quarta-feira, 20 de maio de 2015

O direito de ser cruel

Inquisidores jogavam óleo queimado goela baixo de hereges para purificar punindo. Baseados em quê? No direito de massacrar o corpo do infiel. Jesus (para quem acredita) foi crucificado com base em quê? No direito de crucificar o blasfemo. Os nazistas exterminavam judeus com base em quê? No direito do povo ariano de purificar o mundo.

Não sejamos ingênuos ao ponto de acreditar que todos esses direitos não passavam de um amontoado de arbitrariedades impostas à força à sociedade. Nada disso. Naquele momento histórico, não havia nada de absurdo nessas práticas. Todos esses direitos foram objeto de muita reflexão, estavam estruturados em meticulosas cadeias de raciocínios bastante lógicos. O direito de ser cruel sempre foi embasado na mais perfeita lógica, no mais reto juízo moral, no raciocínio mais exato e impecável.

Assim como é hoje.

É muito fácil falarmos de coisas que aparentemente já fazem parte do passado. Os absurdos hodiernos é que são difíceis de enxergar. Tentemos.

O direito de ser cruel concretiza-se basicamente de duas formas: pela própria lei e pelo silêncio.

Pela própria lei, temos, hoje, a possibilidade de um especulador expulsar de suas terras comunidades de famílias que há anos viviam ali (caso Pinheirinho, em São Paulo, por exemplo); temos as relações cada vez mais precarizantes do trabalho, a renitência em aceitarmos as várias formas de família, a forma como tratamos as mães que abortam. São apenas exemplos.

Pelo silêncio, temos, hoje, a ausência de um debate jurídico sério sobre os mecanismos de desigualdade social, a falta de uma discussão relevante sobre os fundamentos éticos da acumulação patrimonial, os pouquíssimos instrumentos jurídicos para avançar na questão racial. E mesmo em coisas já disciplinadas formalmente, tal qual os direitos dos presos, o direito ainda abre uma brecha prática para o silêncio: vê-se pouca responsabilização pelas penitenciárias superlotadas, totalmente incapazes de abrigar um ser humano. Ninguém é responsabilizado pela ausência do imposto sobre grandes fortunas, previsto na Constituição desde 1988.

Vejamos, amigos leitores, que o direito de ser cruel persiste ainda hoje, só que os alvos mudaram. Agora, rogamo-nos no direito de sermos cruel para com o "bandido". Queremos que ele sofra os piores horrores na cadeia. Queremos armas para matá-los. Queremos ele logo preso – e sem essa balela de defesa por advogado! Queremos tirar os míseros quase-uma-centena-de-reais de beneficiários do bolsa família – nada aos pobres (nada além de cadeiras de rodas do Lions Club)! Queremos pena de morte, queremos trabalho obrigatório para presos, queremos menores de 18 anos na cadeia, queremos menos direitos trabalhistas, queremos nenhuma forma de família exceto a “tradicional”.

Nossos inimigos são negros, pobres, trabalhadores e, em geral, as pessoas que não conseguem uma posição social de prestígio.

Todavia, sem dúvida o amigo leitor encontrará bons argumentos para justificar essas crueldades. Aliás, como sempre aconteceu na história da humanidade.

Luís Henrique Kohl Camargo - Gedis

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