Contos do Prof. Eduardo

A fuga
Autor: Eduardo Pianalto de Azevedo

Ptolomeu estava pensativo e, meio dormitando em sua poltrona espreguiçadeira, recordava os últimos dias de suas férias. O retorno ao serviço não trouxeram qualquer prazer, embora faltassem poucos anos para aposentadoria. Não tinham mais nenhuma vontade de trabalhar. Tudo o irritava, impacientava. Jogava, religiosamente, na loteria na esperança de ganhar um prêmio que lhe trouxesse a almejada estabilidade financeira e a possibilidade de parar de trabalhar antes mesmo do tempo de aposentadoria. Não escondia de ninguém seu desejo de parar. Queria estar com sua mulher e aproveitar a vida. Seu resto de vida, como vivia a repetir.
“Vinte Conto” olhava o teto da cela. Suas últimas leituras haviam trazido certo sentimento de desencanto, desesperança. Não acreditava nos amigos, em suas mulheres, em ninguém. Sabia que, por traz de cada gesto de atenção, de carinho, de gentileza, havia um interesse. Inconsciente ou conscientemente todas as pessoas faziam as coisas em troca de algo. Ainda que, para algumas, muito poucas, fossem em troca de amor.
Tinha medo. Não sabia dizer exatamente de que, mas tinha medo. Tentava entender esse medo e, de certa forma, sabia que resultava de sua consciência de estar totalmente só e que apenas dependia de si próprio. Isso o prendia, limitava, mas também trazia a certeza de que qualquer saída que houvesse dependeria de sua própria pessoa. Naquele momento, pensava na liberdade, ainda que soubesse que esta mesma liberdade o condenaria a outra prisão. Não, certamente, aquela em que estava, mas a que estaria para não voltar mais aquela Penitenciária. Tinha vontade, desejo e determinação de fugir, contudo não tinha qualquer plano concreto. Foi interrompido em seus pensamentos por “Gafanhoto”, preso do final do Pavilhão. Fazia dias que vinha adulando “Vinte Conto”, mas ainda não tivera coragem de pedir o que queria. Fazia jus ao apelido. Sua magreza e, principalmente, seu rosto fino e um queixo proeminente, lembravam um gafanhoto.
- E aí Chefia, “tava” querendo levar um papo contigo.
- Diga “Gafanhoto”. Não enrola. Comigo o papo é reto.
“Gafanhoto”, entretanto, preferiu iniciar com algumas amenidades. Falou do torneio de truco, que “Vinte Conto” participara e fora as finais. Perdera, segundo “Gafanhoto”, por causa de seu parceiro que trucou errado. Conversou um pouco também sobre futebol, sobre mulheres. Queixou-se de sua companheira: uma “nega” muito mimada. Contudo, reconhecia sua culpa. Dera “balda” demais a mulher. Passou-se quase meia hora nessa conversa mole até “Gafanhoto” falar o que queria. Precisava de dinheiro. Tinha algum, mas era pouco para ajudar o irmão. Era gêmeo dele, mas apenas na aparência física. Sempre trabalhou honestamente e o problema é que “Gafanhoto” “metera umas broncas” e usara o nome do irmão, quando foi preso. Foram apenas duas ocasiões, entretanto prejudicara muito seu irmão. Ele chegou a perder um bom emprego na Prefeitura por que acreditaram que tinha antecedentes policiais. Justamente as duas ocasiões em que foi preso e “se passou” por ele. Fizera por justa causa, pois tinha mandado de prisão em seu nome e do irmão estava limpo. Tinha uma dívida com ele. Precisava de dinheiro para pagar o advogado que estava “limpando” o nome do irmão.
“Vinte Conto” conseguiu ouvir apenas o início da conversa de “Gafanhoto”, depois, conseguia apenas pensar em seu plano de fuga. Tinha a ideia geral. “Gafanhoto” é que, sem querer, auxiliara-o a pensar um plano.
Deixou que conversasse um pouco mais e o interrompeu:
- Qual é o valor que tu queres?
“Gafanhoto” ainda tentou fazer um pouco de rodeio, mas “Vinte Conto” foi incisivo:
- O valor...qual o valor?
Era bem menos que imaginara.
- Vou te dar um endereço e tu pede, para quem for lá, conversar com o “Beiço”. Diz para ele que é teu amigo. Manda o “cara” falar o teu apelido e falar também o valor que foi buscar. A “grana” vai estar à disposição a partir de segunda-feira, depois da visita de domingo.
- “Tô” emocionado com tua bondade, “ Vinte”.
- Não tem bondade nenhuma nisso, “Gafanhoto”. Tem é uma dívida que vou te cobrar.
Despediram-se e “Vinte Conto”, meio sem jeito, percebeu lágrimas correndo no rosto do preso. Até poderia ter presenteado “Gafanhoto” com o dinheiro, mas tal gesto nem sempre era bem entendido. Ademais: negócios eram negócios.
No seu terceiro dia de trabalho, depois do retorno das férias, Ptolomeu ficou curioso para saber o que “Vinte Conto” queria consigo. Fosse o que fosse, com certeza, não seria nada importante. Novamente fazia as contas de quanto tempo faltava para sua aposentadoria. Era uma coisa compulsiva. Talvez, um pouco, fosse por causa de sua companheira. Tinha ciúmes, embora procurasse não demonstrar. Era uma mulher linda.
Morena, olhos esverdeados. Corpo escultural. Chamava atenção. Mesmo sendo um homem bastante bonito, Ptolomeu era bastante inseguro em relação a sua mulher. Chegava a duvidar que ela gostasse dele, ainda que não encontrasse qualquer justificativa plausível para o fato de estar com consigo. Era pobre e não tinha nada para oferecer a ela que não fosse seu amor. Contudo, o fato de não saber onde ela estava, o que fazia, com quem falava, enquanto trabalhava, deixava-lhe angustiado. Pensava sempre no pior: que ela o estava traindo. Controlava-se ao máximo, mas estava sempre querendo estar com ela e pensando que iria perdê-la. Sua aposentadoria, acreditava, seria a solução. Era o que precisava para sua felicidade com ela, sua exclusividade com ela.
Não era segredo para ninguém a obsessão de Ptolomeu pela mulher. Todos comentavam, pois ele não conseguia se controlar. Seu desejo de aposentadoria e suas reclamações pela falta de dinheiro eram objeto de comentários até mesmo pelos presos. “Vinte Conto” conhecia bem este perfil de homem. Não esquecia as brigas entre seu pai e sua mãe. Seu ciúme e sua possessividade. Por vezes, tinha como se flashes do dia em que ele a matara e, depois, se suicidara na sua frente e dos demais irmãos. Tinha apenas doze anos de idade e aquilo, embora estivesse quase sempre esquecido, estava vivo em sua memória. Saberia como tirar partido de Ptolomeu, pois, embora doloroso pela lembrança, seria uma espécie de vingança a seu pai. Conhecia aquele tipo de homem, sua obcessão. Era sua grande fraqueza, seria, para “Vinte Conto”, sua enorme vantagem. Havia mandado um recado para Ptolomeu, mas ele ainda não o atendera. Teve que mandar outros três recados até que fosse atendido.
- O que é que tu queres comigo? Ptolomeu falava do outro lado da grade, embora a cela estivesse aberta, não entrou. Ficou no corredor e fez sinal para que “Vinte” permanecesse onde estava.
Respondeu-lhe que ali não seria o lugar adequado para conversarem e alcançou-lhe um celular. Falaria no dia seguinte, quando Ptolomeu estivesse de folga. Marcou para as dez da noite e avisou-lhe que teria de devolver o celular.
- Deixa que eu te ligo porque esse celular é de crédito e o que fiquei comigo é de linha.
A conversa foi longa, mais longa que “Vinte Conto” imaginava. Ptolomeu começou pedindo um milhão de dólares. Insistia que o plano de “Vinte Conto” acabaria por fazê-lo perder o emprego e necessitava ter o suficiente para sobreviver. Explicou-lhe qual era seu plano e conseguiu tranquilizá-lo e demonstrar que, se desse tudo certo, no máximo, sofreria uma punição administrativa, mas jamais seria demitido ou acusado de qualquer crime.
Demorou ainda mais duas semanas até que chegassem a um a acordo em cento e cinquenta mil, que seria paga em três vezes. Uma entrada de trinta mil e, o restante, em duas prestações de sessenta e cinco mil, após a fuga.
Não tinha receio da fuga. Tinha a quase certeza de que tudo daria certo. Continuava, entretanto, preocupado com o depois de sua fuga. Seria uma troca de prisões. De qualquer forma continuaria preso. Preso a liberdade, a mantença dessa liberdade. Estaria preso a sua constante e permanente fuga.
Avisou uma de suas mulheres para que providenciasse, com a proprietária do Salão de Beleza que frequentava, o material necessário e o profissional para execução de parte do plano. Tratariam dos detalhes nas visitas seguintes.
Tinha em mãos a escala de serviço dos agentes, fora fornecida pelo próprio Ptolomeu, e pode marcar a data para quando ele estivesse no comando do Setor de Segurança e Revista dos visitantes. Dois dias antes, simulou uma doença e teve prescrito repouso por uma semana, além de diversos medicamentos. Na verdade, foi atendido por um enfermeiro, que se fez passar por médico. Na confusão que era o Pronto Socorro, não foi difícil a farsa, pois os dois agentes que o escoltaram não conheciam ninguém no hospital. Custou-lhe dez mil reais, mas valeu a pena. Havia subornado dois enfermeiros. Um encaminhou-lhe ao falso médico, que era o outro enfermeiro, sobrinho de uma de suas sogras. Tudo corria como planejado. Agora teria direito a receber suas visitas na cela.
Recebeu, no dia marcado, apenas a visita de uma de suas mulheres, que estava acompanhada de seus dois filhos e uma irmã. Não queria chamar a atenção para nada. Manteve o ritmo das visitas que sempre recebia: suas mulheres e seus filhos e, por vezes, algum parente.
Não demorou muito e surgiram as pessoas que esperava e que se passaram por visitantes de “Gafanhoto”, que pagava sua dívida muito mais rápido que pensava e de forma baratíssima.
Um deles despiu-se, entregou sua roupa a “Vinte Conto” e vestiu rapidamente o uniforme dele, tomou o remédio que “Vinte Conto” forneceu-lhe e deitou-se em sua cama, onde permaneceria até que as visitas irem embora. Estaria dormindo. Era seu álibi: Tinha sido abordado por três presos que o obrigaram a tomar um remédio e acordara naquela cela. Não lembrava mais nada.
O outro era o maquiador. Já tinha consigo uma peruca pronta com o corte e cor de cabelo igual àquele por quem “Vinte Conto” iria se passar. Uma prótese imitando a barriga, o bigode e a barba deram o toque final à transformação. Não ficara igual, mas, com toda a certeza, bastante parecido.
Dirigiu-se ao local onde se encontrava “Gafanhoto” e permaneceu com ele e outros visitantes até o sinal de fim das visitas. Tão logo se encerraram, juntou-se a sua mulher e filhos e demais pessoas e dirigiu-se à saída. Ptolomeu, quando os viu, deu algumas ordens, aos gritos, pedindo que as visitas apurassem o passo, que saíssem logo, sob pretexto que ainda tinham que contar os presos. Gritou algumas palavras de ordens a dois outros agentes, de forma a distraí-los.
“Vinte Conto” ficou admirado de seu sangue frio. Sequer havia suado, como sempre acontecia quando ficava nervoso. Sempre tivera certeza que tudo daria certo. Era simples demais; não tinha como errar. Não conversou com a mulher, a cunhada e os filhos até chegar à casa que pedira para ela alugar em nome de um irmão.
Acompanhou o noticiário por duas semanas depois de sua fuga: nenhuma notícia. Somente quase um mês depois, soube, através de um preso, que ganhara liberdade em razão de Livramento Condicional, que haviam instaurado um inquérito policial e um processo administrativo para apurar os fatos e os possíveis envolvidos. Entretanto, era voz corrente que ninguém seria punido. O rapaz que ficara em seu lugar chegara a ser preso, mas fora solto no dia seguinte.
Iria pagar o restante do valor combinado a Ptolomeu a vista e não em duas parcelas como havia combinado. Estava preocupado, mas feliz. Deu um sorriso meio forçado: Começava uma nova velha vida.


