Durante o período histórico denominado “Idade Média”, o sistema econômico que predominava era o feudalismo. Em troca de segurança, os vassalos trabalhavam nas terras dos senhores feudais. Os senhores feudais, por sua vez, recebiam suas terras do rei (quem, no sistema absolutista, possuía o domínio originário de toda propriedade). Havia uma espécie de “contrato” firmado entre o senhor feudal e o vassalo – em troca do seu trabalho, o vassalo recebia um pedaço de terras (muito menor do que a quantidade de terras possuída pelo senhor feudal) para que pudesse cultivar nas horas em que não estava trabalhando nas terras de seu suserano e o suserano cuidava da segurança das terras do vassalo.
Que espécie de “contrato”, porém, se firmava entre o vassalo (em sua condição vulnerável e sujeito a qualquer “imposição não imposta”) e o senhor feudal (o proprietário, o patrão, aquele que fornecia a “oportunidade” de trabalho ao vassalo e assim “lhe proporcionava dignidade”)? Obviamente não consistia em duas manifestações de vontade. De um lado situava-se alguém que possuía o poder (a possibilidade) de determinação. Essa pessoa dispunha sobre as regras do jogo, cabendo ao outro a simples aceitação ou a não-participação. O que deve ser levado em conta é que a “não-participação” acarretaria enormes conseqüências ao vassalo – que se tornaria um ser “indigno, preguiçoso e sem qualquer valor moral e social”. Logo, aceitar o contrato e jogar o jogo de acordo com as regras do patrão é condição para a dignidade e para a consideração social.
A questão principal: o quão longe estamos, na atual concepção das relações de trabalho, da visão medieval de dignidade, liberdade e segurança? Pode-se observar a semelhança existente entre o contrato de serviços da sociedade feudal e o contrato de trabalho atual, no sentido de que ainda existe a sobreposição ideológica de uma das partes em relação à outra.
Na concepção das leis da oferta e da procura, o proprietário surge como aquele que busca mão-de-obra e o trabalhador como aquele que vende sua mão-de-obra (seu trabalho). Essa aparência de igualdade entre empregado e empregador oculta a realidade existente nas relações de trabalho: a submissão do trabalhador em relação ao seu patrão – aquele que, no final, dita as regras do jogo, oferecendo uma “escolha” entre aceitar e não aceitar que não pode ser efetivamente “escolhida” pelo trabalhador.
Deve-se lembrar que, se o fornecedor de mão-de-obra escolher não participar do contrato do proprietário, sofrerá a exclusão, será considerado indigno, preguiçoso, como alguém que possui a oportunidade de mudar sua realidade e não quer fazer nada. Essa visão busca identificar a pobreza com a falta de vontade de estudar e trabalhar para ser como o rico. Isso ameniza a culpa do patrão, que, ao observar “de cima”, tudo lhe parece acontecer sob a lei da igualdade – de que “todos são iguais em condições e oportunidades”. Há, porém, tanta igualdade entre o empregado e o empregador na sociedade atual quanto entre o senhor feudal e o vassalo na sociedade feudal.
Precisamos observar de forma crítica o contexto de pobreza e desigualdade existente em nossa sociedade. Mudar o posicionamento, ainda que, a princípio, apenas nas idéias e nas formas de pensar, é um passo para a construção de um contexto mais justo para aqueles que não podem, por suas próprias mãos, transformar a sua realidade. A pobreza de uns é responsabilidade de todos: nega-la, justificando-a pela “falta de vontade”, é hipocrisia venenosa de quem deve prestar contas à sociedade – e não o faz.
Luís Henrique Kohl Camargo – GEDIS