terça-feira, 15 de outubro de 2013

Operário Jurídico

Sob alguns aspectos, a visão prática não passa de miopia: incapaz de considerar a infinita pluralidade dos reflexos da ação humana no mundo (muitos deles invisíveis empiricamente), aquilo que corriqueiramente se denomina "consciência prática" nega (ou no mínimo desconsidera) a existência dos reflexos insensíveis, impalpáveis, ilógicos e não evidentes.

Escrava de suas próprias limitações (muitas das quais são limites por si mesma lançados), a busca frenética por um modo de trabalho prático, no direito, leva o jurista na contra-mão de sua essência (que é o que nos distingue de um "operário jurídico", por exemplo): o esforço pela descoberta mais profunda, não lógica e não sobressalente das significações sociais.
 
O "eu sou prático", típico daquele que estuda a lei como razão em si e cujo projeto de vida é passar num concurso para garantir um lugar no trabalho e obter seus alguns mil reais (e só isso lhe basta!), é o que caracteriza o "operário jurídico", assentando tijolo por tijolo de uma construção que não é sua.
 
Estranhamente, o operário jurídico não consegue enxergar que a construção da cultura jurídica é também nossa, não apenas como trabalho/função, mas também como missão, projeto, sentido de vida. Não, ele dedica sua vida acadêmica apenas ao estudo da lei e, ainda incontente com essa redução absurda, consegue mais: resume a lei à sua dimensão estática, morta, dogmática, inquestionável. Tudo na busca de resultados profissionais, vai matando, pouco a pouco, o já tímido impulso transformador que deveria partir também de dentro da profissão jurídica.
 
Contribui ele para a construção de uma cultura jurídica infértil, morta e plastificada, donde pouco de "novo pode emergir, e onde arriscar é condenável, questionar é heresia e inovar é vergonhoso. Transpor os limites estabelecidos na jurisprudência é considerado algo inócuo, quase um ato de ignorância. É que, no fim, sempre surge a infeliz pergunta: "qual foi o resultado prático disso?", "de que adiantou sua irresignação?"
 
Incapaz de racionalizar o mundo como complexidade pujante, que se auto-renova a cada pequeno ato, o senso prático é castrador. Tirando a libido de humano ávido pelo novo, pela mudança, o senso prático acaba por tolher a própria sensibilidade. O operário jurídico chega a negar que puxa, diariamente e querendo ou não, carrinhos e mais carrinhos de mão da ideologia dominante. Assim, quase cego, continua a construção da obra do poder, sem ter chance de modificá-la (nem por dentro, nem por fora), pois sequer a reconhece. Ora, depois de tanto tempo que passou construindo mecanicamente a obra alheia, quão ofensivo não lhe soará qualquer comentário sobre destruir a obra! Revolucionar: violência ridícula e desnecessária. "Afinal, não seria mais prático utilizar a estrutura da construção?" Não.
 
Acredito que melhor seja uma cultura jurídica ousada, próxima e inovadora, porque humana. A higienização do direito, apegado aos parâmetros formais, rígidos, dognáticos e distantes (esquece-se, quase sempre, de também dizer: ilusórios) só interessa àqueles que dominam a obra. Só que eles precisam de operários, e também de operários jurídicos.
 
Nada é feito pelos "grandes" sem a conivência e o auxílio dos "pequenos".
 
A boa notícia é que a revolução capilar nasce na medida em que desencadeia. Isso quer dizer que cada minúsculo ato de rebeldia é motor capaz de incitar outro ato de rebeldia, por outra pessoa. Adverte-se, no entanto, que esse processo é invisível, e serve outro alerta: nunca se poderá medir, explicar ou apontar as causas e efeitos respectivos do ato transgressor. Isso porque não é possível utilizar tais categorias como medida hábil a classificar as reações do ato que ultrapassa a própria lógica dominante. Um ato que deseja vencer a lógica comum não pode ser medido pela razão causa-consequência - pelo contrário: só será ele compreendido pela visão poética da realidade, que é utópica, sonhadora, "pra frente".
 
Assim como, em germe, no pedreiro existe um construtor, que é impedido de nascer, urge criar um direito capaz de parir o jurista que há dentro do operário jurídico. "Construir" ao invés de "manter por manter", aceitar o novo e o erro, bem como nossa proximidade e comprometimento insensível com o projeto dominador, com o poder. Eis um passo para nós, juristas.

Luís Henrique Kohl Camargo - GEDIS

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Pena de morte no Brasil: inexistente para quem?

Segundo dispõe a nossa Constituição Federal, a pena de morte é proibida, exceto em caso de guerra declarada. Assim, pode-se afirmar que, por imposição constitucional, entre as penas previstas para os diversos crimes, não há a de morte. 

Contudo, há de se indagar: a proibição constitucional é suficiente para tornar inexistente a pena de morte no Brasil? 