*  *  *



Uma nova política
Autor: Eduardo Pianalto de Azevedo

“Vinte Conto” andava preocupado com a notícia de mudança na Direção da Penitenciária. Mudanças nunca eram bem vindas, pois sempre estavam antecedidas de insegurança, de instabilidade e a massa carcerária ficava apreensiva e nervosa.
A troca de Diretor vinha sempre sucedida de alterações na forma como os presos eram tratados, alterações nas visitas dos familiares, comida e também mudanças nas chefias da carceragem e na indicação dos “regalias”, presos que recebiam benesses dos carcereiros e, em contrapartida, eram contemplados com trabalhos e funções privilegiadas no estabelecimento penal.
- “Vinte Conto” quem tu achas que vai assumir a Diretoria?
- Não tenho ideia, embora alguns digam que possa ser o agente Demóstenes.
- O Chefe da Segurança?
- Ele mesmo. Isso me preocupa bastante.
- O “cara” é muito mau e bate sem dó e piedade. Bate, às vezes, por bater. Acho até que ele é meio pirado.
- O pessoal até aceita apanhar, mas quando os agentes tem razão. Agora, apanhar por nada...não está certo. Não se pode bater sem o “cara” dever nada.
- Claro que não!
- Nossa sorte é que tem uma turma que não gosta dele. Vamos esperar para ver. Segundo ouvi, até quarta-feira, saberemos o nome do novo Diretor.
- Tu tens como reverter isso, “Vinte”?
Apenas olhou seu companheiro de cela, mas não respondeu. Era óbvio que não tinha o que fazer, mas não podia admitir isso. Por vezes, o melhor era nada fazer ou falar porque se algo acontecesse, para o bem ou para o mal, acabavam creditando a seu poder. Aprendera que certas ocasiões o melhor era nada dizer e nada fazer, embora sempre devesse insinuar que poderia fazer algo.
Já haviam lhe dito que Demóstenes é quem seria o novo Diretor, mas “Vinte Conto” aguardava a notícia oficial porque sabia que, em política, as coisas podem mudar rápida e inesperadamente.
Na semana seguinte, confirmou-se o nome de Demóstenes na Direção da Penitenciária. Ainda demorou quase um mês para que assumisse aquela Direção. Reunidos todos os presos no pátio da Penitenciária, o novo Diretor discursou sem muitos floreios. Disse que já o conheciam e também a seus métodos, portanto, a partir de então, não haveria mais mordomias e a disciplina seria “arrochada”. Todo preso teria seus direitos garantidos, mas apenas os direitos, desde que cumprisse com todas suas obrigações.
Não queria se precipitar, portanto, resolveu esperar um pouco e ver qual seriam as atitudes do novo Diretor.
Na semana seguinte, a nova Direção começou a “dar sua cara”: redução no horário de visitas, rigor na revista dos presos e visitantes e, por qualquer deslize, o “pau comia”.
Demóstenes, pessoalmente, comandava as “seções de penitência”, como costumava denominar as surras aplicadas aos presos que, depois, eram também colocados no isolamento. Não havia qualquer procedimento administrativo na aplicação de tais penalidades, nenhum processo. Nada. Inobstante a violência e a arbitrariedade, havia um fator positivo nessa forma de agir, pois, em face a inexistência dos devidos procedimentos administrativos, ninguém tinha perda de dias remidos, regressão de regime prisional e outros efeitos legais decorrentes das denominadas faltas graves. Em razão disso, a maioria dos presos não se mostrava propenso a denunciar ou reclamar das arbitrariedades cometidas pelo novo administrador.
No entanto, “Vinte Conto” contabilizava prejuízos. Seus canais de contato estavam reduzidos, pois podia apenas contar com dois telefones celulares. Um que mantinha em sua cela escondido e outro que estava na posse de um agente e que o alugava duas vezes por semana apenas para conversar com família.
O rigor nas revistas e a transferência de alguns agentes prisionais para outras unidades diminuiu o fornecimento de drogas, pois teve reduzida para menos da metade a maconha que costumava receber.
Não lidava com “crack” e nem cocaína porque davam “fissura” e a abstinência, quando faltava droga, trazia inúmeros problemas, notadamente agressões físicas que, não raro, acabavam em morte. A bebida somente era autorizada em ocasiões especiais: aniversários e alguma festividade, como o Natal ou saída de preso. Era preciso manter a ordem e a disciplina. A maconha só “dava um barato bom”, como costumava justificar. Droga do sossego, portanto era permitida.
“Vinte Conto” aproximou-se de Demóstenes -  estavam todos no “horário do sol” - de mãos nas costas, postura de humildade e, principalmente, submissão, e parabenizou-o pelo novo cargo. Enalteceu sua postura sempre rígida, mas justa e disse-lhe que a Direção da Penitenciária era um merecido prêmio que fazia jus.
- Tua “tá” me gozando 345.810?
Não gostava de ser chamado pelo seu número de matrícula, contudo essa era uma praxe no sistema prisional, onde ninguém tinha mais nome e sempre era tratado pelo número de matrícula.
- Não Doutor! É um cargo que o senhor merece e sempre lhe admirei.
- O que é que tu “tá” querendo? Fala logo que não tenho tempo a perder.
- Aqui não é o lugar adequado, Doutor, pois tem muita gente em volta.
- Depois do “recreio”, vou mandar te levarem no meu gabinete para conversarmos.
“Vinte Conto” não disse nada, apenas pediu licença e afastou-se. Precisaria ter muito cuidado na conversa com Demóstenes, visto que o conhecia muito pouco. Faziam menos de dois anos que viera trabalhar naquela Penitenciária e nunca mantivera contato mais próximo com os presos, sempre se mantendo à distância de tudo, até mesmo de seus colegas. O traço mais perceptível de sua personalidade, além dessa reserva com tudo e todos, era o sadismo. Por qualquer pretexto estava batendo nos presos e se podia perceber que fazia isso com gosto. Quando era desrespeitado, perdia a cabeça, e batia nos presos onde se encontravam, sem nem tomar precaução com as demais pessoas.
Dois dias depois, “Vinte Conto” foi levado, algemado, à presença de Demóstenes, que o recebeu com os pés sobre a escrivaninha. Não mandou que o preso sentasse, embora tivesse a seu lado uma cadeira. Deixou que permanecesse algemado e de pé. Com certo desdém, disse-lhe que já estava esperando por tal conversa, depois, ficou apenas olhando “Vinte Conto” parado a sua frente por cerca de uns cinco minutos, sem nada falar, quando então disse-lhe:
