quinta-feira, 30 de abril de 2015

Uma análise do interdito proibitório que chancelou o massacre dos professores do Paraná


Hoje, nos arredores da Assembleia Legislativa do Paraná, teve de tudo. Tropa de choque batendo em professor, professor indo para o hospital, bala de borracha, jatos de água, policial sangrando groselha... e acrescente a tudo isso uma pitadinha de malícia encarnada na célebre frase tucana “não há bomba nesta Assembleia, a sessão tem que continuar”. Entretanto, não podemos esquecer que, como é de praxe (diga-se de passagem), tal espetáculo sádico não aconteceu sem uma assinatura do judiciário chancelando o roteiro da festa: a Assembleia Legislativa conseguiu um interdito proibitório às vésperas da votação, 24/4/2015, “para que o réu, bem como os demais participantes do movimento, se abstenham de turbar ou esbulhar a posse do autor”.

Considerando que já vi muita gente descendo a lenha na questão da truculência policial (o que me deixa muito feliz!), proponho-me aqui a analisar, na medida das minhas limitações, essa decisão*.

Peço licença, portanto, para delongar-me um pouquinho mais que o de costume.

Sabemos serem requisitos do interdito proibitório: 1) a posse anterior; 2) a ameaça de turbação ou esbulho; 3) justo receio de ser efetivada a ameaça (art. 932 do CPC).

Pois bem.

Assim ponderou o julgador: “Os documentos acostados à petição inicial demonstram que a APP – Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública, com o intuito de inviabilizar a votação de projeto de lei contrário aos seus interesses, pretende organizar novo cerco à Assembleia Legislativa. Oportuno consignar que recentemente a requerida organizou movimento similar, que culminou na invasão do prédio público, com danos materiais, tentativa de agressão a parlamentares e necessidade de intervenção judicial, com aplicação de multa e expedição de mandado de reintegração de posse.”

O raciocínio estaria perfeito, se estivesse sendo aplicado a um imóvel privado. Todavia, estamos falando da Assembleia Legislativa, ou seja, a sede do Poder Legislativo Estadual, local escolhido para sediar os mais relevantes debates democráticos. Local onde nascem as leis! Local cuja ocupação pelo povo deveria ser não apenas permitida, mas incentivada! Afinal, não é isto o que diz o artigo primeiro de nossa Constituição: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]a cidadania”?

Na minha visão, em nosso caso é muito problemático falar em “invasão de prédio público”, já que o acesso às votações das Assembleias Legislativas deve ser livre à população.

Fico, então, pensando de que forma o povo pode turbar a posse de uma Assembleia Legislativa... “invadindo” a casa para acompanhar votações? Será que isso é turbação? Mas afinal, acompanhar votações não faz parte do regime democrático? A casa é de todos (república) ou é dos deputados?

Com todo o respeito: o magistrado utilizou uma leitura bastante literal e restrita do interdito proibitório. Fizesse uma leitura orgânica, com olhos na Constituição e considerando-a a fonte irradiadora de normatividade de todo o ordenamento jurídico, provavelmente o interdito não seria deferido. Verificar-se-ia inexistir receio de turbação. E ainda assim os deputados não ficariam desamparados, porque o Código Civil garante ao possuidor aquilo que denominamos “desforço imediato” para defender a posse turbada (artigo 1.210, § 1º). Portanto, no caso em questão, ainda que forçássemos a interpretação elevando-a à literalidade extrema e nesse exercício considerássemos que atos que impedem a votação fossem considerados “turbação”, mesmo assim o Estado poderia atuar de ofício imediatamente fazendo o necessário, e apenas o necessário, para restabelecer a ordem no local, de forma que a votação pudesse ser realizada.

(Vejam que os atos desse desforço “não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse” - artigo 1.210, § 1º, do CC. Será que a atuação policial de hoje ficou nos limites do necessário?)

Concluo, então, que no caso não se precisava de interdito proibitório. A meu ver, inclusive, o processo deveria ser extinto por ausência de interesse de agir (art. 267, VI, do CPC).

Aliás.

Na realidade, o interdito proibitório pouco serviu para proteger posse. Na realidade serviu, isto sim, para justificar o elevado e desproporcional contingente policial utilizado pelo Governo Tucano para conseguir aprovar uma medida também absurda e impopular.

Em suma, a coisa aconteceu como se a Assembleia fosse o campinho de futebol dos deputados. Só que hoje não deixaram ninguém jogar bola além deles. Quando atrapalha a partida, o povo é a socos e pontapés convidado a se retirar, e o dono do campinho convida só os seus amiguinhos para brincar. Tudo isso sob a chancela do papai judiciário.

Acontece que, no Brasil, pelo menos formalmente, o campinho é do povo (república) e as decisões têm de ser tomadas de maneira democrática, não arbitrária.

Amigos, seguir a lei em sua estreiteza literária o faziam os juízes alemães durante o nazismo. É preciso fazer cumprir a lei integralmente e com justiça. Cumprir a lei com base na Lei. Cada instituto deve ser comparado com o seu fundamento de legitimidade: a Constituição e, mais profundamente, os direitos humanos.

Luís Henrique Kohl Camargo - Gedis

*Autos nº 0010977-69.2015.8.16.0013; link para pesquisa aqui.

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