terça-feira, 26 de abril de 2011

A escolha que não pode ser escolhida

            Durante o período histórico denominado “Idade Média”, o sistema econômico que predominava era o feudalismo. Em troca de segurança, os vassalos trabalhavam nas terras dos senhores feudais. Os senhores feudais, por sua vez, recebiam suas terras do rei (quem, no sistema absolutista, possuía o domínio originário de toda propriedade). Havia uma espécie de “contrato” firmado entre o senhor feudal e o vassalo – em troca do seu trabalho, o vassalo recebia um pedaço de terras (muito menor do que a quantidade de terras possuída pelo senhor feudal) para que pudesse cultivar nas horas em que não estava trabalhando nas terras de seu suserano e o suserano cuidava da segurança das terras do vassalo.
            Que espécie de “contrato”, porém, se firmava entre o vassalo (em sua condição vulnerável e sujeito a qualquer “imposição não imposta”) e o senhor feudal (o proprietário, o patrão, aquele que fornecia a “oportunidade” de trabalho ao vassalo e assim “lhe proporcionava dignidade”)? Obviamente não consistia em duas manifestações de vontade. De um lado situava-se alguém que possuía o poder (a possibilidade) de determinação. Essa pessoa dispunha sobre as regras do jogo, cabendo ao outro a simples aceitação ou a não-participação. O que deve ser levado em conta é que a “não-participação” acarretaria enormes conseqüências ao vassalo – que se tornaria um ser “indigno, preguiçoso e sem qualquer valor moral e social”. Logo, aceitar o contrato e jogar o jogo de acordo com as regras do patrão é condição para a dignidade e para a consideração social.
            A questão principal: o quão longe estamos, na atual concepção das relações de trabalho, da visão medieval de dignidade, liberdade e segurança? Pode-se observar a semelhança existente entre o contrato de serviços da sociedade feudal e o contrato de trabalho atual, no sentido de que ainda existe a sobreposição ideológica de uma das partes em relação à outra.
            Na concepção das leis da oferta e da procura, o proprietário surge como aquele que busca mão-de-obra e o trabalhador como aquele que vende sua mão-de-obra (seu trabalho). Essa aparência de igualdade entre empregado e empregador oculta a realidade existente nas relações de trabalho: a submissão do trabalhador em relação ao seu patrão – aquele que, no final, dita as regras do jogo, oferecendo uma “escolha” entre aceitar e não aceitar que não pode ser efetivamente “escolhida” pelo trabalhador.
            Deve-se lembrar que, se o fornecedor de mão-de-obra escolher não participar do contrato do proprietário, sofrerá a exclusão, será considerado indigno, preguiçoso, como alguém que possui a oportunidade de mudar sua realidade e não quer fazer nada. Essa visão busca identificar a pobreza com a falta de vontade de estudar e trabalhar para ser como o rico. Isso ameniza a culpa do patrão, que, ao observar “de cima”, tudo lhe parece acontecer sob a lei da igualdade – de que “todos são iguais em condições e oportunidades”. Há, porém, tanta igualdade entre o empregado e o empregador na sociedade atual quanto entre o senhor feudal e o vassalo na sociedade feudal.
            Precisamos observar de forma crítica o contexto de pobreza e desigualdade existente em nossa sociedade. Mudar o posicionamento, ainda que, a princípio, apenas nas idéias e nas formas de pensar, é um passo para a construção de um contexto mais justo para aqueles que não podem, por suas próprias mãos, transformar a sua realidade. A pobreza de uns é responsabilidade de todos: nega-la, justificando-a pela “falta de vontade”, é hipocrisia venenosa de quem deve prestar contas à sociedade – e não o faz.

Luís Henrique Kohl Camargo – GEDIS

4 comentários:

  1. Nossa visão atual, comandada pela crítica absolutista é bastante confusa ao analisar o fenômeno histórico medieval, sem no entanto contextualizá-lo em seu tempo, espaço e paradigma humano cultural. Para o homem moderno, tudo parece que se iniciou com o discurso da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, mas poucos se lembram dos tempos obscuros em que os Reinos Ocidentais se viam expremidos pelas ordas Orientais, quer dos Hunos, quer dos Mogóis e outros povos que desejavam e cobiçavam a Europa central. Ora, diante das atrocidades, tidas como normais pelos povos do Oriente próximo, em sua época e em sua forma de pensar, os Vassalos outra proteção não tinham, por que o Estado, tal como desejado por Platão e Aristóteles não passava de um sonho distante e utópico. Acredito que o artigo, na última parte é condigno com a realidade atual, mas fazer paralelo acrítico entre a realidade do homem medieval e as modernas relações de trabalho é paralelo desmedido que nao leva em conta a Hermenêutica histórico-crítica, posto que tal paralelo se presta a olhar a Idade Média como se houvessem paradigmas políticos e sociais capazes de dar instrumento crítico aos homens daqueles tempos... concordo com a conclusão do artigo, discordo do paralelismo utilizado. Respeitosamente...

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  2. Concordo plenamente com o comentário postado pelo professor Petry a respeito da questão histórica da qual me utilizei neste texto. Confesso que fui um pouco incauto na época em que o escrevi (já faz quase um ano da data da publicação neste blog), e nesse período acabei transformando minha própria opinião ao ler mais acerca do feudalismo. Portanto, atento aos leitores que procurem no sentido do texto não apenas um paralelismo acrítico entre o homem moderno e o medieval (o qual, confesso, a leitura do texto dá a impressão), mas observem principalmente a questão da "sobreposição ideológica" existente na divisão de classes da sociedade, fenômeno este que serve(e serviu), tanto no feudalismo medieval quanto no capitalismo moderno, para justificar situações de desigualdade sob a égide da liberdade de escolha (livre arbítrio).
    Atento aos leitores que não devemos esquecer, como bem lembra o professor Petry, do contexto histórico distinto existente entre o feudalismo e a pós-modernidade, análise que esteve ausente no meu texto.
    Para finalizar, agradeço a contribuição e a preocupação do professor ao comentar meu texto, indicando um erro hermenêutico que, confesso, existe. Assim, ao ler o seu comentário, o leitor terá uma visão mais completa acerca do problema exposto.
    Luís Kohl.

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  3. Caro Luis e leitores do Blog. Parabéns pelo conteúdo instigante e instigador apresentado pelos nobres membros do conselho, especialmente o Prof. Regis, Prof. Pianalto, Luis e Mayra. Abrir oportunidade de debate, longe e ser fato desagregdor, como querem fazer ver os acéfalos, é oportunidade de busca da verdade e do senso de justiça, que o grupo se propõe, como um dos objetivos, pesquisar. Parabéns pela iniciativa.
    De veritas nunquam satis...

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  4. Por força do reconhecimento e amizade, igualmente não poderia deixar de nominar o Prof.Samuel, exemplo de docente exemplar e de pedagogia humanitária. PARABÉNS A TODOS!

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