- Desembuche!
- Queria apenas colocar-me a sua disposição.
Demóstenes levantou-se e olhou-o de soslaio, aproximou-se do preso e colocou-se atrás dele e, com a boca quase encostando em sua orelha, murmurou:
- Tu não vai ter moleza comigo vagabundo. Não quero o teu dinheiro, não por que não precise, mas por uma questão de princípios. Se é que tu sabes o que é isso! Tu vai ser tratado como todos os presos, sem qualquer distinção.
“Vinte Conto” esboçou um gesto de falar, entretanto foi interrompido por Demóstenes, que lhe disse que, na sua presença, somente falaria quando tivesse permissão. Em seguida, chamou o agente que o trouxera e mandou levá-lo para sua cela.
Quando chegou a sua cela, “Vinte Conto” percebeu que tudo estava revirado, pois os agentes haviam realizado uma revista no local, contudo, para sua sorte, não localizaram seu celular.
“Vinte Conto” não comentou nada, apenas olhou para seu companheiro de cela e falou:
- “Sabonete”, avisa “pros” parceiros que a bebida e os “bagulhos – disse referindo-se a cocaína e “crack” - estão liberados. Quem conseguir trazer pode vender a vontade. Diz também que não quero mais maconha: “Tá” proibida a venda!
 “Vinte Conto” tinha plena confiança em “Sabonete”. Sabia que ganhara seu apelido pelo fato de o julgarem muito escorregadio, bajulador, pois vivia agradando todo mundo para “se dar bem”. Contudo, conhecia-o suficientemente bem para saber que “Sabonete” era um parceiro de fé, pois não costumava deixar seus amigos “na mão”. Além disso, embora não aparentasse, era um sujeito muito valente.
À noite, quando da contagem dos presos, “Vinte Conto” aproximou-se do agente Misael e o sondou sobre o novo Diretor. Ficou satisfeito com o que ouviu. Havia muito agentes insatisfeitos, não só por terem perdido alguns “esquemas” com os presos, como aluguel e venda de celulares, além de outras mordomias, mas também pelo perfil extremamente autoritário e violento do Diretor. Havia um clima de insatisfação, embora curiosamente, muito mais por parte dos agentes do que pelos presos. A notícia de liberação das drogas e bebidas trouxe certa euforia para maioria dos presos, ainda que com uma maior rigidez na disciplina e revista, sempre existiam possibilidades de “negócios” para todos.
Em menos de duas semanas, o Presídio começou a “pegar fogo”, a bebida e as drogas deflagraram uma série de brigas entre os presos. A maioria por causa da embriaguez e algumas por disputas de pontos de venda de drogas e cobranças por dívidas, mas “Vinte Conto” sabia que isso não bastava. Lá fora, atribuiriam todo esse clima a mudança de Direção e a rigidez disciplinar de Demóstenes e, principalmente, com a supressão de mordomias de alguns presos. Tinha consciência que era preciso sensibilizar a mídia. Deu nova tarefa a “Sabonete”:
- Levanta “prá” mim quem é que “tá prometido”, mas quero uma “treta” forte. Coisa séria. Juramento de morte.
Na tarde do dia seguinte, “Sabonete” trouxe a informação:
- “Vinte Conto” a “treta” forte e “dum pessoal” do Pavilhão Seis com um “tal de Alemão”, aqui do nosso Pavilhão.
- É coisa pessoal?
- Negativo, segundo sei, foi problema da divisão de um roubo. Parece que o “tal de Alemão” deu “um cano” nos parceiros. Ficou com mais da metade do dinheiro roubado – assaltaram um banco – e ainda fez dividirem com ele o resto. Os “caras” somente souberam disso depois e, agora, querem acabar com ele. O “Alemão” está apavorado e quase nem sai da cela. Fica o tempo todo se cuidando.
- É muito dinheiro?
- Nem tanto. Coisa de cerca de setenta mil reais.
- Vou falar com os “caras” do Pavilhão Seis e tu vai junto. Será amanhã.
No dia seguinte, com auxílio do agente Misael, “Vinte Conto” conseguiu conversar com o pessoal do Pavilhão Seis e acertou o pagamento da dívida, contudo teve apenas acertado que “Alemão” não seria mais morto ali na Penitenciária, mas, na rua, teria seu castigo. Uma coisa era certa: não seria morto. Enquanto estivesse preso, estava liberado até mesmo do futuro castigo.
Á tarde do mesmo dia, “Vinte Conto” recebeu a visita de “Alemão”, um negro magrinho, baixinho, meio careca, que tinha um sorriso cativante e uma “cara” de malandro, meio debochado, mas uma pessoa extremamente simpática.
Foi direto no assunto, disse que iria comprar a dívida dele com o pessoal do Pavilhão Seis e que conseguiria que tivesse a vida poupada – embora isso já tivesse sido feito – entretanto, precisava de um favor, o que, provavelmente, lhe renderia uma boa surra. “Alemão, inicialmente, relutou em aceitar a proposta, contudo sabia que se não o fizesse teria mais outra “treta” para resolver. Como tinha boas referências de “Vinte Conto” e também sua garantia de vida, o sujeito mais respeitado da Penitenciária, concordou em fazer o que lhe pedia.
Três semanas depois, “Vinte Conto” saboreava as manchetes dos jornais – mandara comprar todos – sobre a demissão de Demóstenes da Direção da Penitenciária, a quem apelidaram de “Carrasco do Bom Retiro”, em alusão ao nome do bairro onde se localizava a Penitenciária. A filmagem de Demóstenes surrando “Alemão” no pátio interno da Penitenciária, na presença de diversos presos, apareceu em todos os canais de televisão do país e até mesmo em alguns no estrangeiro. “Vinte Conto” lamentava apenas a perda de seu celular que tivera de ser encaminhado à imprensa, pois fora nele que fizera a filmagem.
“Alemão”, conforme se comprometera, provocou o Diretor, chegando a cuspir-lhe no rosto. Apanhou muito. Chegou a ter três costelas e dois dedos da mão direita quebrados e foi parar no hospital, em razão do traumatismo crânio-encefálico também sofrido. Contudo, não voltara mais para aquela Penitenciária, sob pretexto que poderia sofrer represálias dos demais agentes. Dessa última notícia, “Vinte Conto” deu risada. Agora, tinha outra preocupação: quem seria o novo Diretor. Havia boatos que poderia ser Misael. Apenas boatos. “Vinte Conto” nem queria acreditar.


