quarta-feira, 4 de maio de 2011

A política pública de cotas: inconstitucionalidade ou observância dos princípios constitucionais?

"O que garante que esse sujeito se destacará
academicamente mais do que aquele que,
segregado por uma sociedade desigual e
hipocritamente discriminadora, não conta com o
mesmo conforto e motivação para se dedicar em
seu aprimoramento para uma prova de seleção?"
                  Ainda há muitos mitos e contradições acerca do assunto das cotas para negros e indígenas no Brasil. Somam-se argumentos contra tal medida, em que pese a maioria desses se encontra embasada em dados ideologicamente produzidos para a manutenção do status quo da sociedade capitalista (que necessita da desigualdade e a produz). As principais celeumas levantadas giram em torno da inconstitucionalidade do tema (que supostamente viria para solapar o artigo 5º da Constituição, “institucionalizando o racismo” no Brasil) e da inadequação deste: para estes, a solução adequada seria a melhoria na educação básica e não a reserva de vagas. O principal argumento, contudo, diz respeito à questão da “meritocracia”. Vamos tratar das principais e mais controvertidas objeções, iniciando pela questão jurídico-positiva do sistema de cotas em relação ao ordenamento jurídico brasileiro.
Já foi manifestado o entendimento por alguns ministros do STF, entre outros juristas, de que a “discriminação” ocasionada pela seleção dos negros para reserva de vagas em universidades possui fins positivos e não negativos, no sentido de que não objetiva excluir determinado direito devido a motivações racistas, muito pelo contrário, visa garantir a uma parcela socialmente excluída da sociedade o direito à educação e ao desenvolvimento humano, possibilitando, consoante o artigo 3º, III, o cumprimento de um objetivo fundamental da República Brasileira, que é a redução das desigualdades sociais (uma leve pesquisa de dados comprova que os dados da pobreza no Brasil possuem relação direta com a questão racial).
O sistema de cotas também não macula o artigo 5º da Constituição, no tocante à impossibilidade de “distinções de qualquer natureza”, pois a diferenciação que se faz possui a própria finalidade de cumprir o ditame constitucional de assegurar a promoção social das classes fragilizadas, possibilitando a existência de condições para que efetivamente exista eficácia e plausibilidade do princípio da igualdade formal (“todos são iguais perante a lei”). Assim, se a regra da vedação de “distinções de qualquer natureza” possuísse natureza absoluta, não seria lícita, da mesma forma, a criação de políticas públicas de proteção à mulher, e as mesmas prerrogativas jurídicas de um engenheiro também seriam as de um padeiro, por exemplo. A Constituição possui um norte principiológico que deve ser seguido, sempre tendo em vista seus objetivos implícitos e explícitos. Ou seja, juridicamente, no Brasil, o sistema de cotas possui absoluto respaldo e viabilidade constitucional.
Além do mais, é consabido que o princípio ou direito fundamental à igualdade deve ser concebido substancialmente. Com isso , almeja-se sedimentar um tratamento vinculado à realidade, ou melhor,à posição que cada ator exerce em relação ao outro no jogo das relações socias e, porque não, democrático. Destarte, a gama conteudística do princípio da igualdade consiste no tão conhecido jargão de que é necessário tratar os iguais como iguais e, os desiguais, como tais, na medida de suas desigualdades.
A propósito, cumpre destacar a necessidade de cindir discriminação negativa de discriminação positiva. A primeira é tida como concretização de alguma forma de desvantagem ou de tratamento negativo ao sujeito em razão de características, pessoais ou sociais, entendidas como causadora de demérito ou de menos aceitação por parte do sujeito ou do grupo dominante. A segunda, por seu turno, busca justamente alavancar o sujeito que se encontra em desvantagem – por ser alvo de discriminação negativa – a um patamar que antes lhe era tolhido.
 A discriminação positiva é promessa constitucional, cujo afã reside em superar a igualdade formal - perante a lei – para promover a igualdade material – pela lei. Por corolário, constitui-se no bojo do catálogo de atuação do Estado Democrático e Social de Direito, que possui a função peculiar de transformação da realidade social.
