Sob
alguns aspectos, a visão prática não passa de miopia: incapaz de
considerar a infinita pluralidade dos reflexos da ação humana no mundo
(muitos deles invisíveis empiricamente), aquilo que corriqueiramente se
denomina "consciência prática" nega (ou no mínimo
desconsidera) a existência dos reflexos insensíveis, impalpáveis,
ilógicos e não evidentes.
Escrava de suas próprias limitações (muitas das quais são limites
por si mesma lançados), a busca frenética por um modo de trabalho
prático, no direito, leva o jurista na contra-mão de sua essência (que é
o que nos distingue de um "operário jurídico", por
exemplo): o esforço pela descoberta mais profunda, não lógica e não
sobressalente das significações sociais.
O "eu sou prático", típico daquele que estuda a lei como razão em si
e cujo projeto de vida é passar num concurso para garantir um lugar no
trabalho e obter seus alguns mil reais (e só isso lhe basta!), é o que
caracteriza o "operário jurídico", assentando
tijolo por tijolo de uma construção que não é sua.
Estranhamente, o operário jurídico não consegue enxergar que a
construção da cultura jurídica é também nossa, não apenas como
trabalho/função, mas também como missão, projeto, sentido de vida. Não,
ele dedica sua vida acadêmica apenas ao estudo da lei e,
ainda incontente com essa redução absurda, consegue mais: resume a lei à
sua dimensão estática, morta, dogmática, inquestionável. Tudo na busca
de resultados profissionais, vai matando, pouco a pouco, o já tímido
impulso transformador que deveria partir também
de dentro da profissão jurídica.
Contribui ele para a construção de uma cultura jurídica infértil,
morta e plastificada, donde pouco de "novo pode emergir, e onde arriscar
é condenável, questionar é heresia e inovar é vergonhoso. Transpor os
limites estabelecidos na jurisprudência é considerado
algo inócuo, quase um ato de ignorância. É que, no fim, sempre surge a
infeliz pergunta: "qual foi o resultado prático disso?", "de que
adiantou sua irresignação?"
Incapaz de racionalizar o mundo como complexidade pujante, que se
auto-renova a cada pequeno ato, o senso prático é castrador. Tirando a
libido de humano ávido pelo novo, pela mudança, o senso prático acaba
por tolher a própria sensibilidade. O operário
jurídico chega a negar que puxa, diariamente e querendo ou não,
carrinhos e mais carrinhos de mão da ideologia dominante. Assim, quase
cego, continua a construção da obra do poder, sem ter chance de
modificá-la (nem por dentro, nem por fora), pois sequer a
reconhece. Ora, depois de tanto tempo que passou construindo
mecanicamente a obra alheia, quão ofensivo não lhe soará qualquer
comentário sobre destruir a obra! Revolucionar: violência ridícula e
desnecessária. "Afinal, não seria mais prático utilizar a estrutura
da construção?" Não.
Acredito que melhor seja uma cultura jurídica ousada, próxima e
inovadora, porque humana. A higienização do direito, apegado aos
parâmetros formais, rígidos, dognáticos e distantes (esquece-se, quase
sempre, de também dizer: ilusórios) só interessa àqueles
que dominam a obra. Só que eles precisam de operários, e também de
operários jurídicos.
Nada é feito pelos "grandes" sem a conivência e o auxílio dos "pequenos".
A boa notícia é que a revolução capilar nasce na medida em que
desencadeia. Isso quer dizer que cada minúsculo ato de rebeldia é motor
capaz de incitar outro ato de rebeldia, por outra pessoa. Adverte-se, no
entanto, que esse processo é invisível, e serve
outro alerta: nunca se poderá medir, explicar ou apontar as causas e
efeitos respectivos do ato transgressor. Isso porque não é possível
utilizar tais categorias como medida hábil a classificar as reações do
ato que ultrapassa a própria lógica dominante. Um
ato que deseja vencer a lógica comum não pode ser medido pela razão
causa-consequência - pelo contrário: só será ele compreendido pela visão
poética da realidade, que é utópica, sonhadora, "pra frente".
Assim como, em germe, no pedreiro existe um construtor, que é
impedido de nascer, urge criar um direito capaz de parir o jurista que
há dentro do operário jurídico. "Construir" ao invés de "manter por
manter", aceitar o novo e o erro, bem como nossa proximidade
e comprometimento insensível com o projeto dominador, com o poder. Eis
um passo para nós, juristas.
Luís Henrique Kohl Camargo - GEDIS