*  *  *


O presente da debutante
Autor: Eduardo Pianalto de Azevedo

- A filha do “Doutor” quer debutar, tu vais ajudar?
- Estou pensando...não sei se ele merece.
- A questão não é dele merecer ou não, mas é da filha dele merecer.
- De certa forma tens razão. Entretanto, ainda não decidi.
- Pensa bem “Vinte Conto”...pensa como se fosse tua filha.
- Isso é chantagem. Isso é sacanagem tua. Cai fora daqui!
“Vinte Conto” sentou na cama de cela e lembrou-se da festa de debutante de uma de suas filhas. Ainda estava em liberdade. Foi uma festança. Começou de manhã, com show de um grupo de pagode e, à noite, um baile com uma dupla sertaneja. Alugou um estádio de futebol e a festa foi aberta ao público. Contratou mais de cem seguranças, entre os quais alguns policiais militares que, à paisana, fizeram a segurança da festividade. Mesmo passados quase dez anos, ainda se fala daquela festa. Contudo, auxiliar “Doutor” no “debut” da filha era coisa para ser muito pensada. Tinha consciência que esse exibicionismo todo é que acabara por fudê-lo à medida que criou inveja e trouxe à mídia até seu nome. Lembrava muito bem que, logo depois da festa, passada pouco mais de uma semana, um jornal de grande circulação estampou manchete sobre a festa que realizara para filha. Depois disso, não teve mais sossego. Começou a “mordeção” dos policiais, tanto civis quanto militares, além de ser considerado um dos maiores traficantes do Estado pela mídia. Virou notícia e isto foi para mau os negócios.
Tinha consciência, depois disso tudo, que o menos era mais. Entretanto, soubera tarde demais, pois já estava preso.
A época, seu “braço direito”, “Joca Porrada”, foi quem mais o incentivou às ostentações de riqueza e, somente depois de sua prisão, quando tentou assumir sua “boca de fumo”, é que “Vinte Conto” percebeu que fora tudo premeditado. O cadáver de “Joca Porrada” ainda repousa tranquilo entre os alicerces do prédio de três andares que construiu para sua mãe e irmãos. Não têm remorsos e, tampouco, raiva ou alguma mágoa. Foi apenas uma “treta” de negócios. Faz parte.
Tentava encontrar uma razão plausível para ajudar no “debut” da filha de “Doutor”. “Doutor” era do Pavilhão Seis e estava cumprindo pena por “assalto à Banco”, portanto, era preso de “responsa”. Ganhara esse apelido porque fora Técnico de Enfermagem e chegara a tratar de algumas lesões de alguns de seus parceiros de crimes, decorrentes de tiroteios com a Polícia. Era um homem considerado e respeitado no meio. Sabia-se que tinha trocado tiros com policiais por diversas vezes e, inclusive, já fora baleado. Atribuía-se a ele a morte de um policial militar, durante um dos “assaltos”, mas nunca fora processado por este crime. Somente o pessoal do “meio” sabia que ele era o autor.  Os policiais nunca conseguiram provas contra ele. Um favor a “Doutor” repercutiria bem entre os companheiros de cela, entretanto era necessário saber se ele aceitaria tal favor. Tinha outro fato importante: qual o interesse do preso que viera falar-lhe sobre a festa da filha de “Doutor”. Conhecia-o suficiente para saber que ele estava querendo “fazer uma média”, pois se tratava de um “ladrãozinho chinelo”.
No dia seguinte, em conversa com o agente de plantão, soube que o preso que pedira a festa para filha de “Pastel” estava para sair em livramento condicional em dois meses. Suas suspeitas se confirmaram. O vagabundo estava mesmo querendo “fazer média” e, possivelmente, buscando uma vaga no bando de “Doutor”. Tinha que tirar a limpo. Mandou um recado que precisava falar com ele.
“Mixaria” estava bastante ansioso com o benefício da liberdade que receberia, mas tinha consciência das dificuldades que teria na rua. Seus pais eram falecidos e a única irmã que tinha o odiava. Não o aceitava e, nas poucas oportunidades que a procurou, foi expulso de sua casa. Sendo que numa delas, a última, sua irmã chamou a Polícia.
Vinha já há alguns meses conversando com “Doutorl” e o sondando sobre a possibilidade de integrar seu bando, que ainda atuava em crimes de “assalto”, embora, atualmente, estivessem mais dedicados ao roubo de cargas.
Inventara uma amizade com “Vinte Conto”, visto que apenas o conhecera, fora da prisão, de vista e de fama. Na prisão, conversa algumas vezes com “Vinte Conto”, mas não fizera amizade com ele. Tinha alguma afinidade por terem morado no mesmo bairro e terem alguns amigos em comum. Com a finalidade de agradar “Doutor”, “cantara marra” de convencê-lo a patrocinar a festa de debutantes da filha, que sabia ser o xodó da família. Era filha única e bastante mimada. “Pastel” confidenciara-lhe estar com muito remorso por não estar presente numa data tão importante para sua filha e também pela impossibilidade de proporcionar-lhe a festa que merecia. Gastara demasiado com os advogados.
“Mixaria” estava um pouco nervoso quando foi falar com “Vinte Conto”, pois não acreditava que ele fizesse o que solicitara. De certa forma, estava conformado e foi com bastante surpresa que recebeu a notícia que teria seu pedido atendido. Entretanto, havia uma condição: “Vinte Conto” queria ter uma conversa reservada com “Doutor”.
Dois dias depois, “Vinte Conto” entrava na cela de “Doutor”, cumprimentaram-se e conversaram um pouco sobre futebol, quando “Vinte Conto”, disse-lhe:
- O “papo é reto”. Não vou fazer rodeios. O que prometi...tá prometido. É compromisso. Só preciso saber quanto e para quem entrego a grana. Quero deixar também esclarecido que não estou fazendo isso por causa do “Mixaria”. Conheço pouco e não confio, mas ele não precisa saber disso. Tenho simpatia por ti e sei que tu és um “cara de fé”.
- Fico agradecido. Não esperava isso de ti, pois nunca fomos parceiros e mal nos conhecemos. Vou ficar te devendo esta parada.
- Vai mesmo. Vais ficar devendo porque isso não será presente. É empréstimo. Acho bonito teu sentimento com tua filha, mas ela é tua filha e nada minha. Logo, “Doutor”, comigo é negócio. Os sentimentos são bonitos. Enfeitam a vida, mas não garantem o “ganha pão”.
- “Tô” sabendo. Já tinham me falado que tu é um homem de negócios.
- Não! Sou apenas prático. Não sei quando tu vais pagar e nem qual será o preço, mas tenhas certeza que é uma dívida que poderá ser quitada por ti. Estará ao teu alcance.
Apertaram-se as mãos e “Vinte Conto” voltou para sua galeria. Três dias depois, através de seu pessoal, “Vinte Conto” depositou trinta mil reais na conta indicada e mandou um bilhete para “Doutor”, que foi entregue pelo “Mixaria”, onde apenas estava escrito o seguinte: “Os cincão a mais é presente”.
A dívida somente foi quitada quase um ano depois, numa saída temporária de “Doutor”, no Natal, para visitar a família.
Dois garotos, que eram “olheiros” de uma das “bocas de fumo” de “Vinte Conto”, ficaram demasiadamente ambiciosos e acabaram furtando uma razoável quantidade de droga. Venderam tudo e gastaram o dinheiro em roupas, festa e mulheres. Pensaram que ninguém sabia e nem ia desconfiar. Cada um teve uma perna fraturada e amputados dois dedos da mão esquerda.
Segundo haviam lhe contado, as fraturas e, principalmente, as amputações foram muito bem feitas e o apelido de “Doutor” era, sem dúvida, merecido.