"...desempenho acadêmico não se mede apenas
pela qualidade do ensino de base, mas
também pela motivação e estímulo recebidos
por aqueles que já cursam nível superior.
[...] O importante é garantir a todos o
acesso à universidade."
 Enquanto não existir igualdade concreta, também não haverá liberdade – ora, quem está em desvantagem, por ser desigual (no sentido negativo do termo) encontra-se, pois, em situação de dominação. De outro vértice, diante do cenário selvagem de submissão (in)consciente, a solidariedade (ou fraternidade), enquanto princípio abarcada pela Constituição da República Federativa do Brasil (art. 3° , inciso I), reside exatamente na efetivação de políticas públicas, isto é, de discriminação positiva! 
Quanto à questão sociológica das cotas, muitas são as objeções. Primeira, aquela que diz que tal política pública é inadequada haja vista que o meio correto seria a melhoria do ensino básico público no Brasil, possui o equívoco de considerar as cotas um fim em si, quando na verdade trata-se de um meio para a possibilidade de emancipação social da classe negra. Da mesma forma, é inadequado pensar em políticas públicas como em uma receita de bolo: não há passos determinados nem causa e consequência direta.
Ambas as medidas citadas são importantes, pois possuem abrangência diversa: as cotas visam amenizar, a curto prazo, a discrepância entre a população negra e branca nas universidades públicas; o aprimoramento do ensino público visa possibilitar, a longo prazo, igualdade material entre os concorrentes, indiferentemente a sua raça.
Também há os que julgam que as cotas acarretarão uma queda no nível acadêmico das universidades que adotam tal medida, pensamento que vai de encontro aos dados, que confirmam o contrário: o nível intelectual dessas universidades não contou com alterações relevantes que justifiquem tal argumento. É preciso observar, aqui, que desempenho acadêmico não se mede apenas pela qualidade do ensino de base, mas também pela motivação e estímulo recebidos por aqueles que já cursam nível superior. Assim, nota-se, com respaldo em pesquisas já efetuadas sobre o tema, que o desempenho acadêmico entre cotistas e não cotistas não possui diferenças consideráveis – é basicamente o mesmo. O importante é garantir a todos o acesso à universidade.
Para arrematar a questão, finalizamos analisando a popular “meritocracia” ferida pelo sistema de cotas. Ora, qual mérito pretendemos adotar? É natural que o jovem que possui disponibilidade física, material e moral para dispor basicamente da totalidade da sua rotina diária para estudar para um vestibular conquiste as melhores notas. Qual é o mérito que queremos observar aqui? O que garante que esse sujeito se destacará academicamente mais do que aquele que, segregado por uma sociedade desigual e hipocritamente discriminadora, não conta com o mesmo conforto e motivação para se dedicar em seu aprimoramento para uma prova de seleção? Uma prova é critério seguro para avaliar a quantidade de mérito que uma pessoa tem para se sobressair no mundo acadêmico, ou melhor, para quantificar o mérito que o sujeito possui como suficiente ou não para o acesso ao ensino superior?
Fugindo do jogo de palavras neoliberal que deprecia com argumentos frágeis o sistema de cotas para negros e alunos de escolas públicas, observamos tal instituto como adequado tanto à adequação jurídico-positiva concedida pelo nosso ordenamento jurídico quanto à questão da emancipação social das classes segregadas pelo processo de exclusão presente no capitalismo periférico. É imperioso ao jurista observar com olhos atentos a sociedade, comparando os abundantes números dos indicadores sociais que denunciam o preconceito racial ocultado por uma cultura de hipocrisia silenciosa que conta com uma disputa desleal de oportunidades que não chegam ao alcance da classe negra.
Constatado isso, movemo-nos no sentido de garantir a essa parcela marginalizada da sociedade seus direitos fundamentais negados por aqueles que se aproveitam de uma reserva de vagas informal destinada aos alunos de escola privada. Tal garantia passa pela criação de institutos jurídicos que dêem conta de transformar a sociedade. Dessa forma apreciamos a questão da política pública democrática das cotas.