Antes de dar essa resposta, é preciso que fique claro que, na sociedade capitalista, o Direito Penal possui uma função política marcante: garantir a desigualdade de classes. A relação econômica de poder entre, de um lado, os proprietários do capital e, de outro, os detentores da força de trabalho, é garantida pelo Direito Penal. As classes hegemônicas encontram no Direito Penal a garantia de continuar ostentando sua posição de superioridade, que é marcada pela extração da mais-valia, anulando a resistência dos oprimidos. Desse modo, “Fundamentalmente, isto é, do ponto de vista puramente sociológico, a burguesia assegura e mantém o seu domínio de classe mediante seu sistema de Direito Penal, oprimindo as classes exploradas” (PACHUKANIS, E. B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988, p. 123). 

É claro que a lógica formal do Direito busca camuflar essa relação de poder político e econômico, já que estrutura o Direito Penal sobre valores declarados universais, tais como a liberdade, o patrimônio, a vida etc. No entanto, um olhar mirado para a realidade concreta é capaz de espancar qualquer dúvida sobre a seletividade penal. A criminalização primária (leis que preveem crimes e penas) elege, no mais das vezes, bens jurídicos que interessam à classe hegemônica – não é por outro motivo que o patrimônio é objeto da maioria dos crimes, justamente em uma sociedade tão desigual como a nossa, em que poucos possuem quase tudo, em termos de patrimônio e poder econômico –. A criminalização secundária (atuação concreta do Sistema Penal na apuração de crimes e respectiva responsabilidade) também possui como alvo a classe baixa da sociedade. O Sistema Penal (Polícias, Ministério Público e Judiciário) concentra sua atuação para a criminalização da pobreza (basta ver as inúmeras operações realizadas em bairros pobres e favelas, com a utilização do exército, inclusive). Claro, de tempos em tempos, apura-se um ou outro crime de “colarinho branco”, para convencer a opinião pública do (ilusório) tratamento igualitário do controle penal. 

Dito isso, é preciso situar a pena de morte nesse cenário. Apesar de inexistente no processo de criminalização primária (afinal, não existe crime prevendo essa pena e eventual lei nesse sentido seria, por óbvio, inconstitucional), é uma constante inegável na criminalização secundária. Exemplo emblemático é a matança descontrolada praticada pela Polícia, que invade becos e favelas com propósito bem definido. Segundo a Anistia Internacional, “em 2011, o número de mortes por atos de resistência apenas no Rio de Janeiro e São Paulo foi 42,16% maior do que todas as penas de morte executadas, após o devido processo legal, em 20 países” (http://www.folhasocial.com/2013/07/policia-brasileira-e-que-mais-mata-no.html). Quem não se recorda da recente reportagem divulgada pela mídia em que a Polícia persegue um automóvel com um helicóptero e deflagra inúmeros disparos de arma de fogo, eliminado a vida do ocupante do veículo (suposto traficante). 

Mas não é apenas a eliminação da vida pelos agentes estatais que permite concluir pela existência da pena de morte. O que ampara essa conclusão é a chancela do Estado a essa prática. Muitas vezes, não se apura a responsabilidade penal dos agentes estatais que eliminam vidas. A Polícia, que deveria investigar, registra homicídios praticados por seus integrantes como “autos de resistência”, sem qualquer respaldo jurídico. O Ministério Público, incumbido de fiscalizar a atuação policial, por falta de estrutura ou de interesse, falha nessa função, ou, quando não, promove pelo arquivamento de eventual inquérito policial (o que dá na mesma), que, infelizmente, é deferido pelo Judiciário. 

A atuação do aparelho estatal no sentido de acobertar esses crimes de homicídio (inexistência de persecução penal – responsabilização penal dos agentes/autores) legitima, por via oblíqua, a morte de pessoas. Trata-se, pois, de incorporação concreta da pena de morte ao controle social penal brasileiro, que tem alvo certo: a força de trabalho excedente (o que explica a eliminação de tantos traficantes, os quais, como sabido, não se sujeitam ao trabalho assalariado, economicamente menos vantajoso que o comércio de drogas), conforme ensina Juarez Cirino dos Santos: “[...] titulares desses bens jurídicos pertencentes aos contingentes marginalizados do mercado de trabalho, sem função na reprodução do capital (a força de trabalho excedente das necessidades do mercado), não são protegidos nem como sujeitos, nem como objetos: são destruídos ou eliminados pela violência estrutural das relações de produção, ou pela violência institucional do sistema de controle social, sem consequências penais” (Manual de Direito Penal: parte geral. 2 ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012, p. 6).

