sexta-feira, 4 de outubro de 2013

O gigante que não acordou: a anemia política das manifestações de junho/julho


No definitivo requiém das "manifestações que varreram as ruas do Brasil inteiro" nos meses de junho e julho, em que pese sua manifesta debilidade política, penso ser inegável que tais eventos merecem uma atenção especial, ao menos a nível de análise jurídica e sociológica. Pensemos, então, sobre as funções sociais que tais manifestações representaram. 
Há um certo consenso quanto ao fato de que as razões iniciais das manifestações foram sendo paulatinamente desnaturadas, mostrando que o Movimento Passe Livre (de inspiração esquerdista) serviu bastante como estopim, mas pouco como alimento político da movimentação massiva que se pode observar algum tempo depois. Os debates até forçavam uma vaga referência às falhas do transporte público, mas muitos dos manifestantes que lá estavam certamente sequer sabiam o valor das tarifas de ônibus em seus municípios. Obviamente a taxa de transporte público não era a reivindicação principal. No entanto, sua íntima relação com as falhas da administração pública fizeram com que esse elemento fosse usado como fermento para fazer crescer um bolo há muito tempo esperando no forno, a fogo médio, dentro do subconsciente das massas brasileiras: o fantasma da corrupção, ávido para se materializar inequivocamente em uma pauta política de força considerável. 
Outros ingredientes, porém, foram necessários: o principal deles, percebo, foi a utilização do vazio existencial causado pelo isolamento político. Assim como alimentar-se, amar e ir ao banheiro, a atuação política faz parte de necessidades humanas. Atuar politicamente é elemento de construção do sentido da vida do ser humano. E o isolamento político, que se caracteriza pelo fato de estar no meio de muitos mas ser incapaz de estabelecer vínculos políticos (algo como o antigo "vamos fazer juntos"), gera um vazio atormentador. Acredito que todos já sentiram a sensação de estar "sozinho na multidão". Isso é uma amostra da sensação de isolamento. 
Esse vazio pode causar uma busca desesperada por "algo para lutar". Contudo, desejar manifestar algo em público não significa ter consciência política, e as manifestações de junho/julho podem muito bem ser utilizadas como prova disso. 
O que evidenciou o caráter de "preenchimento de vazio existencial" nas passeatas foi a facilidade com que as multidões mostraram seu apego a pautas politicamente anêmicas, lideradas pela da corrupção. Essas pautas intercalavam-se entre discussões midiáticas pobremente instruídas (como a da "PEC-37") e "lutas contra coisas que ninguém é a favor", como a corrupção. 
Ainda que ela exista e represente um mal, ninguém se declara a favor da corrupção, e é por isso que se inclui tal luta em um rol de pautas politicamente anêmicas, vagas, vazias. É como lutar "a favor da paz", "contra o estupro" ou "a favor de escrever com a mão". Ninguém vai contra essas coisas, embora muitas pessoas o façam. 
Tudo isso mostrou, por outro lado, a dificuldade de as pessoas assumirem uma posição política autêntica - que certamente exigiria um nítido grau de afastamento desses lugares retóricos de conforto. 
As águas das manifestações não ousaram escoar para além da tubulação do bom-senso. Trabalharam, quase à totalidade, dentro da ideia de revolução passiva. Queriam que mudassem os atores, mas não a novela: talvez pior, acreditaram que mudar os atores necessariamente daria outro enredo à novela. Esqueceram que os atores obedecem um roteiro, roteiro esse que não foi questionado - sua existência, aliás, sequer foi mencionada! Não foram poucos que ouvi afirmando que "o certo era tirar todos os políticos de lá e começar tudo de novo." 
Assim, a disposição das pessoas em desligar o computador e "ir pra rua" foi capaz de razoavelmente preencher, no indivíduo, sua sede por atuação política (tanto que virou status social compartilhar no facebook o famigerado "#vemprarua"), mas passou longe de demonstrar uma sólida consciência política. O movimento foi politicamente sem vigor, marcado pela aceitação da anemia política, ilustrada na indiferença partidária, negação de tudo, substituição dos personagens, fuga do posicionamento ideológico etc. 
É que, embora muita coisa estivesse errada, lá no fundo não havia luta, porque contra ninguém se lutou. Não eram manifestações políticas. Gigante nenhum tinha acordado (não fora da propaganda da Johnnie Walker). O papel social que se cumpriu foi análogo a uma festa ou a um jogo de futebol: direcionamento e concentração de energia contida pela inevitável disciplina social (se deixo de cometer crimes porque serei punido, essa minha pretensão resistida há que "estourar" em outro local). Uma boa partida de futebol é o local ideal para concentrar essa explosão, ou me acabar dançando em uma festa socialmente aceitável. 
Aliás, grande parte dos "#vemprarua" compartilhado tinha um pouco de "#partiubalada" escondido em si.
Contudo, compartilho de uma coisa: queria eu que a corrupção fosse necessariamente a pauta principal de nossas reivindicações sociais. É uma pena que não é. Pena, também, que muitas das pautas mais necessárias sequer foram lembradas em todo esse grande processo social.


Luís Henrique Kohl Camargo - GEDIS

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