*  *  *


“Vinte Conto”
Autor: Eduardo Pianalto de Azevedo

“Vinte Conto” observava a chuva fina caindo no pátio da Penitenciária, enquanto aguardava a entrada em sua cela do próximo preso.
- “Vô direto no assunto “Vinte Conto”?
- É melhor. Simplifica tudo e ajuda a pensar melhor.
- A questão é que o “Nega Maluca” não que dá mais o “rabo” prá eu.
- Qual a justificativa que ele te deu?
- Não interessa a justificativa “Vinte”, pois o “cara” é putão. E, se é putão, tem que “fudê” sem “fazê” muita “pregunta” e “inxigência”.
- Não é bem assim. O “cara” têm os seus direitos. Tu maltratou ele?
- Claro que não! Até faço uns carinhos no “Nega” e, quando “tô” muito na precisão, até “rola” uns beijinhos.
- Acontece, malandro, que “di grátis”, o “Nega” “dá” só pro macho dele. Pelo que me falaram, tu “deu um sete um” no “Nega” e “qué come ele sem pagá nada”.
- Quem me alcaguetô, “Vinte”?
- Ô malandro, sem essa! Tu “tá cansado de sabê” que nesse lugar não tem segredo. O “papo contigo é reto”: tu só volta a comê o “Nega”, depois de saldar tua dívida e paga as trepadas que tu der.
- Poxa, “Vinte”, é que “tô na precisão” e também sem dinheiro!
- Então, malandro, vai “batê” punheta. Teu assunto “tá” resolvido. Cai fora!
Foi avisado que aquele era seu último cliente. Somando suas entradas e saídas, já estava cumprindo pena havia sete anos e ainda teria que cumprir mais uns dez anos para obter algum benefício. Tinha consciência que não havia injustiça em suas condenações. Apenas lamentava que muitas mais pessoas tinham cometidos mais crimes que ele e pegaram penas bastante menores. Um pouco da culpa era de seus advogados e outro pouco era sua, pois vacilara e deixara muitas pistas e provas contra si.
Não podia se queixar, embora tudo custasse muita “grana”, tinha uma vida mansa na Penitenciária. Recebia visitas íntimas praticamente quando queria e nada lhe faltava, exceto a liberdade.
Por outro lado, tinha razões para acreditar que, mesmo preso, estava mais seguro que se estivesse livre e continuava a administrar seus “negócios” da mesma forma quando estava em liberdade. Ainda que, de outra forma, não perdera seu poder e influência. Até pelo contrário, a condição de preso trouxera-lhe um prestígio que desconhecia, mas apreciava. Naquele lugar, era praticamente um rei e isto, de certa maneira, o recompensava pela liberdade que não possuía. Pelo que havia lido, liberdade significava não ser submetido ao poder de outro, de ter pleno poder sobre si mesmo e seus atos. “Vinte Conto” sabia que tinha pleno poder sobre si mesmo e sobre os outros e não se submetia a ninguém. Logo, era livre. Tinha liberdade. O fato de estar restrito aquele lugar não significava que não tinha liberdade. Lembrava-se de também ter lido um autor que falava apenas em liberdades parciais, visto que esta somente existia na possibilidade do homem realizar-se no mundo material e, neste, obviamente, estava sempre limitado.
A leitura passara a ser um de seus passatempos prediletos e o resultado era os quase trezentos livros doados por ele que compunham a biblioteca da Penitenciária. Obviamente não lera todos, mas, por suas contas, mais da metade.
Aprendera muito com os livros e acalentava a ideia de, quando saísse da prisão, voltar a estudar. Terminaria o segundo grau e faria uma faculdade.
No dia seguinte, um dos carcereiros comentou com “Vinte Conto” que um funcionário do Setor Jurídico estava com a mãe doente. Ela tinha câncer e precisava tomar um remédio importado. Ele havia ingressado na justiça com uma ação para que o Estado desse o remédio, mas o juiz não dera a liminar e tivera que comprá-lo. Chegara a fazer um empréstimo para adquirir o remédio.
- Quem é o “cara” carcereiro?
- É o Ximenes, aquele ruivo. Lembra?
- O que conseguiu aquela saída temporária em que eu fugi?
- Aquele mesmo.
- Como é o nome do remédio e onde é que se compra?
O carcereiro falou-lhe o nome do remédio e indicou a farmácia onde Ximenes havia comprado o medicamento.
“Vinte Conto” ouviu atentamente. Pegou um pedaço de papel e fez uma anotação e perguntou ao carcereiro:
- Tu consegues uma visita prá mim amanhã?
- Quem virá te visitar?
- Vai ser uma das minhas sogras...a Jurema, mãe da Virgínia.
- Vou providenciar, mas vai ser uma visita de apenas meia hora. Tudo bem?
- Ok. Dez minutos bastam.
Dois dias depois da visita, “Vinte Conto” fez contato com o carcereiro e disse-lhe para ir na “Baixada dos Pinheiros”, no Bar do Noca, e falasse com o “Nego Beiço” sobre a encomenda para o “Vinte Conto”.
- Tu não ”vai me por numa fria”, “Vinte”?
- É limpeza. Tens minha palavra.
No dia seguinte, Ximenes foi até a cela de “Vinte Conto”. Chegou de mansinho. Falou sobre o tempo, futebol e perguntou pela família. Uma conversa monossilábica, que terminou com Ximenes agradecendo pelas vinte e seis caixas de medicamentos para sua mãe. Ficou ainda uns minutos sem dizer nada, depois, já com um sorriso no rosto, mas com a voz embargada, limpando as lágrimas, Ximenes falou quase num sussurro:
- Desse jeito, acho que nem seria preciso entrar na Justiça. Fico te devendo essa “Vinte”!
No fim de semana seguinte, por ocasião das visitas, um de seus sobrinhos entregou-lhe um jornal, dizendo que um dos carcereiros do “setor de revista” pedira para lhe entregar: era um presente.
“Vinte Conto” abriu o jornal e deu apenas uma olhada no noticiário policial, onde uma notícia sobre um “assalto” a uma farmácia estava assinalado com caneta vermelha. Não precisou ler a notícia, pois a conhecia suficientemente bem. Jogou o jornal em cima do catre e falou para o sobrinho:
- Moleque, quando tu saíres, diz “pro” carcereiro que “tô” agradecendo o presente.


