Nos últimos dias temos lido e ouvido na mídia de Xanxerê o
pedido de término da duplicação da BR 282. Ocorre que é um flagrante
contra-senso duplicar uma rodovia em zona urbana e aumentar sua velocidade para
trazer maior segurança aos usuários, isso em um país onde acidentes de trânsito
matam mais do que uma guerra, constituindo-se não como um problema
logístico-viário apenas, mas, antes de tudo, econômico-cultural.
Embora haja pessoas que moram do lado norte da via e trabalham
do lado sul, a maior proporção da população que atravessa a faixa rodoviária é
residente no lado sul. Estes precisam atravessá-la para, além de trabalhar,
utilizar-se das atividades do lado norte, que concentra o centro do núcleo
urbano com seu comércio, prestações de serviço e órgãos públicos. A maior parte
da população do lado sul tem maior carência econômica, precisando deslocar-se
na condição de pedestres, ciclistas ou motociclistas.
Essa população que precisa atravessar a rodovia não pediu para
ficar mais isolada. Ao contrário, solicitaram obras estruturais que dessem
maior segurança na travessia da BR, solicitações essas contidas no Plano
Diretor (no anexo SV I – trevos, paralelas) e no documento Agenda 21 de Xanxerê
(trevos, passarelas e paralelas). A duplicação, especificamente na zona urbana,
onde o trânsito deveria ser mais lento, parece não ter propósito técnico para
oferecer qualidade de vida a quem mora do lado sul. Criou-se, antes, mais uma
barreira para a integração plena de parte significativa dessa população.
A audiência pública realizada quando da apresentação do projeto
de duplicação da BR 282 na área urbana de Xanxerê desenrolou-se como a maioria
das audiências públicas no Brasil: foi realizada apenas para legitimar o que já
estava decidido e não para consultar e ouvir a população, o que demonstra o
(des)entendimento de ‘democracia’ subjacente a este procedimento.
O trâmite é sempre o mesmo: inicialmente mais de uma dúzia de
autoridades e ou políticos discursam e, embora no regimento da audiência lido
preliminarmente conste limite de tempo para uso da palavra, as autoridades
normalmente não respeitam. Mostram o projeto, sendo que a maioria dos presentes
não consegue entender do que se trata realmente ou se há alternativas, dentre
as quais uma deve ser a não execução da obra. Após abrem para perguntas e
sugestões da população. É importante deixar claro que esta etapa é entendida, e
a prática deixa isso claro, como puro cumprimento de exigência legal, sem maior
relevância para o desenrolar do processo.
Caso alguém se manifeste contra ou comece a perguntar demais, o
tempo é cronometrado e o som do microfone cortado, critérios que deveriam ser
presentes também na ‘etapa’ anterior. Assim transcorre a maioria das audiências
públicas de nosso oligárquico país, caso ninguém capacite preliminarmente a
população participante. Se ninguém capacita a população anteriormente,
explicando o projeto, colocando alternativa, como ela vai opinar com/sem
conhecimento de causa? É bom lembrar/enfatizar que às pessoas que
posteriormente tentem questionar o apresentado o sistema oligárquico prepara o
circo para que estes indivíduos sejam ignorados e/ou execrados: são os
‘inimigos do progresso’, os ‘que não querem ir pra frente’, os ‘caranguejos’.
Há orçamentos milionários para execução de obras no Brasil, como
foi o caso da duplicação da BR 282, mas continuamos planejando como um país
subdesenvolvido, pensando em relação a mandatos políticos e não em décadas e
muito menos em séculos, mesmo sabendo que temos cidades centenárias e que
Xanxerê será uma delas. Em síntese, a única coisa planejada é o
não-planejamento, que, por ser proposital, é planejado.
Considerando o número de
mortes por grupo de 100.000 pessoas em El Salvador, onde praticamente inexiste
lei de trânsito, o índice é 42,4; na África, 28,3; no Vietnã, 27,0; no Brasil,
24,4; na Rússia, 19,9; na Coréia do Sul, 20,9 e, na Inglaterra, 5,9. Numa entrevista a Pedro Bial (maio de 1996),
um inglês, questionado se ele sabia que
pessoas morriam no Brasil devido à exploração ilegal de madeira, respondeu que
a vida no Brasil tem outro valor. A resposta do inglês é revoltante, mas
comparando os números, verifica-se que no Brasil há mais de 40 mil vítimas
fatais do trânsito por ano e continuamos a planejar/projetar da mesma maneira.
Dessa forma, a resposta do inglês foi apenas uma dura (para nós) constatação.
As pessoas que
desenvolveram o projeto de duplicação da BR 282 na área urbana de Xanxerê
precisam atravessar a rodovia? As pessoas que o propuseram precisam? Muitos
munícipes afirmam que mesmo se houvesse passarelas não iriam usar, como não
usavam a que fazia a travessia do bairro Matinho e falam que as passagens
subterrâneas são inseguras. Jane Jacod constatou em suas pesquisas que as ruas,
espaços e equipamentos que não apresentam os ‘olhos da cidade’, apresentam
grande resistência psicológica para serem utilizados, porque as pessoas não se
sentem seguras, comprovando que a população usuária deve sempre ser capacitada
e ouvida, antes da tomada de decisão .Segundo Maria Teresa Araujo Cupolillo,
mestre em engenharia de transportes, a consulta à comunidade é por vezes
negligenciada, mas é, talvez, a parte mais importante para que se possa obter a
eficácia desejada. A chave do sucesso das intervenções depende da aceitação por
parte da comunidade local. Isso só pode ser alcançado com o efetivo
envolvimento popular nas fases de planejamento, projeto e implementação da
obra.
Traffic Calming (acalmar
o trânsito) é um conceito que se espalha pelo mundo (dito desenvolvido) e a
adoção de suas técnicas implicam necessariamente em resultados positivos. Segundo
Ricardo Esteves, arquiteto e urbanista, doutor em engenharia, este conceito e
suas técnicas ainda não estão disseminados pelo Brasil, e poucas iniciativas são
observadas neste sentido. Tal fato acontece principalmente pelo desconhecimento
e pela falta de normas que direcionem a adoção das medidas de moderação. Os
riscos à segurança na circulação de todos os atores envolvidos no exercício da
mobilidade (pedestres, idosos, portadores de deficiências, obesos, crianças,
gestantes, motoristas e passageiros, etc.) devem ser incorporados na análise
para o planejamento de intervenção urbana, como uma estratégia consistente para
a sua eliminação, redução e mitigação.
Salvar vidas no Brasil ainda não serve como justificativa para
colocar em prática o planejamento participativo, com capacitação da população e
medidas mais eficientes para reduzir o comportamento violento no trânsito,
reflexo de uma sociedade culturalmente violenta. O caso da duplicação da BR 282
em Xanxerê é mais um triste exemplo do comprometimento dos gestores públicos
com grupos econômicos (locais ou não) e da condição de abandono a que estão
submetidos os principais interessados nesse tipo de projeto, os quais são
sistematicamente silenciados, engolidos por procedimentos formais que deveriam integrá-los.
Rosângela Favero, Bruno Picoli - GEDIS