sábado, 30 de outubro de 2010

domingo, 24 de outubro de 2010

O “Eu” e(é) o “Outro”: breve ensaio sobre a dignidade humana


Você já se perguntou, por algum instante, qual é a sua responsabilidade (e se ela é) para com o “Outro”? Ainda, se, de fato, existe essa responsabilidade? São questões por demais intrincadas e que, há muito, estão sendo acobertadas por um discurso dominador (individualista), sendo necessário construir novas bases para respostas diferentes.
E, para bem cumprir tal desiderato, começa-se dizendo o seguinte: o “Outro” deve ser reconhecido desde a sua perspectiva e não com base na minha (do “Eu”); deve ser respeitado desde si; o “Eu” é que deve se encontrar no “Outro”.
O “Outro”, aqui tratado, é o “excluído”. Não o excluído da minha cultura ou da perspectiva que me situo, mas, sim, desde o seu locus existencial. Referida exclusão, ademais, pode ser acarretada pela tentativa de sua inclusão no meu modo de ser, na minha cultura, transmutando-se em dominação.
Não posso (“Eu”) influir para sua exclusão, deteriorando sua existência (devo, antes de mais nada, garanti-la!). E, mesmo quando não tenha – diretamente – dado causa para seu estado periclitante, tenho, sim, responsabilidade pelo “Outro”, porquanto isso tem a ver comigo também.
Ocorre que, quando o “Outro” me interpela – com o seu olhar, por exemplo, ou quando pede esmola ou comida ou, bem como, quando está em uma situação de sofrimento ou está sendo dominado – acabo sendo interpelado em minha dignidade.
Sim, minha dignidade não é algo construído a partir do “Eu”, senão desde o “Outro”. É no “Outro” que devo espelhar minha condição humana, porque devo “me encontrar”  (e de fato me encontro) nele.
A dignidade não pode ser adjudicada por “um” só sujeito, antes, é construída por “todos”. Apenas possuo dignidade se todos os “Outros” também a possuem, porque ela (a dignidade) somente é palpável conjunta e não individualmente, não sendo dignidade “do ser humano” e, isto sim, “dignidade humana”.
A face do “Outro”, portanto, é um “espelho”, que reflete tudo aquilo que sou desde a sua perspectiva; mais que isso, somente “sou” aquilo que o “Outro” permite que eu seja, porque “Eu” dependo dele para me visualizar e me compreender, para delinear e constatar minha (participação na) dignidade.
A face do “Outro” é o espelho da “realidade”, de modo que a dignidade que penso existir em mim, mas não está concretizada no “Outro”, na verdade, é irreal. Mas ela também é “virtual”, no sentido de que pode vir a existir, desde que “Eu” possibilite sua existência no “Outro”, eis que se, a partir de mim, percebo a possibilidade de dignidade, é porque, desde o “Outro”, ela é possível de ser alcançada.   
A dignidade “real”, e não “virtual”, para existir, necessita do reconhecimento do “Outro”, ou melhor, desde que este também se sinta digno (por isso, o espelho). Pode-se dizer, dessa forma, que minha dignidade existe (concretamente) na porção compartilhada, mutuamente, com o “Outro”, isto é, na mesma medida que ela existe neste. 
Quando olho para o “Outro” estou, pois, olhando para mim mesmo! Se ele está sofrendo, está sendo dominado, está excluído, enfim, está sendo privado de sua dignidade, assim também “Eu” estou. E quando ignoro um apelo do “Outro”, ainda que formulado implicitamente, abandono o respeito à minha dignidade humana, porque estou “me” abandonando. 
Daí que a responsabilidade em emancipar o “Outro” é, por via transversa, uma responsabilidade para comigo mesmo. Só posso ter dignidade se a vejo, também, nos demais indivíduos. Ou ela existe no “Outro”, ou sequer existe em mim!