"As cotas são indispensáveis e a implantação
decorre de mandamento constitucional ,
mas devem ser vistas como o início, e não
como o exaurimento da paulatina e crescente
transformação social, até chegarmos a
uma sociedade substancialmente igualitária,
e para todos!"

Para muito mais que as cotas

De pronto, uma premissa deve restar fixada: a cotas são constitucionais e imprescindíveis para diminuir as mazelas sociais abarcadas em sua moldura de abrangência. Isso, em sã consciência, é inobjetável, pois negar a existência de discriminação em relação aos negros e indígenas, por exemplo, é negar a própria realidade histórica do Brasil. Do mesmo modo, omitir a missão constitucional de concretização de tais políticas públicas significa desconhecer o objetivo magno de construir uma sociedade livre, justa e solidária.  
Não obstante isso, é inexorável enveredar para a construção de outra premissa, a qual se apresenta nas entranhas do discurso condicionante dos atores sociais. Esta, a toda evidência, reside na necessidade de as cotas não servirem de alimento à alienação.
A alienação, tal qual ora utilizada, consiste na orientação “virtual”, e não real,  da posição em que o sujeito social se encontra em relação aos demais indivíduos,grupos ou até mesmo no que tange ao Estado. Em outras palavras: a alienação é não-capacidade do indivíduo, ou de certo grupo de pessoas, reconhecer que está em situação outra – de menosprezo e/ou desvantajosa – daquela que lhe é representada.
A alienação advém da representação gerada no ser social de que reside em (outro) local concreto da sociedade, no qual, entretanto, participa apenas ”virtualmente”. Isso ocasiona a falta de consciência de que está condicionado socialmente, ou seja, de que é “fantoche” social, não obtendo êxito em visualizar-se em seu locus socialmente reservado.
E, o que é pior, não haverá resistência enquanto estiver em situação de alienação. Afinal, o grande mote do estado de alienação é governar os atores sociais, impedindo que contestem a ordem imposta. É pelo imaginário das pessoas que os discursos alienadores cumprem seu boçal desígnio.
Concernente às cotas, impõe-se o cuidado de não serem utilizadas como fator gerador de alienação, a qual pode se desencadear em nível setorial e, bem assim, de forma mais abrangente, ultrapassando os destinatários dessa ação estatal.
Isso poderá acontecer com a proliferação acrítica do discurso de que a igualdade e a promoção social  estarão efetivadas com a implantação de políticas de tal jaez. Obviamente que isso não corresponderá com a realidade, vez que existe abismo gigantesco até esse patamar, sendo a instituição desse tratamento igualitário apenas o início de sua transposição, demasiada longa, ademais. A inclusão de alguns integrantes dos grupos alvo da política de cotas no ensino superior pouco representa frente à discriminação que os assola (mas é um bom começo!).
Mas o reflexo mais pernicioso dessa fala de distorção parece ser a falsa representação de que as desigualdades apenas se adstringem aos mencionados grupos sociais. Entretanto, são inúmeros os conclomerados de pessoas que estão em situação de inferioridade, os quais podem ficar esquecidos em face da concentração do foco em relação àqueles. A propósito, veja-se o caso dos miseráveis; dos homossexuais; das mulheres; dos empregados (todos eles!); enfim de todos aqueles que não usufruem dos privilégios exclusivos de alguns, também são excluídos e estão alienados.
Ocorre que a cisão dos grupos de pessoas que se encontram em situação de inferioridade acarreta a falta de consciência coletiva acerca da opressão. É muito salutar para os dominadores que se questione apenas a questão racial, enquanto igual postura não é tomada quanto às demais formas de dominação.  Com isso, as eventuais insurgências ficam restritas em determinado setor da sociedade, fazendo que apenas parcela dos sujeitos dominados exijam melhora na situação. Enquanto isso, o que existe na verdade, é a dominação da grande maioria da sociedade, que não se dá conta, pois soçobra na alienação.
  A falta de interligação de percepção entre os vários grupos de que se encontram dominados acaba por inibir uma reação social mais abrangente, o que impede com que seja realizada transformações revolucionárias no Estado e na sociedade. Dessa feita, o máximo que ocorre são suscitações setoriais e isoladas, cujo discurso ideológico se encarrega de espraiar a sensação de que todos estão sendo incluídos na pauta de atuação estatal, gerando, com isso, nova alienação.
Enquanto as relações sociais estiverem pautadas pela cultura capitalista de individualismo exacerbado e pela falta de solidariedade, não haverá melhora na situação social. O fato de colocar alguns sujeitos dominados em situações socialmente consideradas como mais elevadas é meio ardil para criar uma pseudo-legitimidade às  ações opressivas. O intuito é cessar as poucas reivindicações e distorcer a realidade.
A estratégia é simples, embora difícil de ser constatada: cede-se parcial e pontualmente para repassar a sensação para todos os oprimidos de que haverá melhoras, quando, na realidade, o que se visa é manter íntegros os interesses da parcela dominante da sociedade.
Diante dessas breves pontuações, infere-se em suma que: as cotas são indispensáveis e a implantação decorre de mandamento constitucional , mas devem ser vistas como o início, e não como o exaurimento da paulatina e crescente transformação social, até chegarmos a uma sociedade substancialmente igualitária, e para todos!

Cleiton Luís Chiodi e Luís Henrique Kohl Camargo - GEDIS

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