"O Cidadão de Bem" era o nome da revista da Ku Klux Klan |
O sujeito autointitula-se cidadão de bem. Reputa-se honesto, correto. Do bem. Esse sujeito louva aqueles que pelo mérito conseguiram uma posição social de prestígio - o rastro desse vislumbramento é o desprezo àqueles que vivem na base. Aos criminosos, pede punição severa. O cidadão de bem não se importa com as péssimas condições da cadeia (alguns até gostam que seja assim), não se preocupa com o assaltantezinho amarrado nu no poste e pensa que bandido bem que merece levar uns tabefes da polícia. O cidadão de bem é um moralista, não raro religioso, que prega a eliminação de outros seres humanos (desde que eles tenham cometido crimes graves).
O cidadão de bem é um cidadão do mal. Ele reprime sua maldade mal resolvida e projeta-a em um determinado lugar da sociedade. Existe um lugar socialmente preparado para sofrer, para ser saco de pancada. É exatamente aí que o cidadão de bem projetará suas angústias. O processo funciona mais ou menos da seguinte forma.
Por exemplo: a pessoa interiorizou que decote é feio. Não usa decote, não chama atenção, sofre por isso. Lá no fundo ela queria transar de forma livre e sabe que isso inclui chamar atenção com seu corpo, como qualquer homem pode fazer. Ela não, ela é mulher, ela não pode. Ficaria feio para ela. Afinal, ela quer ser uma cidadã de bem. Então ela sofre, porque reprime seu desejo.
Consequentemente, essa pessoa passa a punir aquela outra pessoa que ousou usar decote. É bastante lógico: se não usar decote é algo "bom", usar decote é algo "mau". Pessoas boas fazem coisas boas, portanto as coisas más são feitas por pessoas más. O sujeito conclui, então, que usar decote é coisa de gente "má" (traduzo: sem vergonha, safada, vadia, vagabunda e todos os adjetivos pejorativos imagináveis). Gente má merece ser punida para aprender a virar gente do bem. A partir daí, o cidadão de bem aceitará de forma complacente a punição do diferente, para que ele se transforme em igual: afinal, se sou do bem, por que aceitaria conviver com alguém que é do mal?
O pano de fundo para esse raciocínio é a raiva. A pessoa que sofre por não ser livre tende a projetar naquele que é livre o peso da raiva contida pelo desejo reprimido. A pessoa dirá para a mulher do decote: "é por tua causa que não respeitam as mulheres! É por tua causa que estou sofrendo!", e aí manifestará sua raiva em relação a essa mulher.
Para manifestar raiva, é preciso antes desumanizar a pessoa alvo. É necessário colocá-la num escalão menor de qualidade, dizer que ela vale menos por agir de determinada forma. Aí, consegue-se aceitar mais tranquilamente que essa pessoa sofra. Passa-se a desejar que a pessoa sinta dor, que seja presa, que seja estuprada, que seja xingada, que perca o emprego. Tudo para aprender a ser correta tal qual o cidadão de bem.
Alguns moralistas até conseguem manter um clima "paz e amor", mas é no culto evangélico, na conversa de bar, nos comentários em redes sociais, na seleção de emprego que a coisa se revela.
O cidadão que se autodeclara "cidadão de bem" é, portanto, um cidadão de bem apenas para consigo mesmo e para quem é parecido com ele. Para ele, o resto é degradação moral, é ilícito, é sem vergonha, é anomalia - o "cidadão de bem" pratica o mal para as pessoas diferentes dele, unicamente porque, praticando o mal contra elas, o cidadão de bem acredita que um dia essas pessoas se tornarão assim, igual ele: boas, probas, ótimas, normais. Até que isso não aconteça, vale toda a maldade para fazer o diferente sofrer... até aprender a ser igual!
O maniqueísmo do "bem contra o mal" incapacita as pessoas, impossibilitando-as de ver a humanidade no outro. Para o cidadão de bem, o outro só é humano se não fizer nada muito grave. Se ele fizer algo errado, o outro passa a ser um "monstro" que merece sofrer. Por isso, o cidadão de bem é um cidadão do mal, mesmo sem se dar conta do mal que pratica contra o outro.
Luís Henrique Kohl Camargo - Gedis
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