–Olhe-a bem. Já não a verá nunca mais. (...) Fixei-me no lugar e fechei o volume. Imediatamente o abri. Em vão busquei a figura da âncora, folha por folha.
(Jorge Luis Borges, O livro de areia)
À medida em que o fenômeno da globalização se intensifica e se expande, tentando impor modelos e referenciais em todos os cantos do mundo, observa-se uma tendência à valorização do micro, das culturas regionais, e a aldeia global, termo cunhado por simpatizantes do processo, mostrou-se ao mesmo tempo, capaz de resistir e promover a valorização de culturas que há tempos se pretenderam extintas, como as culturas nativas, no caso do Brasil. O fenômeno da globalização provocou então, uma espécie de efeito contrário, e o mercado acabou se curvando ao se adaptar a gostos e preferências regionais.
As últimas décadas do século XX vivenciaram um reavivamento das culturas locais. Por todos os lados grupos, povos, etnias, movimentos, antes silenciados, ou que por muito tempo sofreram tentativas no sentido de fazer com que silenciassem, procuram levantar a voz, fazer-se perceber em suas singularidades e particularidades, num dinâmico movimento de luta por espaço, valorização e respeito. O tempo agora é o do diferente, que insiste e orgulha-se em reconhecer-se como tal. Conceitos como verdade são rechaçados e cedem lugar aos pluralismos, às múltiplas verdades. O racionalismo cede espaço ao misticismo, à religiosidade.
Para muitos pensadores, a impossibilidade de planejamento e controle do futuro, evidencia uma realidade onde as diferenças e singularidades não desaparecem, mas permanecem e insistem em sobreviver. A uniformização de crenças, costumes, gostos e gestos é inviável, indesejável e desnecessária e a maior prova foram os regimes totalitários (fascismo, nazismo, regime socialista soviético) que acabaram fracassando na tentativa de moldar comportamentos e eliminar o diferente.
A essa nova percepção da realidade, convencionou-se chamar de pós-modernidade. O uso do termo é polêmico.
Seus adeptos a definem enquanto uma espécie de etapa superior da modernidade, na qual a humanidade poderia atingir um grau de organização e desenvolvimento aceitável, onde o avanço das forças sociais e políticas, bem como da técnica, permitiria ao indivíduo libertar-se do domínio de entidades ou poderes que lhe ditam normas, e viver de forma muito mais autônoma e livre suas próprias escolhas. Os impérios políticos, religiosos ou culturais estariam praticamente extintos.
Para o sociólogo francês, Alain Touraine, o paradigma emergente funda-se na cultura. Não mais na política da organização de nações dirigidas por seus reis como foi o pensamento dominante até o século XVIII, nem na economia, como se acreditou depois. Touraine decreta o fim do social, das entidades que representam o indivíduo. A luta dos proletários, por exemplo, tornou-se quase que impraticável, uma vez que o patrão, que concentra o poder, encontra-se diluído juntamente com a empresa, que pode produzir suas mercadorias em várias partes do mundo, sem contar com um local fixo, e podendo deslocar-se com muita facilidade.
A luta por direitos políticos, depois substituída por direitos sociais, agora é mais uma vez substituída pela onda dos direitos culturais. Os direitos culturais giram em torno da possibilidade que o indivíduo tem de fazer escolhas antes impensáveis, como crenças, opções sexuais... São direitos que se expressam no campo da cultura, mas que se aplicam numa dimensão individual.
O indivíduo libertou-se de sindicatos, partidos, igrejas ou outras instituições que determinam seu modo de pensar e agir, e a possibilidade de optar de forma consciente em um mundo marcado pelo acesso à informação, pode torná-lo sujeito. Este é o grande desafio. Sujeito na medida em que suas próprias determinações, de caráter pessoal, influenciam a coletividade. Consumir ou não determinado produto pode afetar populações inteiras, próximas ou distantes.
Os críticos ao uso do termo pós-modernidade partem do pressuposto básico de que a modernidade ainda não cumpriu suas principais promessas fundadas no Iluminismo e seus ideais de universalidade, individualidade e autonomia. Direitos humanos essenciais ainda não se fizeram estender ao conjunto da população mundial. O número de miseráveis e desassistidos de acesso à educação e avanços da medicina, por exemplo, ainda é imenso e assombroso, fazendo sombra às ilhas de abundância espalhadas aqui e ali, especialmente nos países do norte.
As benécias do capitalismo, seus confortos e facilidades decorrentes do avanço tecnológico ainda permanecem restritas a uma parcela minoritária da população mundial. Ditaduras ainda coexistem com democracias e estas últimas apresentam fragilidades de toda ordem, sendo a corrupção o elemento mais alarmante e entravador do processo de promoção dos indivíduos. Países desenvolvidos e de maior estabilidade econômica enfrentam o drama de milhões de migrantes que buscam seu lugar ao sol.
Toda essa realidade, quando confrontada com os padrões sonhados e apregoados pelo Iluminismo, desnuda-se e evidencia que, se algum avanço houve, não beneficiou a ampla maioria. Afinal, o europeu ou americano médio contém em si a mesma humanidade que o africano, latino ou asiático que vive com menos de um dólar por dia.
Como falar então, em pós-modernidade, se a modernidade não se completou, não atingiu os padrões almejados?
O filósofo Sérgio Paulo Rouanet está entre os que acreditam que, embora tenhamos presenciado o desencanto em relação à ciência e à política, e a construção de um mundo em que se assegurem e garantam aos indivíduos os meios de conquista da liberdade e felicidade esteve ameaçada e o último século tenha terminado com certo pessimismo, os conceitos iluministas de universalidade, individualidade e autonomia precisam urgentemente ser retomados e reconstruídos.
Délcio Marquetti - GEDIS
Referências
ROUANET, Paulo Sérgio. Mal-estar na modernidade: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
TOURAINE, Alain. Um novo paradigma: para compreender o mundo de hoje. Petrópolis: Vozes, 2006.