quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Patrimônio histórico, descaso e as populares reformas na região oeste de Santa Catarina – o caso da Igreja Matriz de Xaxim

Fotografia construção (1947-1951)

Bruno Antonio Picoli – GEDIS
Rosângela Fávero - GEDIS

Na década de 1940, o geógrafo alemão Leo Waibel em obra clássica afirmou que uma região só se civilizaria, sairia,portanto,de seu estado de barbárie, quando “gentes industriosas” a ocupassem, elevando suas qualidades técnicas e espirituais. Esses novos povoadores traziam na bagagem o trabalho, a verdadeira religião e a superioridade genética e cultural, enfim o progresso. Não cabe discutir os méritos e deméritos do grande geógrafo alemão (que pensava como muitos de sua época), entretanto, fazendo um enorme esforço para admitirmos que estava certo, podemos, observando recentes episódios processados no oeste catarinense, afirmar que ainda não somos civilizados, sobretudo no que concerne às ditas “qualidades espirituais” (WAIBEL, 1979).
"A iluminação era feita por meio
de lustres de cristal suspensos e finos,
de modo a não comprometer a
visualização das pinturas no teto,
dando ao interior da igreja uma
impressão de leveza.
Em 1993, durante o suposto restauro
( na verdade uma reforma), os lustres
 de cristal foram substituídas por grandes
estruturas de madeira que, além de romper
 com a harmonia do ambiente,
comprometem a visualização da
totalidade das gravuras do teto."
O objetivo da empresa colonial levada a cabo neste território era, entre outros referentes à produção, reproduzir em solos catarinenses a Europa. Um suposto modelo europeu era o guia das práticas e representações culturais forjadas nas fricções interétnicas aí desenvolvidas e definidoras de uma identidade étnico-cultural de negação do “outro”, sobretudo por parte dos grupos que reclamavam certa ascendência italiana. O alto grau de negatividade do termo “brasileiro” nessa região reforça o argumento anterior. O “brasileiro” (também chamado de caboclo ou, ainda, sertanejo) era o atraso que deveria ser suprimido pela “inexorável lei do progresso”. Para tirar esse terra do mato (não só tirar o mato da terra), os “desbravadores-civilizadores” segregaram, ou mesmo destruíram, grande parte do patrimônio imaterial (festa do Divino, mesada das crianças, etc) dos “brasileiros” e a quase totalidade do seu patrimônio material (oratórios, capelas de madeira farquejada, etc.).
Entretanto, não contentes em destruir o patrimônio dos “outros”, os civilizados homens de progresso decidiram destruir o seu.
Inúmeros casarões localizados normalmente nas áreas centrais das cidades do oeste catarinense foram ao chão para dar espaço a prédios comerciais e residenciais, sobretudo após a década de 1990, quando se desenha um novo “boom” imobiliário na região. Evidentemente não se propõe preservar tudo (o que é inviável e pouco inteligente), todavia o que é estarrecedor é o descaso com relação ao direito à memória. Mesmo os espaços não construídos, como as primeiras praças dos municípios da região, foram totalmente modificadas para que  do passado a população não tivesse nem lembrança. Ao contrário do que se desenha em outras partes do mundo e, mesmo, do Brasil, que, frente à mercantilização da cultura e ao presentismo exacerbado, têm-se buscado construir uma biografia coletiva capaz de fornecer, ainda que não de modo completo, um senso de continuidade com um passado que transcende o indivíduo e sua geração (TEDESCO, 2004), percebemos no oeste catarinense a incorporação do imediatismo e o repúdio ao que está “velho” (associado sempre ao “feio” e ao atraso). O sentido de patrimônio ainda é, para essas “gentes industriosas” de Waibel, restrito à dimensão financeira e pessoal. Dos sessenta prédios tombados pelo Estado de Santa Catarina, apenas um se localiza no oeste: o Museu do Vinho, em Videira (FUNDAÇÃO CATARINENSE DE CULTURA, 2008)
Aqui ficou claro que a preocupação deste texto é com o patrimônio material, antes de prosseguir faz-se importante conceituá-lo. De acordo com a Carta de Veneza (1964), documento que dá as diretrizes da atuação do Comitê do Patrimônio Mundial da Unesco, pode ser considerado um patrimônio histórico material não apenas as grandes construções, mas qualquer obra (mesmo as mais modestas) que tenha adquirido significação para um grupo social ou para toda a coletividade (IPHAN). A sua significação não se limita às características físicas e/ou morfológicas (em que estilo se enquadra), mas no que representa (o que está além do prédio).
Na região não costuma-se fazer restauração ou revitalização de edificações e ou espaços históricos, mas sim reforma, como se a história não tivesse valor, retira-se materiais antigos considerados pouco nobres ou envelhecidos e substitui-se por matérias recentes e considerados mais nobres. Desconsideram que o próprio tempo atribui a nobreza aos materiais, pois tornam-se raros e isto faz a diferença (os torna diferenciados e raros). Os monumentos preservados são testemunhos da história (ou deveriam ser), dos costumes, do momento histórico, do estilo e materiais daquela época. Monumentos reformados são apenas a lembrança da história, não há o testemunho.
Igreja antes da reforma


