quarta-feira, 22 de agosto de 2012

O operador do direito X jurista: o horizonte de ação dos bacharéis em Direito

“nessa minha já considerável caminhada tenho visto inúmeros profissionais bem sucedidos financeiramente que, só pra dar um exemplo, não conseguem nem mesmo  companhia para tomar uma cerveja, a não ser que paguem (a companhia ou a cerveja). Não será  isso também um reflexo de opções profissionais?” (discurso do Prof. Régis Trindade de Mello, quando da formatura da 7º turma de Direito da UNOESC- Xanxerê).

No império romano, período no qual o direito firmou bases que o orientam de alguma forma até hoje, havia a diferença entre o jurista e o operador do Direito, ou seja, aquele que estabelecia uma reflexão criativa acerca da ciência jurídica e o que cumpria procedimentos previamente estabelecidos de forma repetitiva e automática, sem refletir sobre sua razão de ser e sem jamais estabelecer nenhum juízo de valor sobre sua conduta.
Essa diferenciação foi esquecida ao longo do tempo, especialmente no Brasil, onde inicialmente os bacharéis em Direito foram incumbidos da organização do estado e da promoção cultural. Recentemente esta diferenciação volta a fazer sentido, por uma série de razões.
A preocupação deste texto é reabilitar a percepção dessa diferença, afinal vivemos em um tempo de diplomados em Direito “a granel”, citando diferenças baseadas nos comportamentos contemporâneos e dos atores da cena jurídica.
Para isto, nada parece melhor que uma planilha, nos moldes dos apelos técnicos da contemporaneidade, de modo a cair na tentação objetivista do tempo presente. Assim, longe de fazer diferenciações maniqueístas, são traçadas as “virtudes” de  ambos:

Jurista
Operador do Direito
Homem culto
“Homem prático”[i] evita pensar pois pode reduzir sua produtividade
Crítico
Eficiente
Amante da cultura geral
Amante da especialidade
Conseqüente
Produtivo
Preocupa-se com o sentido da sua ação
Preocupa-se com o “resultado” da sua ação
Cultiva a sensibilidade
Preocupa-se com a disciplina, para alcançar sua metas
Como amigo da sabedoria, aposta na hetero-ajuda
Como amigo da funcionalidade busca a auto-ajuda
Busca compreender o valor simbólico das coisas
Empenha-se descobrir a melhor forma de utilizar as coisas
Inventa
Reafirma
Experimenta
Reproduz as “melhores” experiências
Apela à justiça como razão última
Apela à segurança jurídica como razão última
Ama as idéias
Ama os procedimentos


A maior surpresa que um “jurista” pode causar é ser justo. Aliás, não se espera sequer que o jurista seja um jurista, espera-se que ele seja um operador do direito, afeito à mentira e à gestão da desconfiança, portador de um discurso tautológico que se aventura pelas múltiplas faces do óbvio.
Essa comparação pretende motivar uma reflexão sobre o modo de ser dos juristas, para que eles se voltem às demandas deste tempo, o qual clama pela discussão substancial acerca da justiça, clamor este confrontado tantas vezes por uma resposta formal dada por uma racionalidade pública com pendores cada vez mais administrativos e menos políticos. Nela, direitos são verificados por estatísticas, em meio às quais o sujeito vira figura abstrata.

Samuel Mânica Radaelli - GEDIS



[i] Todas as palavras entre parênteses funcionam na medida de uma racionalidade numérica, pautada pela lógica do maior  lucro com menor custo.


sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Hora de luta e vigilância: a atuação do governo Dilma com relação aos servidores federais em greve