Cleiton Luis Chiodi - GEDIS

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Eduardo Pianalto de Azevedo

Samuel Radaelli (GEDIS), à esquerda;
Régis T. de Mello (GEDIS), ao centro;
Eduardo Pianalto de Azevedo, à direita.

Conversamos com o Professor Eduardo em ambiente onde ele transita com desenvoltura (a Universidade) – o vídeo dessa entrevista pode ser acessado, neste blog, na barra de vídeos acima, ou no canal do grupo GEDIS no site youtube (www.youtube.com/grupogedis).
Eduardo chega com seu jeito simples (jeans e camiseta branca tornaram-se, dentre outras, marcas deste respeitado professor de direito penal) e começa a discorrer sobre temas diversos, sem abrir mão da sofisticação teórica. O tempo passa rápido, o professor dos “causos” (e das temidas provas) não foge da raia, enfrenta questões complexas e seduz com a firmeza de seus argumentos.
Desse bate-papo informal extraem-se informações valiosas (abaixo resumidas). Eduardo é gaúcho de Rio Grande, formou-se na PUC de Porto Alegre e, antes de ingressar na Polícia, trabalhou na Secretaria da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul.
Relata que trabalha desde os 14 anos de idade. Entrou - no ano de 1975 - para a Polícia, onde construiu carreira, primeiro como investigador, depois como escrivão (a partir de 1978) e, de 1989 a 2006 (ano da aposentadoria), como delegado.
Eduardo, atualmente, é mestre (não apenas no sentido acadêmico da expressão, concluinte que é do curso de Mestrado da UFSC), mas principalmente no sentido de “homem que ensina”, com sabedoria.
A seguir, uma síntese de suas posições sobre várias questões:

Polícia como instituição
A polícia é uma instituição fraca. Seus delegados não pensam nela como instituição. Falta corporativismo institucional e sobra corporativismo pessoal. A polícia é mais do que o cargo de delegado (ou seja, não se pode personalizar a polícia).

Abordagem policial
A polícia mais gera medo do que sensação de segurança. Uma das causas disso é o próprio despreparo do policial que faz de sua defesa o ataque (afinal, ele também tem medo).
Além disso, há a questão do poder. A outorga de poder a uma pessoa despreparada é uma questão séria, pois o poder seduz.

Polícia militar
A militarização da Polícia (que ocorreu com a Revolução de 64) é um equívoco. Além disso, há pouco efetivo da polícia militar nas ruas (cerca de 30%), o que é inadmissível. O Poder Público contribui com a iniqüidade ao atribuir serviços burocráticos a polícia militar (como elaboração de termo circunstanciado).

Delegados
Boa parte dos profissionais precisaria de mais preparo intelectual. A preparação, após o ingresso na carreira, é essencialmente técnica ou operacional.

Criminalidade e segurança pública
A criminalidade é um fenômeno único. Logo, as polícias (civil e militar) também deveriam ser unificadas. Para se ter uma idéia, nem mesmo as faixas de rádio usadas são as mesmas.
Por outro lado, não há efetivo interesse na resolução do problema da segurança pública. Ele rende plataforma eleitoral. Acabando com o problema da segurança, sucumbe o discurso. Nesse contexto, a polícia é mero instrumento de preservação do interesse político.
Na verdade, o problema da segurança pública não é de segurança pública! A solução está em outras esferas, como, por exemplo, no oferecimento de educação de qualidade.
Contribuí, ainda, para a alta da criminalidade, a própria mídia. Ela faz questão de divulgar a alta da criminalidade como mostra de crescimento. O sinônimo de desenvolvimento de uma cidade é sua criminalidade alta.

A cultura do medo
O Estado precisa eleger um inimigo para combater (como exemplo, o combate às drogas).
Assim agindo, o Estado consegue coesão ideológica e omite problemas sociais (relegados a um segundo plano).

Política na polícia
Existe, mas a culpa é de quem a aceita. Os cargos de direção, na Polícia, decorrem de uma escolha política (o que é um equívoco, pois tratamos de uma instituição que deveria primar pelo profissionalismo e a técnica). Os policiais deveriam, para os cargos de direção, ser escolhidos por mérito.

