[Texto escrito por Mário Maestri, disponível em "http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=8784%3Asubmanchete280813&catid=72%3Aimagens-rolantes" - acesso em 13/09/2013, 11h24]
A insurreição de associações profissionais e de milhares de médicos e
estudantes de medicina contra a chegada dos colegas cubanos tem
registrado despudoradamente o abismal nível de desumanização produzido
pela mercantilização da saúde no Brasil. Os milhões de brasileiros
desassistidos surgem como referências imateriais na retórica cínica que
defende qualidade do serviço médico que a população brasileira
desconhece, seja na área pública e, comumente, igualmente na privada.
No frigir dos ovos, defendem apenas a restrição do número de médicos,
em prol da manipulação safada das leis do livre-mercado. Com menos
médicos, melhores negócios! E a população que se lixe! Sob a escusa da
excelência da formação e das prestações médicas, defendia-se, ontem, a
restrição do número de universidades de medicina e, hoje, o monopólio
corporativo do ato médico e o embargo à chegada de
profissionais do exterior, com destaque para os cubanos, socialistas e,
horror dos horrores, não poucos negros!
Que venham aos milhares!
Que venham os médicos cubanos, às dezenas de milhares! Mesmo que
cheguem apenas para tapar os buracos da incúria governamental quanto à
saúde pública, mais e mais encurralada no balcão de negócios da medicina
privada. Mercantilização da saúde popular aplaudida pela indústria
hospitalar, de medicamentos e de planos de saúde; por associações de
classes; pelos milhares de profissionais privilegiados – ou apenas
seduzidos – por profissão transformada em meio de enriquecimento sem
limites.
Que dezenas de milhares de médicos cubanos sejam distribuídas pelos
ermos perdidos dos extremos sociais e geográficos do nosso país! Que
povoem o interior distante do Acre ou a periferia próxima de São Paulo,
do Rio de Janeiro, de Porto Alegre e de Salvador. Ainda que tais
colocações penosas devessem ser momento transitório – e
profissionalmente enriquecedor – de carreira médica público-estatal. Não
é isso que fazem os concursados do Banco do Brasil e os membros da
forças militares, sem “choro e ranger de dentes”?
Entre os médicos cubanos chegará algum incompetente, como propõem
denúncias literalmente histéricas? Certamente. E quem de nós já não se
encontrou com profissionais ineptos, mesmo nos consultórios e hospitais
privados de nossas mais adiantadas capitais? Sem que haja meios de
afastá-los de uma profissão para a qual não se qualificaram técnica ou
moralmente. Ao contrário do que ocorrerá no caso dos médicos visitantes.
Qualquer erro que fizerem terminará com enorme destaque na telinha da
rede Globo e nas páginas da Folha de São Paulo, Estadão, Zero Hora et caterva.
Meros Paliativos
Acusam-se os médicos cubanos de serem paliativos para situação
calamitosa e meios de publicidade política de governo que persegue
desesperadamente a avaliação positiva perdida. No que não estão
errados. Ao igual que as administrações anteriores, lulistas e
pré-petistas, Dilma Rousseff apostou na medicina mercantil, nos planos
de saúde, no financiamento privado dos cuidados médicos por população
brasileira transferida maciçamente por decreto para a classe média! E
teve como resposta a reivindicação por saúde e educação pública e
gratuita de multidões enraivecidas que sequer conseguem pagar 3,20 reais
por passagem de ônibus urbano! Engrossadas por aqueles que conseguem
pagar a passagem mas são depenados pela medicina e pela educação
privada!
Entretanto, não é menos certo que os médicos cubanos e estrangeiros
salvarão a vida e mitigarão as penas urgentes de milhões de
desassistidos, mesmo quando eventualmente não dispuserem das instalações
condizentes, como também denunciado. Instalações que certamente serão
por eles reivindicadas. Tudo isso enquanto se discute, produtiva ou
improdutivamente, com boas intenções ou malevolamente, sobre as soluções
estruturais futuras, de longo fôlego.
Os médicos estrangeiros enviados para os cafundós sociais e
geográficos do Brasil atenderão brasileiros desconhecedores de serviços
médicos mínimos, aos quais têm direito constitucional. Ampliarão a
consciência desses brasileiros sobre o valor e a necessária luta por
serviço público universal de qualidade. Certamente outros dois motivos
da oposição visceral da indústria, de associações e de profissionais da
saúde que se locupletam com sua mercantilização.