“Os protestos dos servidores federais em greve, hoje, provocaram transtornos em várias cidades do Brasil”, foi assim que Willian Bonner abriu o Jornal Nacional do dia 09 de agosto. A primeira matéria apresentada no telejornal enfatizou os imensos congestionamentos, as filas nos aeroportos, a produção estocada em armazéns de grandes empresas exportadoras, nos portos, na fronteira. Enfim, a calamidade pública e sua culpada: a greve! Algumas entrevistas, feitas às pressas com transeuntes, ressaltaram a indignação daqueles “que nada tem a ver com os problemas do setor público federal”. Um dos entrevistados, um indignado advogado, aos berros exclamou “eles fecharam a rodovia e deixam a gente passar só por esse cantinho [aponta para o referido canto da via]! Onde é que estão os nossos direitos?!”. Isso mesmo, você leu certo, um advogado... Para finalizar, um renomado economista, secretário de Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento nos ‘felizes’ anos 90, Raul Velloso, afirma que “está na hora de acabar com a festa salarial do serviço público”, que o momento é de arrochar!
Contudo, essa postura da grande imprensa nacional não é surpresa para ninguém. As quatro principais redes de TV aberta reproduzem o mesmo discurso em seus telejornais (o que nos leva a uma questão que extrapola os objetivos deste texto – que, a propósito, nem foram expostos ainda –, qual seja a da efetiva liberdade de imprensa no Brasil).  O que de fato causa calafrios até mesmo em quem tem, ainda que lá no fundo, esperança de que o governo encabeçado por Dilma Rousseff mostre seu caráter de (centro-)esquerda, é a forma como este tem (des)tratado o funcionalismo público federal, em especial os professores e técnico-administrativos em educação das universidades e dos institutos federais de educação. Aí está o que se pretende discutir aqui.   
Adentrando a onda das modernas teorias da administração pública (que, de modo simplificado, pressupõe a adesão aos modelos clássicos da administração privada), o governo Dilma caracteriza-se, até o presente momento, pela ausência de diálogo, por decisões de gabinete e por políticas públicas de curto prazo, pensadas com calculadoras, não com cérebros. O termo mais adequado para o tipo de governo em curso talvez seja o de ‘gestão’, ou então o de ‘gerência’. É notável a prioridade do econômico em relação a outros setores essenciais para o país e, em longo prazo, inclusive para o universo das finanças. A aprovação (embora com 12 modestos vetos que pouco alteram o retrocesso causado) do novo Código Ambiental e os pacotes de corte de gastos no setor público (já no segundo mês do governo o corte anunciado foi de R$ 50 bilhões), que compromete sobremaneira a qualidade do serviço prestado à população, embora agrade a banqueiros, investidores e à grande mídia, são exemplos dessa política do agora para o agora.
Tal política vem acompanhada de uma campanha midiática que, concomitantemente apresenta o Brasil como um território livre da famigerada crise econômica mundial e ressalta que é preciso tomar as decisões tendo a crise na cabeça. Em síntese, exalta-se a seriedade, a diligência, a objetividade (e demais adjetivos sebosos) com que são tratados pela equipe econômica do governo federal (MF e MPOG) os assuntos econômicos. A suposta bonança, a ‘louvável postura’ dessa gestão, a atuação da grande mídia e as políticas assistencialistas ajudam muito a explicar os altos índices de aprovação do governo Dilma, mesmo com o país parado pela luta do funcionalismo público.
