
Desde então, “Vinte Conto” sabia que
segredo entre dois, só matando um. Não fora com surpresa que recebera a notícia
da gravidez de Amélia. Conhecia-a o suficiente para saber que sua estupidez e
leviandade acabariam nisso. Conhecia suas mulheres o suficiente para saber em
quem confiar e contar. O que de fato o surpreendia era a identidade do amante
dela: Pastor Pokaphe. Gostava de Pokaphe, além do mais era seu sócio. Admirava
o modo como pregava. Tinha uma voz potente, parecia locutor de rádio. Às vezes
chegava a se emocionar com os sermões do pastor.
Contudo, não podia esquecer que,
certamente, na comunidade, todos já sabiam da traição e, mesmo para um preso, a
fama de “cornudo” não era nenhum elogio e nem admissível. Sabia que precisava
fazer algo, pois, na sua situação de liderança, era imprescindível tomar alguma
atitude. Tinha que dar bons exemplos.
O Missionário Praxedes, da Iluminada
Congregação dos Filhos do Senhor, estava muito feliz com o crescente número de
fiéis de sua igreja, porém já haviam lhe avisado que, em breve, teria problemas
com o Pastor Pokaphe, da Igreja do Evangelho Redentor. A notícia da evasão de
fiéis de Pokaphe para sua igreja repercutira bastante, mas era esperada.
Praxedes inovara bastante em sua missão
evangelizadora através de um trabalho intenso junto aos jovens, notadamente com
os adolescentes. Com ajuda de fiéis voluntários, passara atrair os jovens
utilizando-se de novos ritmos musicais, como funk e rap, em suas pregações e
reuniões dançantes promovidas por sua igreja, além de aulas de teatro, embora
sempre com temas religiosos. A presença dos jovens acabou por atrair também
alguns familiares.
Soubera de alguns boatos sobre Pokaphe a
respeito de seu envolvimento com o crime organizado, mas não acreditava. Nos
poucos contatos que tivera com ele, sempre foi tratado com respeito e
consideração. Admirava muito o carisma de Pokaphe que era também um excelente
orador, pois conseguia prender a atenção das pessoas e sensibilizá-las. Tinha
consciência das virtudes de Pokaphe e tivera que fazer um esforço muito grande
para atrair fiéis para seu templo.
Pokaphe não acreditava que “Vinte Conto”
mandasse matá-lo porque tinha muito a perder, tendo em vista que quase tudo que
ganhara e ganhava era administrado por ele. Contudo, em questões envolvendo a
vaidade masculina, melhor seria estar preparado para tudo. Caminhava distraído
e nem percebeu a caminhonete parar um pouco atrás de si, quando se deu conta,
dois homens prendiam seus braços e um terceiro apertava contra seu nariz e boca
um pano encharcado de clorofórmio.
Passada uma semana, o companheiro de
cela, interpelou “Vinte Conto”:
- Tu não achas que foi um exagero o que
“tu fez com o padreco”?
- Não! Não acho não. Poupei a vida dele.
- Porra, tu mandou cortar a garganta
dele!
- Não foi a garganta...se fosse, ele
tinha morrido. Mandei cortarem as cordas vocais.
- Pô, o cara ficou mudo! Não vai mais
poder pregar a palavra do Senhor.
“Vinte Conto” deu uma risada, mas não
disse nada. Apenas ficou pensando que Pokaphe poderia aprender libras e pregar
para os surdos-mudos. Deu graças a Deus que seu companheiro de cela nada
perguntou sobre Amélia. Ficou lembrando de seus seios fartos, de sua bunda
redonda, bem proporcionada, e de sua buceta quente e da vasta cabeleira de
pentelhos...tudo apodrecendo no fundo de um lago que nem sabia direito onde
era. Algumas lágrimas brotaram, mas logo se recompôs. Os negócios prosperavam e
tinha certeza de que tomara a decisão correta. Estava também esperançoso com a
notícia que seu advogado trouxera de que, no máximo, em dez meses conseguiria
uma saída temporária.
Oito meses depois, Praxedes estava
radiante com a unificação das duas igrejas. Jamais imaginara receber semelhante
convite de Pokaphe. Havia planos para construírem novos templos e, até mesmo,
já se pensava na possibilidade de adquirirem algum espaço na televisão. Não
sabia de onde Pokaphe conseguia tantos recursos, mas o salário fixo e a
percentagem na arrecadação do dízimo dos fiéis eliminava sua curiosidade, com
exceção da forma como Pokephe ficara mudo. Diziam que fora uma doença, outros
que fora uma surra e alguns chegaram até mesmo afirmar que ele tivera as cordas
vocais cortadas por vontade de Deus...contra quem blasfemara. Praxedes deu de
ombros e murmurou para si própria que um homem bom como aquele somente poderia
colher os bons frutos do Senhor e que ficassem mudos todos aqueles fofoqueiros
e hereges. Disse um “amém” em voz alta e fez um sinal da cruz.
Era véspera da saída temporária de
“Vinte Conto” e Pokaphe estava bastante ansioso. Até já adiantara um terço do
valor para os caras que iriam matá-lo logo que saísse da prisão. Pagaria com
prazer até mesmo o dobro do acertado, pois tudo que conseguira valia muito
mais, haja vista que, com a morte de “Vinte Conto”, ficaria com tudo.
“Vinte Conto” atravessou o portão da
Penitenciária e virou-se, embora não tenha feito nenhum gesto ou dito palavra,
estava se despedindo. Não voltaria jamais para aquele lugar. Olhou o relógio:
eram 11 horas da manhã. Atrasou-se propositalmente para sair da Penitenciária,
pois queria ter certeza da morte de Pokaphe e precisava ter um álibi para caso
o acusassem. Nem iria passar em sua casa, deixaria para depois. Tinha que ir ao
velório e precisava muito conversar com Praxedes.
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