Por tudo isso e por muito mais, os médicos cubanos – e de outras
nacionalidades – devem ser recebidos com festa, com fogos de artifício e
braços abertos! Mas atenção. Nosso abraço deve ser o da população
agradecida e não o do urso aproveitador!
Em Defesa dos Médicos Cubanos
Os médicos cubanos não são mercenários da medicina, apenas
preocupados com a remuneração material. Não são igualmente missionários
que se alimentam de princípios morais e políticos – se é que existe tal
gente. São trabalhadores especializados que exercerão suas atividades no
Brasil. Portanto, encontram-se necessariamente submetidos e protegidos
pelas leis trabalhistas nacionais – mesmo que elas sejam pernetas e
limitadas.
Os cubanos devem receber a mesma remuneração que os demais
estrangeiros. É reivindicação dos trabalhadores, consagrada pela
legislação atual, que ao “mesmo trabalho” cabe a “mesma remuneração”.
Não importando as diferenças de sexo, raça, idade e nacionalidade.
Nenhum casuísmo justifica o desrespeito desse princípio. Pouco importa o
que recebem seus companheiros em Cuba, já que eles viverão e
trabalharão no Brasil, e não na ilha do Caribe. Aos médicos cubanos
cabe a bolsa de dez mil reais, paga diretamente pelo governo brasileiro.
Se aceitarmos o princípio da missão estrangeira, teríamos que concordar com que governos africanos enviassem trabalhadores contratados,
recebendo por eles seus salários das autoridades brasileiras, e
pagando-os abaixo do estipulado pela legislação nacional. Não impugna a
terrível analogia o fato de que ela tenha sido proposta por interessados
em sabotar a vinda dos médicos cubanos, e não em defender seus
direitos.
Nada de bantustão!
Os médicos cubanos têm o direito inarredável de trazer consigo seus
cônjuges e filhos menores, como todo estrangeiro com contrato de
trabalho no Brasil. Tal impedimento permite outra lembrança terrível.
Para manter o controle político-econômico, o apartheid construiu os bantustões, pseudo-micro-estados negros, de onde os trabalhadores partiam temporariamente para prestarem serviços nas minas da África do Sul,
sem poderem levar consigo as famílias. O que dificultava a radicação na
África do Sul e facilitava a manutenção da relação semi-servil.
Não podemos também negar o direito de permanecer no Brasil aos
médicos cubanos que assim o quiserem, por razões afetivas e, sobretudo,
econômicas. Ser radical é ir à raiz da questão, e não transformar
sonhos e fantasias em realidade. Com a crescente restauração capitalista
em Cuba, os trabalhadores ligados à esfera pública conhecem
remunerações miseráveis, enquanto prosperam os que conseguem se
incorporar à esfera mercantil que canibaliza a economia nacionalizada. A
expatriação interessa também aos médicos cubanos pela remuneração em
moeda forte, impossível de ser realizada em Cuba no serviço público.
[Maestri, Mário. “Cuba sob o signo da restauração capitalista”. www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=5296].
Mas é igualmente indiscutível o direito do Estado cubano de ser
remunerado pelos médicos que formou, enquanto trabalham no Brasil, ou
caso queiram aqui permanecer. Qualquer coisa diversa seria explorar a
esfera pública da sociedade cubana. Essa indenização deve recair
totalmente sobre o Estado brasileiro, que se negou a financiar a
formação dos trabalhadores da saúde que necessitamos dramaticamente. E
não sobre os médicos cubanos.
Em Defesa de Cuba Socialista
É inadmissível o desfrute por qualquer aparato governamental da força
de trabalho dos médicos cubanos que devem chegar aos borbotões para
ajudarem a suprir as necessidades dramáticas de nossa população.
Apenas o respeito estrito dos direitos civis e trabalhistas mínimos
dos médicos cubanos permitirá que essa contribuição inestimável se dê
nas melhores condições. E não resulte em todo tipo de constrangimento e
aproveitamento por aqueles que se mobilizam para levar tal iniciativa ao
fracasso.
O imperialismo estadunidense já tem programa consolidado para
fomentar deserção mercenária de médicos e profissionais especializados
cubanos no exterior, através de suas embaixadas e consulados. O que
constitui uma agressão à economia socialista da ilha, em contínua
retração, sob a retórica estadunidense de solidariedade contra a
opressão comunista.
Apenas visão progressista tacanha não compreende que também a
defesa de Cuba socialista – e do que representou e ainda representa –
passa inarredavelmente pela defesa solidária dos direitos de seus
médicos no exterior.
Mário Maestri