Hoje, nos arredores da
Assembleia Legislativa do Paraná, teve de tudo. Tropa de choque batendo em
professor, professor indo para o hospital, bala de borracha, jatos de água,
policial sangrando groselha... e acrescente a tudo isso uma pitadinha de
malícia encarnada na célebre frase tucana “não há bomba nesta Assembleia, a
sessão tem que continuar”. Entretanto, não podemos esquecer que, como é de
praxe (diga-se de passagem), tal espetáculo sádico não aconteceu sem uma
assinatura do judiciário chancelando o roteiro da festa: a Assembleia
Legislativa conseguiu um interdito proibitório às vésperas da votação, 24/4/2015,
“para que o réu, bem como os demais participantes do movimento, se abstenham de
turbar ou esbulhar a posse do autor”.
Considerando que já vi
muita gente descendo a lenha na questão da truculência policial (o que me deixa muito feliz!), proponho-me aqui a analisar, na medida das minhas limitações, essa decisão*.
Peço licença, portanto,
para delongar-me um pouquinho mais que o de costume.
Sabemos serem requisitos
do interdito proibitório: 1) a posse anterior; 2) a ameaça de turbação ou
esbulho; 3) justo receio de ser efetivada a ameaça (art. 932 do CPC).
Pois bem.
Assim ponderou o
julgador: “Os documentos acostados à petição inicial demonstram que a APP – Sindicato
dos Trabalhadores em Educação Pública, com o intuito de inviabilizar a votação de
projeto de lei contrário aos seus interesses, pretende organizar novo cerco à
Assembleia Legislativa. Oportuno consignar que recentemente a requerida
organizou movimento similar, que culminou na invasão do prédio público, com
danos materiais, tentativa de agressão a parlamentares e necessidade de
intervenção judicial, com aplicação de multa e expedição de mandado de
reintegração de posse.”
O raciocínio estaria
perfeito, se estivesse sendo aplicado a um imóvel privado. Todavia, estamos
falando da Assembleia Legislativa, ou seja, a sede do Poder Legislativo
Estadual, local escolhido para sediar os mais relevantes debates democráticos.
Local onde nascem as leis! Local cuja ocupação pelo povo deveria ser não apenas
permitida, mas incentivada! Afinal, não é isto o que diz o artigo primeiro de
nossa Constituição: A República
Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios
e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]a cidadania”?
Na minha visão, em
nosso caso é muito problemático falar em “invasão de prédio público”, já que o
acesso às votações das Assembleias Legislativas deve ser livre à população.
Fico, então, pensando
de que forma o povo pode turbar a posse de uma Assembleia Legislativa... “invadindo”
a casa para acompanhar votações? Será que isso é turbação? Mas afinal, acompanhar
votações não faz parte do regime democrático? A casa é de todos (república) ou
é dos deputados?
Com todo o respeito: o
magistrado utilizou uma leitura bastante literal e restrita do interdito
proibitório. Fizesse uma leitura orgânica, com olhos na Constituição e
considerando-a a fonte irradiadora de normatividade de todo o ordenamento jurídico,
provavelmente o interdito não seria deferido. Verificar-se-ia inexistir receio
de turbação. E ainda assim os deputados não ficariam desamparados, porque o
Código Civil garante ao possuidor aquilo que denominamos “desforço imediato”
para defender a posse turbada (artigo 1.210, § 1º). Portanto, no caso em
questão, ainda que forçássemos a interpretação elevando-a à literalidade
extrema e nesse exercício considerássemos que atos que impedem a votação fossem
considerados “turbação”, mesmo assim o Estado poderia atuar de ofício imediatamente
fazendo o necessário, e apenas o necessário, para restabelecer a ordem no
local, de forma que a votação pudesse ser realizada.
(Vejam que os atos
desse desforço “não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição
da posse” - artigo 1.210, § 1º, do CC. Será que a atuação policial de hoje
ficou nos limites do necessário?)
Concluo, então, que no
caso não se precisava de interdito proibitório. A meu ver, inclusive, o processo
deveria ser extinto por ausência de interesse de agir (art. 267, VI, do CPC).
Aliás.
Na realidade, o
interdito proibitório pouco serviu para proteger posse. Na realidade serviu,
isto sim, para justificar o elevado e desproporcional contingente policial utilizado
pelo Governo Tucano para conseguir aprovar uma medida também absurda e
impopular.
Em suma, a coisa
aconteceu como se a Assembleia fosse o campinho de futebol dos deputados. Só
que hoje não deixaram ninguém jogar bola além deles. Quando atrapalha a
partida, o povo é a socos e pontapés convidado a se retirar, e o dono do campinho convida só os
seus amiguinhos para brincar. Tudo isso sob a chancela do papai judiciário.
Acontece que, no Brasil,
pelo menos formalmente, o campinho é do povo (república) e as decisões têm de
ser tomadas de maneira democrática, não arbitrária.
Amigos, seguir a lei
em sua estreiteza literária o faziam os juízes alemães durante o nazismo. É preciso fazer
cumprir a lei integralmente e com justiça. Cumprir a lei com base na Lei.
Cada instituto deve ser comparado com o seu fundamento de legitimidade: a
Constituição e, mais profundamente, os direitos humanos.
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