Maria Helena Chauí, em seu livro “O que é ideologia”, faz um breve panorama acerca desse termo tão utilizado (e de forma tão equivocada, diga-se de passagem) em uma série de discursos de variadas plataformas políticas, econômicas e sociais. Podemos definir ideologia – satisfatoriamente, para a finalidade deste breve texto – como um conjunto de ideias produzido por uma sociedade com a finalidade de justificar racionalmente suas práticas e costumes, ou seja, a realidade por ela criada. A produção de ideologias é elemento intrínseco a qualquer sociedade, mesmo porque possibilita a própria existência desta. Ora, a sociedade é formada por seres humanos que seguem noções de justiça e moralidade para fundamentar suas ações, as quais decidirão os rumos (ou mesmo a extinção) de um grupo social. Em suma, “ideologia” é o elemento retórico que gere intelectualmente o produto social e seus modos de produção.
Não raro encontramos tal termo atrelado a uma carga pejorativa. De fato, há um esforço para ligar o conceito de “ideologia” a uma ferramenta discursiva de cunho esquerdista, progressista ou comunista. Não é exigido muito de nosso intelecto para notarmos a leviandade de tal equiparação: o emprego da ideia de “ideologia” é essencial ao estudo da sociedade e, por essa razão, pode designar tanto discursos de “direita” quanto de “esquerda” (para uma melhor definição sobre no que consiste, contemporaneamente, esses termos, vide Norberto Bobbio: “Direita e Esquerda”).
O que se quer abordar com essa introdução é a questão dos critérios ideológicos de seleção utilizados pelos empregadores na atualidade e sua relação com a ideia de “meritocracia”. Uma pesquisa de campo realizada por Marcia Hespanhol Bernardo, que embasou o conteúdo do livro “Trabalho duro, discurso flexível”, revela um critério interessante que vem sendo veladamente trabalhado pelos administradores de empresa quando da contratação de funcionários: ao invés de pautarem-se pelo “saber-fazer” (experiência, capacidade de realizar tarefas etc. – fatores levados em conta no passado), as empresas buscam, hoje, empregados que se submetam mais facilmente aos objetivos e à filosofia da empresa (“saber-ser”). Essas pessoas serão cooptadas pelas promessas dos dirigentes e, assim, dedicar-se-ão mais ao trabalho sem a necessidade de uma estrutura hierárquica rígida e pesada para manter o funcionamento do sistema (o que, além do mais, custa caro ao empreendedor).
Um fato interessante na pesquisa citada é a preferência pelas empresas pesquisadas em contratar jovens que não possuíam nenhuma experiência empregatícia. Também surpreende a rejeição destas empresas (do ramo metalúrgico) em contratar empregados que já haviam trabalhado no ramo, em outras empresas. À primeira vista o discurso utilizado pelas empresas para justificar tal expediente é o de que ela “é preocupada com a questão social, visando dar emprego aos mais jovens e inexperientes”. A autora, porém, vai mais fundo na questão e descobre que, na realidade, o que a empresa buscava era a contratação pessoas que não haviam tido contato com qualquer sindicato ou organização análoga (relativamente forte no ramo metalúrgico). O mesmo raciocínio se aplica à questão da faixa etária: preferir jovens, na realidade, é uma estratégia para contratar indivíduos que são, em geral, mais facilmente seduzidos pela retórica da “empresa-segunda-casa” e que dificilmente tomarão uma postura crítica perante as decisões de seus superiores.
Dessa forma, o que se verificou foi que os critérios ideológicos sobrepõem-se aos critérios técnicos no momento da seleção. Preterir sujeitos críticos, politicamente ativos e contestadores nada mais é do que deixar de lado o “mérito” pela obra da pessoa para pautar-se em questões ideológicas que mais se relacionam às políticas de manutenção do funcionamento do sistema do que ao sopesamento entre as capacidades possuídas pelo candidato e as exigências do cargo pretendido.
Nota-se que o sentido de “competência” vem se transformando, diminuindo gradativamente o valor do “saber-fazer” (conhecimento, capacidade de produzir etc.) em detrimento do “saber-ser” (cooptado, submisso e sem subjetividade fora dos objetivos da empresa). Essa afirmação desmantela o discurso da “meritocracia”, posto que, na realidade, as oportunidades ofertadas ao sujeito distanciam-se do seu campo de liberdade de escolha de ação e aproximam-se, por sua vez, a uma forma de pensar na qual “quanto mais submisso for mais chances o sujeito dominado terá”.
É necessário que compreendamos essas estratégias retóricas para percebermos que também há “ideologia” do “lado de cima do muro”, e que ela vem sendo utilizada para submeter cada vez mais a população trabalhadora aos interesses do capital. Visto isso, estaremos mais próximos a uma postura crítica de questionamento, que poderá, quiçá, lançar as bases para uma sociedade mais harmoniosa e igualitária.
Luís Henrique Kohl Camargo - GEDIS
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