segunda-feira, 21 de julho de 2014

O mito da bunda na cadeira


Há quem fale que o problema do Brasil é a educação. Concordo – em partes. Explico: concordo só até o ponto em que não se afirme que a falta de educação é o único e fundamental problema do Brasil, porque não é.

Existe um mito bastante difundido (o qual denomino “o mito da bunda na cadeira”), que nada mais é do que aquele discurso que atribui ao pobre a culpa de ele ser pobre (e logicamente ao rico o mérito de ser rico). Para sustentar esse discurso, é imprescindível que essas pessoas saiam por aí falando que “ora, bastava sentar a bunda na cadeira e estudar”; logo, “é pobre porque não estudou/trabalhou”. Do outro lado, o óbvio: “é rico porque estudou/trabalhou”. O raciocínio é tão simplista que beira o absurdo, mas vamos às evidências.

“Sou rico porque trabalhei bastante”: o fato de que tem muita gente que trabalha muito e não chega à riqueza desmantela a falácia de que rico é quem trabalha. Na verdade, a minoria das pessoas que trabalham muito são ricas (inversamente falando: há muitas pessoas, na verdade a maioria, que trabalham muito, mas não se tornam ricas). Avançando um pouco na observação, é possível ainda considerar aqueles que não trabalharam nada ou quase nada na vida, mas cujas quais o patrimônio herdado lhes proporciona um bom ponto de partida para enriquecer.

“Sou rico porque estudei”: é possível, claro. De fato, é difícil passar em um concurso para juiz, promotor ou procurador do Estado sem estudar bastante. Entretanto, esse fato não convalida o discurso do “quer ser rico? Estude”, não ao menos na dimensão coletiva. Ora, se todos estudassem bastante, garis deixariam de ser necessários? Limpadores de fossa, agricultores, faxineiras, caixas de supermercado, tudo isso deixaria de ter razão de ser caso todos fossem “cultos”? Evidente que não.

Parece faltar muito para as pessoas notarem que o problema não é de competição, mas sim de desigualdade. O patamar ideal não deve ser tomado pela exceção...

...[pausa para a exceção: “Um jovem do interior do nordeste trabalhava tantas horas por dia em um canavial para sustentar seus oito irmãos menores. Esse jovem, todos os dias, religiosamente colhia os livros jogados fora pelos filhos de seus patrões e os lia, do início ao fim. Com muito esforço e sob muito preconceito esse jovem, hoje, se formou no curso de medicina, e merece nossos aplausos. Exemplo de brasileiro que vai à luta”]... fim da exceção. Volta à realidade.

Triste é concordar com uma sociedade onde as pessoas precisam estudar como animais para se tornarem seres humanos. Triste é conviver com esse discurso hipócrita da “bunda na cadeira”, que esquece que a pessoa que estudou ao mesmo tempo se alimentou com produtos plantados por outra pessoa, vestiu roupas fabricadas por outra pessoa e mora em uma casa construída por outra pessoa.

Falta a esse sujeito que fala que estudou bastante e merece um bom salário a capacidade de reconhecer a dignidade e o esforço daquele trabalhador de base, do pedreiro que construiu sua casa, da faxineira que limpa seu quarto e do gari que recolhe seu lixo. Essas pessoas, embora não tenham estudado tanto quanto o médico ou o juiz, na verdade mereceriam o mesmo salário: não raro o esforço do “pega no batente” se equipara ao da “bunda na cadeira”. Trata-se de uma ideologia torpe que faz com que “trabalho” seja limitado ao “intelecto”, justificando assim uma série de injustiças sociais.



Luís Henrique Kohl Camargo - GEDIS

* Referência: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/07/culpa-por-voce-ser-pobre-e-totalmente-sua.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário