No definitivo requiém das "manifestações que varreram as ruas do Brasil
inteiro" nos meses de junho e julho, em que pese sua manifesta
debilidade política, penso ser inegável que tais eventos merecem uma
atenção especial, ao menos a nível de análise jurídica e sociológica.
Pensemos, então, sobre as funções sociais que tais manifestações
representaram.
Há um certo consenso quanto ao fato de que as razões iniciais das
manifestações foram sendo paulatinamente desnaturadas, mostrando que o
Movimento Passe Livre (de inspiração esquerdista) serviu bastante como
estopim, mas pouco como alimento político da
movimentação massiva que se pode observar algum tempo depois. Os debates
até forçavam uma vaga referência às falhas do transporte público, mas
muitos dos manifestantes que lá estavam certamente sequer sabiam o valor
das tarifas de ônibus em seus municípios.
Obviamente a taxa de transporte público não era a reivindicação
principal. No entanto, sua íntima relação com as falhas da administração
pública fizeram com que esse elemento fosse usado como fermento para
fazer crescer um bolo há muito tempo esperando no forno,
a fogo médio, dentro do subconsciente das massas brasileiras: o fantasma
da corrupção, ávido para se materializar inequivocamente em uma pauta
política de força considerável.
Outros ingredientes, porém, foram necessários: o principal deles,
percebo, foi a utilização do vazio existencial causado pelo isolamento
político. Assim como alimentar-se, amar e ir ao banheiro, a atuação
política faz parte de necessidades humanas. Atuar
politicamente é elemento de construção do sentido da vida do ser humano.
E o isolamento político, que se caracteriza pelo fato de estar no meio
de muitos mas ser incapaz de estabelecer vínculos políticos (algo como o
antigo "vamos fazer juntos"), gera um vazio
atormentador. Acredito que todos já sentiram a sensação de estar
"sozinho na multidão". Isso é uma amostra da sensação de isolamento.
Esse vazio pode causar uma busca desesperada por "algo para lutar".
Contudo, desejar manifestar algo em público não significa ter
consciência política, e as manifestações de junho/julho podem muito bem
ser utilizadas como prova disso.
O que evidenciou o caráter de "preenchimento de vazio existencial"
nas passeatas foi a facilidade com que as multidões mostraram seu apego a
pautas politicamente anêmicas, lideradas pela da corrupção. Essas
pautas intercalavam-se entre discussões midiáticas
pobremente instruídas (como a da "PEC-37") e "lutas contra coisas que
ninguém é a favor", como a corrupção.
Ainda que ela exista e represente um mal, ninguém se declara a favor
da corrupção, e é por isso que se inclui tal luta em um rol de pautas
politicamente anêmicas, vagas, vazias. É como lutar "a favor da paz",
"contra o estupro" ou "a favor de escrever com
a mão". Ninguém vai contra essas coisas, embora muitas pessoas o façam.
Tudo isso mostrou, por outro lado, a dificuldade de as pessoas
assumirem uma posição política autêntica - que certamente exigiria um
nítido grau de afastamento desses lugares retóricos de conforto.
As águas das manifestações não ousaram escoar para além da tubulação
do bom-senso. Trabalharam, quase à totalidade, dentro da ideia de
revolução passiva. Queriam que mudassem os atores, mas não a novela:
talvez pior, acreditaram que mudar os atores necessariamente
daria outro enredo à novela. Esqueceram que os atores obedecem um
roteiro, roteiro esse que não foi questionado - sua existência, aliás,
sequer foi mencionada! Não foram poucos que ouvi afirmando que "o certo
era tirar todos os políticos de lá e começar tudo
de novo."
Assim, a disposição das pessoas em desligar o computador e "ir pra
rua" foi capaz de razoavelmente preencher, no indivíduo, sua sede por
atuação política (tanto que virou status social compartilhar no facebook
o famigerado "#vemprarua"), mas passou longe
de demonstrar uma sólida consciência política. O movimento foi
politicamente sem vigor, marcado pela aceitação da anemia política,
ilustrada na indiferença partidária, negação de tudo, substituição dos
personagens, fuga do posicionamento ideológico etc.
É que, embora muita coisa estivesse errada, lá no fundo não havia
luta, porque contra ninguém se lutou. Não eram manifestações políticas.
Gigante nenhum tinha acordado (não fora da propaganda da Johnnie
Walker). O papel social que se cumpriu foi análogo
a uma festa ou a um jogo de futebol: direcionamento e concentração de
energia contida pela inevitável disciplina social (se deixo de cometer
crimes porque serei punido, essa minha pretensão resistida há que
"estourar" em outro local). Uma boa partida de futebol
é o local ideal para concentrar essa explosão, ou me acabar dançando em
uma festa socialmente aceitável.
Aliás, grande parte dos "#vemprarua" compartilhado tinha um pouco de "#partiubalada" escondido em si.
Contudo, compartilho de uma coisa: queria eu que a corrupção fosse
necessariamente a pauta principal de nossas reivindicações sociais. É
uma pena que não é. Pena, também, que muitas das pautas mais necessárias
sequer foram lembradas em todo esse grande
processo social.
Luís Henrique Kohl Camargo - GEDIS
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