*  *  *


Questão de fé
Autor: Eduardo Pianalto de Azevedo

Estava bastante cansado. Aquelas pregações davam-lhe muito prazer, pois estimulavam seu ego. O domínio sobre as pessoas fazia-lhe bem. Sentia-se poderoso. Contudo, estava começando a ficar muito cansado ao final de cada culto, mesmo tendo limitado suas pregações a uma por dia.
- Pastor Pokaphe, a arrecadação do dízimo tem diminuído sensivelmente de uns quatro meses para cá.
- Já havia percebido, pois tenho sempre acompanhado nossas estatísticas. Muito embora não se tenha percebido, estamos diante de uma inflação bastante grande para os parâmetros anteriores.
- Não podemos esquecer, Pastor, que também temos uma concorrência cada vez maior.
- Estás te referindo a Igreja da Iluminada Congregação dos Filhos do Senhor?
- Exatamente. Temos perdido devotos para a nova igreja. Eu já havia lhe avisado que isso iria ocorrer, pois o pastor deles é bastante carismático.
- Acredito tê-lo subestimado, mas vou tomar providências.
Essa era parte que menos prazer trazia: administração dos problemas e toda burocracia envolvida. Não tinha, na verdade, maiores preocupação com o dinheiro, pois, o que perdia na arrecadação, não fazia nenhuma diferença. A questão era sua vaidade. Entretanto, deveria agir com cautela e sem quaisquer exageros ou mesmo apelação. Encarava como um desafio pessoal e de fé, consequentemente, teria que atender as regras éticas e religiosas recomendadas num confronto dessa ordem.
No dia seguinte, faria sua visita semanal na Penitenciária Agrícola. Precisava preparar-se. Embora estivesse acostumado com visitas a estabelecimentos penais, não se sentia bem naqueles locais. O cheiro incomodava-lhe bastante, principalmente da creolina usada na limpeza. Tinha também uma sensação estranha, pois parecia sempre observar um clima de tensão, de nervosismo e ansiedade. Entretanto, a receptividade dos presos e até mesmo dos agentes prisionais, o estimulavam. Compensavam os dissabores.
Negava-se a levar drogas, armas, celulares ou qualquer coisa que não fossem as mensagens e os recados vindos de fora. Era imprescindível manter o nível, como costumava dizer para os presos.
Depois da pregação, misturou-se aos sentenciados, como sempre fazia e permitia-lhe manter disfarçadamente contato com os líderes ou seus “pombos-correios”, pois, se os agentes percebessem contato muito frequente, poderiam desconfiar. De posse das informações, com certo alívio, fez uma despedida geral, algumas bênçãos e dirigiu-se à portaria do Presídio. Pediu para falar com o Diretor. Foi breve o encontro. Praticamente resumiu-se numa saudação e na entrega do dinheiro. As mordomias de “Vinte Conto” tinham seu preço.
Arrependeu-se de não ter conversado com “Vinte Conto”, o principal líder daquele Presídio e de uma quadrilha de traficantes da “Baixada dos Pinheiros”, onde se localizava seu templo religioso. Tinha algumas questões a tratar com “Vinte Conto”, entre as quais, onde aplicar a última remessa de dinheiro que recebera: imóveis ou dólares.
Preferia que fosse imóvel porque sempre conseguia ficar com uma parcela no negócio...uma comissão, ainda que nunca superior a dez por cento.  Nunca havia falado nada sobre a comissão para “Vinte Conto”, embora tivesse quase certeza que ele soubesse. Os imóveis adquiridos ficavam em nome da igreja. Era forma de burlar a Receita Federal e não despertar a atenção da Polícia. Cobrava uma espécie de taxa mensal de “Vinte Conto” que, como garantia, tinha uma procuração em nome de um “laranja”, com plenos poderes na administração dos bens que estavam em nome da igreja, mas lhe pertenciam.
Evitava sempre que possível contatar pessoalmente com “Vinte Conto”, por duas razões bastante plausíveis: uma era para evitar que fizessem, no futuro, qualquer ligação sua com ele e o associassem a quadrilha dele e a outra era por que não se sentia bem na presença dele, pois mantinha um relacionamento secreto com uma das mulheres do preso. Se ele soubesse, seria sua sentença de morte. Sempre que conversava com “Vinte Conto”, lembrava-se de sua mulher confidenciando-lhe seus defeitos, inclusive sua impotência sexual. Não amava Amélia, mulher de “Vinte Conto”, mas tinha atração sexual muito forte por ela. Era uma mulher bastante ignorante, entretanto era jovem, muito bonita e extremamente fogosa. Transpirava sexo. Fazia apenas três meses que passaram a relacionar-se.
Saiu do Presídio e foi direto encontrar-se com ela, que lhe havia telefonado e dizia ter uma notícia muito importante. Os encontros davam-se num apartamento comprado pelo próprio Pokaphe e colocado em seu próprio nome, com o dinheiro que desviava dos negócios que celebrava em nome da igreja. Deveria ter sido colocado para alugar, mas, quando o comprou, já iniciara seu romance com Amélia e reservara o imóvel para seus encontros amorosos.
Quando chegou no apartamento, Amélia lá se encontrava e o recebeu com a fisionomia bastante preocupada e, sem muitos rodeios, declarou-lhe:
- Estou grávida de ti.
Ficou perplexo. A notícia atingiu-lhe como uma bomba. Por alguns segundos ficou sem qualquer reação e, quase num murmúrio, perguntou-lhe:
- Como podes ter certeza que é meu?
- É óbvio Pokaphe, pois é contigo que tenho mantido relações sexuais.
- Mas tens também feito visitas íntimas a “Vinte Conto”.
- Mas ele é impotente!
- Como? Se tu mesma me confidencias-te que, quando transas com ele, pensas em mim.
- Ele é apenas impotente, mas consegue transar.
- Isso não é possível! Se ele é impotente, não podes estar grávida.
- Transar ele pode e sempre transou bastante. Ele é impotente para ter filhos.
- Meu Deus, Amélia! Então ele não é impotente, mas estéril!
- Não diz bobagem Pokaphe, estéril que eu saiba é aparelho de som.
- Jesus Cristo, aparelho de som é estéreo.
- Não é a mesma coisa?
- Claro que não irmã!
Viu-se, repentinamente, vendo-a apenas como uma fiel. Acabara sua paixão. Tinha raiva, muita raiva e vontade de dar-lhe uma surra. Matá-la? Não se imaginava matando-a. Não teria coragem. Só havia uma saída.
- Vais tirar o nenê.
- Jamais. Sou evangélica, Pokaphe. Sou crente da tua igreja e tu mesmo falas contra o aborto. É pecado, Pastor.
Ela chorava convulsivamente. Ficou excitado. Começou a beijar-lhe. Ela protestou. Falou que jamais abortaria, que seria melhor fugirem e outras coisas que não entendia mais, não ouvia mais. Foi tirando-lhe a roupa e beijando-lhe o corpo inteiro. Ouvia sua voz como murmúrios, ao longe. Ardia em desejo de possuí-la e o fez, depois, deitou-se ao seu lado e dormiu. Foi pouco tempo. Uns dez ou quinze minutos, mas descansou. Ficou aliviado. Acordou e não disse nada. Olhou-a como se fosse uma estranha. Ainda chorava. Vestiu-se. Pensaria em algo. Acabaria convencendo-a a abortar, entretanto precisava sondá-la.
- Como vais falar para ele de tua gravidez?
- Não é o que mais me preocupa...simplesmente vou dizer que estou grávida.