Durante o governo Lula, os servidores federais, em especial os professores e técnico-administrativos em educação, viveram uma situação contraditória. De uma lado ampliou-se sua participação no mercado de trabalho nacional, sobretudo com as políticas de expansão e criação de novos institutos e universidades federais. De outro vivenciaram a estagnação salarial, a perda de direitos previdenciários e a precarização das condições de trabalho, esta última produto da própria expansão, que tem sido pautada em critérios numéricos e quantitativos de fundo político-eleitoreiro, carente de planejamento. Evidente que a criação de novas instituições federais de ensino está relacionada a antigas reivindicações de regiões antes preteridas pelo poder público federal, em especial aquelas distantes das capitais. Exigia-se educação pública, gratuita e de qualidade que não obrigasse o deslocamento do estudante para um grande centro estadual. O governo Lula levou a educação pública e gratuita para estas regiões, espera-se que o governo Dilma contribua com a qualidade, parcialmente mantida hoje pelo esforço dos servidores.    
Que fique claro que o posicionamento aqui defendido não é contrário à expansão das universidades e institutos federais, o é apenas do modo como tem sido conduzido. A criação de novos campus de instituições federais é uma necessidade de várias regiões pauperizadas, entretanto, manter esse modelo é levar a estes lugares uma ilusão instrumentalizada por escusos interesses.
A greve que iniciou-se em 17 de maio e que hoje abrange a maioria absoluta das instituições federais de ensino, poderia ter sido evitada ou abreviada se o governo tivesse criado (e isso só cabe ao governo) e mantido (aqui sim, governo e sindicatos) um canal de diálogo constante e democrático. Entretanto, verificou-se uma insistência inflexível em postergar reuniões e mesas de negociações, tentativas de desmobilização e divisão entre os servidores em greve (oferecendo propostas para uma das categorias apenas), ameaças totalitárias como o corte de ponto (fruto da já mencionada adesão aos modelos da administração privada), e divulgação de informações falaciosas com o objetivo de jogar a opinião pública contra os servidores paralisados.
Além disso (e isso sim é de fazer tremer de indignação os defensores dos processos democráticos), ressuscita uma prática que nos remete ao nosso obscuro passado enquanto nação, qual seja a do peleguismo sindical. Das quatro entidades que representam os docentes e os técnico-administrativos em educação (Andes, Sinasefe, Fasubra e Proifes), uma claramente age como porta-voz do governo entre os servidores. A atuação do Proifes, no mínimo, agride o bom-senso na medida em que suas práticas indicam que representa o governo e não as categorias profissionais que deveria defender. A aliança entre governo, mídia e peleguismo fez com que a proposta apresentada aos docentes fosse vendida à população como um presente, uma demonstração da boa vontade do governo e da falta de vergonha (isso mesmo) dos trabalhadores que a recusaram.
Toda greve é um embate entre forças desiguais, o fortalecimento recente do movimento dos docentes e dos técnico-administrativos em educação (para não citar as várias outras categorias de servidores federais que estão em greve) denuncia que estamos diante de um momento decisivo. Diante de nós apresentam-se no mínimo dois modelos de desenvolvimento, que não são por inteiro incompatíveis, mas o são em seus aspectos fundamentais. De um lado o já conhecido modelo economicista, de políticas de curto prazo, de precarização do serviço público e de anulação do Estado (aí mais um elemento que faz com que a grande mídia – vinculada às, e parte integrante das, propostas neoliberais – aplauda a postura desse governo), o que vai ao encontro dos interesses privados. De outro, um modelo que pensa o Brasil em suas potencialidades, que prioriza políticas públicas cujos frutos serão colhidos pelas próximas gerações, que entende que o único caminho para o efetivo desenvolvimento social é o do investimento em educação e nos profissionais que a ela se dedicam, que atribui ao Estado papel fundamental na condição de representante e defensor dos interesses da coletividade nacional.
Temos diante de nós um cenário de possibilidades ou de barbárie, o momento é de luta e vigilância!


