Pode-se dizer
que a atividade do juiz no processo é um dos pontos mais discutidos pela teoria
do direito. Muito se fala acerca da limitação de sua ação, proferem-se
discursos – que por muitas vezes beiram o “fanatismo ideológico” – voltados à
busca por um controle absoluto, o estabelecimento de regras rígidas que possam
trazer “segurança jurídica” à sociedade, confundindo, muitas vezes, a segurança
jurídica com a possibilidade de se “prever” o conteúdo de uma decisão judicial.
Por outro lado, há também aqueles que consideram positivo proporcionar uma
maior margem de liberdade de atuação ao magistrado, afinal é ele quem analisa e
possui o poder político de construir o sentido institucional da linguagem
legal.
De antemão, é
forçoso levantar que reconhecer a existência do “outro” é um desafio que
envolve um esforço reflexivo que, por sua vez, é requisito para a alteridade.
Quando relativizamos as garantias individuais, por exemplo, em um determinado
caso concreto (deve-se lembrar aqui dos casos fastidiosamente instigados pela
mídia - Suzane Von Richthofen, o goleiro Bruno, Isabella Nardoni etc),
esquecemos que tais garantias são basilares para a construção e reprodução de
um regime democrático, e que, por essa razão, devem ser aplicadas em sua
integralidade, mesmo que isso custe a liberdade de um culpado.
O jurista não
pode se esquecer que a construção da verdade legítima se dá no processo, e que
o regime democrático sucumbe se os indivíduos não contarem com as
prerrogativas individuais que possuem em relação às regras desse jogo (devido
processo legal). Também é importante ter em mente que o direito é pautado por
incertezas, falhas, imprevisibilidades, e que isso não quer dizer
necessariamente ausência de segurança jurídica.
O direito é
incerto e imprevisível porque está ligado diretamente com o homem. Hannah
Arendt (em “A condição humana”) disserta acerca das características ínsitas do
ser humano enquanto tal, e entre elas estão a capacidade de errar e de ser
imprevisibilidade constante. O ser humano é o inesperado, dele surge o novo,
ele possui a capacidade de agir e fazer – e falhar. Pensar em um direito sem
falhas é idealizar um projeto que esconde, em suas estruturas ocultas, a
incapacidade de reconhecer o homem enquanto tal, ou seja, a vontade de
idealizar o “outro” pautado pelos valores presentes no “eu”, como se o “outro”
não possuísse seus próprios valores e sua própria cosmovisão.
Dessa
dificuldade do exercício da alteridade (reconhecimento do “outro”) é que surgem
as incompreensões – e as angústias – acerca da atividade do juiz. Ora, a função
de um juiz não é produzir uma sentença idêntica ao seu colega juiz para casos
análogos – como se isso fosse segurança jurídica –, mas realizar a prestação
jurisdicional, respeitando as regras do jogo expostas pela constituição e pela
legislação infraconstitucional (que esteja conforme a constituição). Não se
deve esquecer, também, que o magistrado é o agente político incumbido de
traduzir o sentido da legislação no caso concreto, ou seja, ele constrói o
sentido politicamente imposto a todas as pessoas da sociedade. Tal tradução,
porém, não se dá de forma unívoca entre todos os juristas, até porque não é
essa a intenção da estrutura política construída pela constituição, pois, se
assim não fosse, não haveria razão para o duplo grau de jurisdição, ou para a
reapreciação da lide por um órgão colegiado. O direito institucional é
divergente, e só existe porque há divergência.
A busca
angustiante que se percebe em alguns juristas pela segurança jurídica é fruto,
muitas vezes, de uma incompreensão acerca do abismo existente entre o “eu” e o
“outro” (abismo esse que, segundo E. Dussel, somente se transpõe pela fé). Se
visualizassem tal questão, compreenderiam as dificuldades linguísticas
existentes na vida social. Entenderiam, também, que o processo não surge como
uma ferramenta para “descobrir” qual a solução “mais correta”, mas para
proporcionar um ponto de partida comum entre as partes envolvidas, tendo como
resultado final a imposição pelo manipulador legítimo da força (Estado) de um
sentido emanado por um agente político (juiz), que é encarregado de, com base
nas regras do jogo (que são construídas por outro agente político – o
legislador), construir uma verdade que será adotada coercitivamente como
realidade por toda a sociedade.
Procurar por
uma “segurança jurídica” fora dos moldes presentes na constituição pode levar a
uma perigosa ilusão que põe em risco a existência do regime democrático. A
possibilidade de “prever” o conteúdo das decisões não significa,
necessariamente, “segurança jurídica”, e a existência de divergência entre os
julgadores tampouco significa a falta dela. O direito é humano, e a verdade uma
construção política.
Luís Henrique
Kohl Camargo - GEDIS