- Como pensas que ele vai aceitar isso?
- Meu medo maior é o que ele vai achar de mim...como vou ficar.
- Como assim?
- Ele sempre disse que a melhor coisa que tinha com a impotência dele é que meu corpo sempre estaria bonito...que eu sempre estaria gostosa, com o corpo em forma...   Agora, que vou ficar grávida, como vai ficar o meu corpo...vou engordar...vou ficar feia...ele não vai aceitar!
- Deus do céu, Amélia! Ele vai ficar furioso quando souber que tu o traíste.
- Ele nunca demonstrou ciúmes.
Percebeu que não adiantaria conversar com ela. Era por demais burra. Jamais entenderia a dimensão de sua traição. Amaldiçoou-se por ter se envolvido com ela. Burro mesmo...era ele. Estava decidido a fazer aquele aborto. Soube que sua gravidez era de pouco mais de um mês. Tinha tempo para fazer alguma coisa. Havia, pelo menos, uma coisa boa: ninguém sabia da gravidez de Amélia. Segundo ela lhe confidenciara, não falara sobre o assunto com ninguém, exceto com sua melhor amiga que era de toda confiança.
Deitado em sua cela, “Vinte Conto” recordava do tempo de moleque, quando iniciara no tráfico trabalhando, primeiro, de “olheiro” e, depois, de “vapor”, quando ganhou o apelido porque tudo que vendia tinha um preço: vinte conto. Na verdade, a droga que vendia custava quinze reais, mas cobrava vinte para ficar com cinco para ele. Acabou tomando uma surra porque um amigo, para quem confidenciara sua esperteza, o alcaguetou. Parou de vender acima do preço, mas o apelido pegou.
Desde então, “Vinte Conto” sabia que segredo entre dois, só matando um. Não fora com surpresa que recebera a notícia da gravidez de Amélia. Conhecia-a o suficiente para saber que sua estupidez e leviandade acabariam nisso. Conhecia suas mulheres o suficiente para saber em quem confiar e contar. O que de fato o surpreendia era a identidade do amante dela: Pastor Pokaphe. Gostava de Pokaphe, além do mais era seu sócio. Admirava o modo como pregava. Tinha uma voz potente, parecia locutor de rádio. Às vezes chegava a se emocionar com os sermões do pastor.
Contudo, não podia esquecer que, certamente, na comunidade, todos já sabiam da traição e, mesmo para um preso, a fama de “cornudo” não era nenhum elogio e nem admissível. Sabia que precisava fazer algo, pois, na sua situação de liderança, era imprescindível tomar alguma atitude. Tinha que dar bons exemplos.
O Missionário Praxedes, da Iluminada Congregação dos Filhos do Senhor, estava muito feliz com o crescente número de fiéis de sua igreja, porém já haviam lhe avisado que, em breve, teria problemas com o Pastor Pokaphe, da Igreja do Evangelho Redentor. A notícia da evasão de fiéis de Pokaphe para sua igreja repercutira bastante, mas era esperada.
 Praxedes inovara bastante em sua missão evangelizadora através de um trabalho intenso junto aos jovens, notadamente com os adolescentes. Com ajuda de fiéis voluntários, passara atrair os jovens utilizando-se de novos ritmos musicais, como funk e rap, em suas pregações e reuniões dançantes promovidas por sua igreja, além de aulas de teatro, embora sempre com temas religiosos. A presença dos jovens acabou por atrair também alguns familiares.
Soubera de alguns boatos sobre Pokaphe a respeito de seu envolvimento com o crime organizado, mas não acreditava. Nos poucos contatos que tivera com ele, sempre foi tratado com respeito e consideração. Admirava muito o carisma de Pokaphe que era também um excelente orador, pois conseguia prender a atenção das pessoas e sensibilizá-las. Tinha consciência das virtudes de Pokaphe e tivera que fazer um esforço muito grande para atrair fiéis para seu templo.
Pokaphe não acreditava que “Vinte Conto” mandasse matá-lo porque tinha muito a perder, tendo em vista que quase tudo que ganhara e ganhava era administrado por ele. Contudo, em questões envolvendo a vaidade masculina, melhor seria estar preparado para tudo. Caminhava distraído e nem percebeu a caminhonete parar um pouco atrás de si, quando se deu conta, dois homens prendiam seus braços e um terceiro apertava contra seu nariz e boca um pano encharcado de clorofórmio.
Passada uma semana, o companheiro de cela, interpelou “Vinte Conto”:
- Tu não achas que foi um exagero o que “tu fez com o padreco”?
- Não! Não acho não. Poupei a vida dele.
- Porra, tu mandou cortar a garganta dele!
- Não foi a garganta...se fosse, ele tinha morrido. Mandei cortarem as cordas vocais.
- Pô, o cara ficou mudo! Não vai mais poder pregar a palavra do Senhor.
“Vinte Conto” deu uma risada, mas não disse nada. Apenas ficou pensando que Pokaphe poderia aprender libras e pregar para os surdos-mudos. Deu graças a Deus que seu companheiro de cela nada perguntou sobre Amélia. Ficou lembrando de seus seios fartos, de sua bunda redonda, bem proporcionada, e de sua buceta quente e da vasta cabeleira de pentelhos...tudo apodrecendo no fundo de um lago que nem sabia direito onde era. Algumas lágrimas brotaram, mas logo se recompôs. Os negócios prosperavam e tinha certeza de que tomara a decisão correta. Estava também esperançoso com a notícia que seu advogado trouxera de que, no máximo, em dez meses conseguiria uma saída temporária.
Oito meses depois, Praxedes estava radiante com a unificação das duas igrejas. Jamais imaginara receber semelhante convite de Pokaphe. Havia planos para construírem novos templos e, até mesmo, já se pensava na possibilidade de adquirirem algum espaço na televisão. Não sabia de onde Pokaphe conseguia tantos recursos, mas o salário fixo e a percentagem na arrecadação do dízimo dos fiéis eliminava sua curiosidade, com exceção da forma como Pokephe ficara mudo. Diziam que fora uma doença, outros que fora uma surra e alguns chegaram até mesmo afirmar que ele tivera as cordas vocais cortadas por vontade de Deus...contra quem blasfemara. Praxedes deu de ombros e murmurou para si própria que um homem bom como aquele somente poderia colher os bons frutos do Senhor e que ficassem mudos todos aqueles fofoqueiros e hereges. Disse um “amém” em voz alta e fez um sinal da cruz.
Era véspera da saída temporária de “Vinte Conto” e Pokaphe estava bastante ansioso. Até já adiantara um terço do valor para os caras que iriam matá-lo logo que saísse da prisão. Pagaria com prazer até mesmo o dobro do acertado, pois tudo que conseguira valia muito mais, haja vista que, com a morte de “Vinte Conto”, ficaria com tudo.
“Vinte Conto” atravessou o portão da Penitenciária e virou-se, embora não tenha feito nenhum gesto ou dito palavra, estava se despedindo. Não voltaria jamais para aquele lugar. Olhou o relógio: eram 11 horas da manhã. Atrasou-se propositalmente para sair da Penitenciária, pois queria ter certeza da morte de Pokaphe e precisava ter um álibi para caso o acusassem. Nem iria passar em sua casa, deixaria para depois. Tinha que ir ao velório e precisava muito conversar com Praxedes.

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