Cleiton Luis Chiodi - GEDIS 


sexta-feira, 4 de outubro de 2013

O gigante que não acordou: a anemia política das manifestações de junho/julho


No definitivo requiém das "manifestações que varreram as ruas do Brasil inteiro" nos meses de junho e julho, em que pese sua manifesta debilidade política, penso ser inegável que tais eventos merecem uma atenção especial, ao menos a nível de análise jurídica e sociológica. Pensemos, então, sobre as funções sociais que tais manifestações representaram. 
Há um certo consenso quanto ao fato de que as razões iniciais das manifestações foram sendo paulatinamente desnaturadas, mostrando que o Movimento Passe Livre (de inspiração esquerdista) serviu bastante como estopim, mas pouco como alimento político da movimentação massiva que se pode observar algum tempo depois. Os debates até forçavam uma vaga referência às falhas do transporte público, mas muitos dos manifestantes que lá estavam certamente sequer sabiam o valor das tarifas de ônibus em seus municípios. Obviamente a taxa de transporte público não era a reivindicação principal. No entanto, sua íntima relação com as falhas da administração pública fizeram com que esse elemento fosse usado como fermento para fazer crescer um bolo há muito tempo esperando no forno, a fogo médio, dentro do subconsciente das massas brasileiras: o fantasma da corrupção, ávido para se materializar inequivocamente em uma pauta política de força considerável. 
Outros ingredientes, porém, foram necessários: o principal deles, percebo, foi a utilização do vazio existencial causado pelo isolamento político. Assim como alimentar-se, amar e ir ao banheiro, a atuação política faz parte de necessidades humanas. Atuar politicamente é elemento de construção do sentido da vida do ser humano. E o isolamento político, que se caracteriza pelo fato de estar no meio de muitos mas ser incapaz de estabelecer vínculos políticos (algo como o antigo "vamos fazer juntos"), gera um vazio atormentador. Acredito que todos já sentiram a sensação de estar "sozinho na multidão". Isso é uma amostra da sensação de isolamento. 
Esse vazio pode causar uma busca desesperada por "algo para lutar". Contudo, desejar manifestar algo em público não significa ter consciência política, e as manifestações de junho/julho podem muito bem ser utilizadas como prova disso. 
O que evidenciou o caráter de "preenchimento de vazio existencial" nas passeatas foi a facilidade com que as multidões mostraram seu apego a pautas politicamente anêmicas, lideradas pela da corrupção. Essas pautas intercalavam-se entre discussões midiáticas pobremente instruídas (como a da "PEC-37") e "lutas contra coisas que ninguém é a favor", como a corrupção. 
Ainda que ela exista e represente um mal, ninguém se declara a favor da corrupção, e é por isso que se inclui tal luta em um rol de pautas politicamente anêmicas, vagas, vazias. É como lutar "a favor da paz", "contra o estupro" ou "a favor de escrever com a mão". Ninguém vai contra essas coisas, embora muitas pessoas o façam. 
Tudo isso mostrou, por outro lado, a dificuldade de as pessoas assumirem uma posição política autêntica - que certamente exigiria um nítido grau de afastamento desses lugares retóricos de conforto. 
As águas das manifestações não ousaram escoar para além da tubulação do bom-senso. Trabalharam, quase à totalidade, dentro da ideia de revolução passiva. Queriam que mudassem os atores, mas não a novela: talvez pior, acreditaram que mudar os atores necessariamente daria outro enredo à novela. Esqueceram que os atores obedecem um roteiro, roteiro esse que não foi questionado - sua existência, aliás, sequer foi mencionada! Não foram poucos que ouvi afirmando que "o certo era tirar todos os políticos de lá e começar tudo de novo." 
Assim, a disposição das pessoas em desligar o computador e "ir pra rua" foi capaz de razoavelmente preencher, no indivíduo, sua sede por atuação política (tanto que virou status social compartilhar no facebook o famigerado "#vemprarua"), mas passou longe de demonstrar uma sólida consciência política. O movimento foi politicamente sem vigor, marcado pela aceitação da anemia política, ilustrada na indiferença partidária, negação de tudo, substituição dos personagens, fuga do posicionamento ideológico etc. 
É que, embora muita coisa estivesse errada, lá no fundo não havia luta, porque contra ninguém se lutou. Não eram manifestações políticas. Gigante nenhum tinha acordado (não fora da propaganda da Johnnie Walker). O papel social que se cumpriu foi análogo a uma festa ou a um jogo de futebol: direcionamento e concentração de energia contida pela inevitável disciplina social (se deixo de cometer crimes porque serei punido, essa minha pretensão resistida há que "estourar" em outro local). Uma boa partida de futebol é o local ideal para concentrar essa explosão, ou me acabar dançando em uma festa socialmente aceitável. 
Aliás, grande parte dos "#vemprarua" compartilhado tinha um pouco de "#partiubalada" escondido em si.
Contudo, compartilho de uma coisa: queria eu que a corrupção fosse necessariamente a pauta principal de nossas reivindicações sociais. É uma pena que não é. Pena, também, que muitas das pautas mais necessárias sequer foram lembradas em todo esse grande processo social.


Luís Henrique Kohl Camargo - GEDIS