quinta-feira, 16 de junho de 2011

Uma democracia não se consolida com cadáveres insepultos

É notório na história recente do Brasil que, desde a edição do AI-5, em 13/12/1968, e do Decreto-Lei nº477/1969, e sob as suas sombras, se praticaram as maiores arbitrariedades a repercutir intensamente nos direitos dos cidadãos (e seus familiares) que se viram inteiramente desprotegidos e submetidos a uma onda de repressão até então nunca vista. Os esquadrões da morte, desde 1968, eliminaram um número até hoje desconhecido de pessoas. A esse número somam-se os extermínios efetuados pelo aparelhamento policial em nome da segurança e do restabelecimento da ordem.
Em meio a tudo isto, as alterações levadas a efeito no texto constitucional e na edição de determinadas leis, como, dentre outras, as já citadas Lei de Imprensa, a Lei Antigreve, a Lei de Segurança Nacional, o Estatuto do Estrangeiro, foram efetivadas para que o sistema encontrasse sua sustentação formal e ficcional, transformando muitas instituições públicas como que gestoras do terror de Estado, reivindicando para si o monopólio do exercício ilegítimo da violência. O Estado foi manejado como se fosse um objeto particular, alheio a qualquer finalidade pública, perdendo-se em uma crise de identidade sem precedentes.
O governo da época conseguiu, com tais comportamentos, criar o Anti-Estado, gerido por iniciativas políticas arbitrárias cada vez mais intensas de alguns comandantes das Forças Públicas; é o surgimento paradoxal do Estado Bandido, blindando ações de tamanha violência física e simbólica referidos com vestes de legalidade formal, e operando com a lógica da disseminação do medo para desmobilizar a sociedade.
Por sua vez, o controle jurisdicional sobre os abusos cometidos pelas forças do sistema foi marcado – com algumas exceções - pelas limitações impostas pelo próprio texto constitucional e pela ideologia conservadora de uma parte dos juristas brasileiros. Tanto é verdade que o estudo levado a cabo pelo movimento Brasil: Nunca Mais, registra que dos 6.385 indiciados em processos militares consultados, presos e torturados, apenas 1,4% dos casos foram comunicados regularmente à autoridade judicial.
Na via inversa, O Ministério da Justiça publicou, no ultimo dia 05 de abril, a Portaria nº417, que pretende facilitar o acesso a determinados documentos relacionados ao regime militar, do Sistema Nacional de Informação e Contra-informação, em especial referente aos anos de 1964 a 1985, sob a guarda do Arquivo Nacional. Tal gesto talvez contribua na avaliação mais refletida que se tenha de fazer sobre os termos restritivos de acesso a este tipo de informação construídos pela Lei Federal nº8.159/91, e posterior Lei Federal nº11.111/2005, ambas criando dificuldades temporais longínquas de abertura dos arquivos secretos do regime de exceção.
Este é mais um passo em direção a restauração da verdade e memória, fortalecendo as condições normativas e políticas para que se avance ainda para além das torres blindadas dos segredos daquele Anti-Estado, em direção ao mundão que heróicas senhoras vislumbraram em antigo prédio em que se instalara o Presídio Tiradentes, em São Paulo, presas pela ditadura militar.
Talvez aquelas donzelas da torre tenham sido mais do que visionárias na resistência, eis que a maior parte das sobreviventes fez valer a pena o mundão que hoje nós vivemos, mas há muito ainda o que recordar e recuperar, principalmente o que já fora silenciado fatalmente, pois como já disse uma delas, uma democracia não se consolida com cadáveres insepultos.

Rogério Gesta Leal
Desembargador do TJ/RS

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