Igreja após a reforma







A famigerada noção de progresso ininterrupto, de anseio pelo novo, de negação do que é “velho”, etc., no oeste catarinense parece ter contaminado até mesmo uma instituição caracterizada pela tradição oriunda de um suposto “ontem grandioso”: a Igreja Católica. Em três municípios oestinos, para não citarmos outros, os templos católicos sofreram reformas que alteram as características dos projetos originais: Chapecó (Catedral Santo Antônio), Xanxerê (Igreja Matriz Senhor Bom Jesus) e Xaxim (Igreja Matriz São Luiz Gonzaga).
Nas reformas das Igrejas de Xanxerê e Chapecó foram substituídos materiais antigos e característicos por materiais modernos e sofisticados, retirando toda simplicidade da madeira nas paredes e ladrilhos no piso.  Há a discussão do bonito e para facilitar podemos comparar a uma pessoa: Não é porque ela ficou velha que se destrói seus traços, procura-se atenuar as agressões do tempo, do contrário ficará irreconhecível. Sobre a igreja de Xaxim gostaríamos de dedicar maior atenção, visto que passou por recente reforma (primeiro semestre de 2011).
Igreja antes da reforma
Igreja após a reforma
A Igreja Matriz de Xaxim figurou em cartões postais, capas de livros, publicidades, etc., como uma das mais belas construções religiosas do Estado. Seu destaque deve-se ao projeto diferenciado elaborado com elementos do neogótico ( gothic revival), como arcos ogivais, vitrais coloridos com motivos sacros e mensão a uma rosácea (abertura circular, com banda de pedraria, sobre o portal da fachada principal), buscando através de suas torres o  verticalismo, característico do estilo gótico. Sua fachada principal lembra a Basílica de Sainte-Clothilde em Paris (primeira edificação neogótica significatva na França) e que talvez tenha servido de inspiração quando da elaboração do projeto da Igreja Matriz São Luiz Gonzaga.
Inaugurada em 1951, era uma obra com proporções monumentais se relacionada ao contingente populacional e área ocupada pelo pequeno povoado (que ainda nem era município). Para o sucesso do projeto arquitetônico de TicianoBetanin e da decoração interna de Emílio Zanon tiveram participação algumas personalidades religiosas hodiernamente queridas pela população local, como os freis PlácidoRohlf, Mário Kneipp e Bruno Linden (DALLA ROSA & BERTICELLI, 2010). Tendo em vista que para este último há em curso um processo de beatificação no Vaticano (VIDI, 2008) é uma irracionalidade que o próprio clero não busque meios de restaurar a Igreja, preservando-lhe as características de sua construção.
A recente reforma não foi, infelizmente, a primeira agressão sofrida pela Igreja Matriz São Luiz Gonzaga. De acordo com documento da Província Franciscana da Imaculada Conceição, em 1993 a nave da igreja foi “restaurada” e toda a pintura interna refeita (FRANCISCANOS).
O mesmo documento, todavia, admite o insucesso no intento de atingir os mesmos tons nas figuras sacras. As transformações, entretanto, vão além da pigmentação das paredes e colunas. A iluminação era feita por meio de lustres de cristal suspensos e finos, de modo a não comprometer a visualização das pinturas no teto, dando ao interior da igreja uma impressão de leveza. Em 1993, durante o suposto restauro ( na verdade uma reforma), os lustres de cristal foram substituídas por grandes estruturas de madeira que, além de romper com a harmonia do ambiente, comprometem a visualização da totalidade das gravuras do teto.