Redução da maioridade penal
Contra. Não seria a solução para o problema do crime. Biológica e psicologicamente, o menor não está completamente maduro e, em sua média, possui comportamento diferenciado que, assim, demanda tratamento também diferente.

Pena de morte
Contra. O atual estágio político e jurídico não permite a adoção desta punição.

Políticos
Os candidatos são fracos ou despreparados. Prepondera o “bom-mocismo”.

Universidade
Sinônimo de diversidade. A universidade é ensino, mas principalmente pesquisa e fomento de idéias. Não há universidade sem pesquisa.
Além disso, faltam outros instrumentos de cultura.

Obscurantismo (?)

              A autora do texto publicado neste blog no dia 06 de outubro de 2010, denominado “Dois Pesos...”, foi demitida pelo jornal “O Estado de São Paulo” nessa mesma data. Em argumentação bem fundamentada, a psicanalista Maria Rita Kehl tratou, no artigo que causara sua demissão, sobre a questão da “desqualificação” dos votos dos pobres e a importância de programas sociais como o “Bolsa Família” no atual contexto social do nosso país.
              Fenômenos como esse explicitam o que há de obscuro na rede do poder econômico e político: por detrás de muitos discursos que pregam a liberdade do mercado e a redução da soberania estatal se esconde um forte conteúdo ideológico que visa à acumulação de riquezas de uns por meio da exclusão social de outros. Vale lembrar que situações assim não ocorrem apenas com colunistas, mas – e principalmente – com o trabalhador de base, que sobrevive com o salário mínimo, constantemente submetido às pressões políticas impostas pelo patrão – aquele ser benevolente que gera emprego e renda à população.
           A submissão política do trabalhador em relação ao empregador é uma realidade concreta. Muito mais que o poder de se apropriar do trabalho alheio, o patrão tem, em muitos casos, a possibilidade de condicionar a opinião do seu funcionário por meio de “sanções internas” bem conhecidas pela sociedade. O fato de o funcionário “falar demais” não é interessante para o proprietário, e este, por sua vez, expressa tal desinteresse de várias formas.
            O que o fato da demissão da colunista Maria Rita Kehl simboliza é a diferença do posicionamento do dominador da sociedade atual em relação à sociedade de algum tempo atrás. Antigamente, a classe dos empregadores defendia e exprimia suas opiniões sectárias de forma objetiva. Hoje, a ideologia liberal divulga a extinção da luta de classes, como se tal fenômeno não mais existisse. Tal posicionamento possui o objetivo de amenizar as contradições da dominação, bem como de promover uma proposta política atraente em relação ao pobre – que constitui a maioria em nossa sociedade. A direita existe e continua agindo, porém sempre debaixo dos panos da democracia representativa.
            A luta de classes existe bem como a constante pressão do rico para que o pobre se submeta às suas vontades. Quando surge qualquer medida que modifique essa lógica e proporcione ao pobre a oportunidade de um mínimo de auto-determinação, ela é conceituada negativamente (sob a forma de “esmola”, “estímulo à vadiagem”...). Em seu artigo (reproduzido por este blog), Maria Rita Kehl explicou, com argumentação concreta, a importância do Bolsa Família, atualmente, para a nossa sociedade. Tentáculos obscuros atuaram, e ela foi demitida. Agora cabe a nós reconhecermos (e lutarmos contra) a existência desses tentáculos, para que, amanhã, não nos tornemos outra vítima deles.

Luís Henrique Kohl Camargo - GEDIS

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Dois Pesos...


Artigo de Maria Rita Khel, publicado no jornal "Estado de São Paulo":
Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.
Se o povão das chamadas classes D e E – os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil – tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.
Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por “uma prima” do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.
Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa, como no assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias. Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da “esmolinha” é político e revela consciência de classe recém-adquirida.
O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família, que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de “acumulação primitiva de democracia”.
Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.
Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.