Embora a comunidade local tenha já, em 1993,demonstrado insatisfação com as mudanças, o procedimento dos franciscanos de Xaxim não se alterou neste início de decênio. Desta vez, porém, o “alvo” fora a parte externa da construção. Como em quase toda obra com certo tempo de vida as paredes da igreja estavam escurecidas devido aos fungos e a remoção da pintura pelas intempéries.  No lugar de uma restauração, com equipe técnica e qualificada, procedeu-se a reforma. As paredes foram lavadas à jato, o que efetivamente removeu as marcas do tempo, mas não só elas: removeu também o próprio tempo, o brilho, a identificação com um passado agregador de valores.  A edificação ficou manchada, não só pelo procedimento, mas pelo desrespeito de quem devia preservá-las.
Se antigamente a Restauração foi praticada de forma empírica, hoje é cercada de um aparato técnico-científico que confere uma base segura para as intervenções nas obras. O arquiteto francês EugèneViollet-le-Duc elaborou os primeiros conceitos para a preservação e restauração de patrimônio edificado, tornando-se referência teórica na Europa e no Mundo.
Atualmente, as restaurações buscam intervir menos nas obras e com o cuidado de utilizar materiais reversíveis. As mudanças nos conceitos de preservação e restauração são fruto de uma compreensão importante: a noção de nossa temporalidade. Sabemos que as decisões que tomamos hoje, a cerca de uma restauração a ser feita, são movidas pelo que pensamos, conhecemos e pelo gosto estético do “hoje”. Porém, a obra perdurará.  A busca pela mínima intervenção e pela utilização de materiais reversíveis, bem como a documentação do processo, objetivam viabilizar futuras intervenções necessárias, quiçá com uma tecnologia melhor e um conhecimento mais aprofundado.
Em tempo é bom lembrar que raras edificações no Oeste possuem tombamento municipal e quando alguém o cogita para alguma edificação particular, do dia para a noite ela deixa de existir, tombada ao chão literalmente. Mesmo as edificações e espaços não privados (públicas ou religiosos) raramente são tombados, como se para viabilizar, se desejado, a descaracterização total ou demolição dos mesmos para o progresso passar.
Já que a região culturalmente tem o lucro como fator importantíssimo, deveria lembrar que o turismo, também gerado pelo patrimônio histórico preservado, é a segunda atividade que mais movimenta dinheiro no mundo, depois da comercialização de armamentos. Assim a preservação do patrimônio histórico é uma maneira inteligente de incentivar o turismo, uma atividade rentável sustentável (não agride o meio ambiente) e além de poder receber benefícios financeiros para restauração através da Lei Rouanet quando a edificação ou espaço é tombado como patrimônio histórico.
No início deste breve texto salientamos o desejo de se fazer na região oeste de Santa Catarina uma Europa em escala diminuta, reproduzindo aqui os padrões de lá. Porém que Europa é esta? Enquanto cá no oeste catarinense põem-se tudo abaixo ou viola-se o que está de pé (como é o caso da Igreja Matriz São Luiz Gonzaga de Xaxim), numa louca corrida pelo “progresso”, pelo belo (em oposição ao “atraso” e ao “feio”), na Europa – ou seja, no modelo – verifica-se uma corrida com a mesma intensidade, porém em sentido contrário, para preservar o passado, salvaguardo de uma (ou várias) identidades coletivas (LEMOS, 2004).
Só uma manutenção eficaz de nossa herança histórica poderá garantir uma continuidade consciente da nossa identidade nacional (história como memória), porquanto a sua discussão ético-social, manterá a longo termo, as imprescindíveis tradições e libertará forças criadoras (JORGE, 1993). Preservar o passado é, portanto, preservar o futuro.

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