Bruno Antonio Picoli - GEDIS 

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Traffic Calming


Nos últimos dias temos lido e ouvido na mídia de Xanxerê o pedido de término da duplicação da BR 282. Ocorre que é um flagrante contra-senso duplicar uma rodovia em zona urbana e aumentar sua velocidade para trazer maior segurança aos usuários, isso em um país onde acidentes de trânsito matam mais do que uma guerra, constituindo-se não como um problema logístico-viário apenas, mas, antes de tudo, econômico-cultural.
Embora haja pessoas que moram do lado norte da via e trabalham do lado sul, a maior proporção da população que atravessa a faixa rodoviária é residente no lado sul. Estes precisam atravessá-la para, além de trabalhar, utilizar-se das atividades do lado norte, que concentra o centro do núcleo urbano com seu comércio, prestações de serviço e órgãos públicos. A maior parte da população do lado sul tem maior carência econômica, precisando deslocar-se na condição de pedestres, ciclistas ou motociclistas.
Essa população que precisa atravessar a rodovia não pediu para ficar mais isolada. Ao contrário, solicitaram obras estruturais que dessem maior segurança na travessia da BR, solicitações essas contidas no Plano Diretor (no anexo SV I – trevos, paralelas) e no documento Agenda 21 de Xanxerê (trevos, passarelas e paralelas). A duplicação, especificamente na zona urbana, onde o trânsito deveria ser mais lento, parece não ter propósito técnico para oferecer qualidade de vida a quem mora do lado sul. Criou-se, antes, mais uma barreira para a integração plena de parte significativa dessa população.
A audiência pública realizada quando da apresentação do projeto de duplicação da BR 282 na área urbana de Xanxerê desenrolou-se como a maioria das audiências públicas no Brasil: foi realizada apenas para legitimar o que já estava decidido e não para consultar e ouvir a população, o que demonstra o (des)entendimento de ‘democracia’ subjacente a este procedimento.
O trâmite é sempre o mesmo: inicialmente mais de uma dúzia de autoridades e ou políticos discursam e, embora no regimento da audiência lido preliminarmente conste limite de tempo para uso da palavra, as autoridades normalmente não respeitam. Mostram o projeto, sendo que a maioria dos presentes não consegue entender do que se trata realmente ou se há alternativas, dentre as quais uma deve ser a não execução da obra. Após abrem para perguntas e sugestões da população. É importante deixar claro que esta etapa é entendida, e a prática deixa isso claro, como puro cumprimento de exigência legal, sem maior relevância para o desenrolar do processo.
Caso alguém se manifeste contra ou comece a perguntar demais, o tempo é cronometrado e o som do microfone cortado, critérios que deveriam ser presentes também na ‘etapa’ anterior. Assim transcorre a maioria das audiências públicas de nosso oligárquico país, caso ninguém capacite preliminarmente a população participante. Se ninguém capacita a população anteriormente, explicando o projeto, colocando alternativa, como ela vai opinar com/sem conhecimento de causa? É bom lembrar/enfatizar que às pessoas que posteriormente tentem questionar o apresentado o sistema oligárquico prepara o circo para que estes indivíduos sejam ignorados e/ou execrados: são os ‘inimigos do progresso’, os ‘que não querem ir pra frente’, os ‘caranguejos’.  
Há orçamentos milionários para execução de obras no Brasil, como foi o caso da duplicação da BR 282, mas continuamos planejando como um país subdesenvolvido, pensando em relação a mandatos políticos e não em décadas e muito menos em séculos, mesmo sabendo que temos cidades centenárias e que Xanxerê será uma delas. Em síntese, a única coisa planejada é o não-planejamento, que, por ser proposital, é planejado.
 Considerando o número de mortes por grupo de 100.000 pessoas em El Salvador, onde praticamente inexiste lei de trânsito, o índice é 42,4; na África, 28,3; no Vietnã, 27,0; no Brasil, 24,4; na Rússia, 19,9; na Coréia do Sul, 20,9 e, na Inglaterra, 5,9.  Numa entrevista a Pedro Bial (maio de 1996), um inglês, questionado  se ele sabia que pessoas morriam no Brasil devido à exploração ilegal de madeira, respondeu que a vida no Brasil tem outro valor. A resposta do inglês é revoltante, mas comparando os números, verifica-se que no Brasil há mais de 40 mil vítimas fatais do trânsito por ano e continuamos a planejar/projetar da mesma maneira. Dessa forma, a resposta do inglês foi apenas uma dura (para nós) constatação.
 As pessoas que desenvolveram o projeto de duplicação da BR 282 na área urbana de Xanxerê precisam atravessar a rodovia? As pessoas que o propuseram precisam? Muitos munícipes afirmam que mesmo se houvesse passarelas não iriam usar, como não usavam a que fazia a travessia do bairro Matinho e falam que as passagens subterrâneas são inseguras. Jane Jacod constatou em suas pesquisas que as ruas, espaços e equipamentos que não apresentam os ‘olhos da cidade’, apresentam grande resistência psicológica para serem utilizados, porque as pessoas não se sentem seguras, comprovando que a população usuária deve sempre ser capacitada e ouvida, antes da tomada de decisão .Segundo Maria Teresa Araujo Cupolillo, mestre em engenharia de transportes, a consulta à comunidade é por vezes negligenciada, mas é, talvez, a parte mais importante para que se possa obter a eficácia desejada. A chave do sucesso das intervenções depende da aceitação por parte da comunidade local. Isso só pode ser alcançado com o efetivo envolvimento popular nas fases de planejamento, projeto e implementação da obra.
Traffic Calming  (acalmar o trânsito) é um conceito que se espalha pelo mundo (dito desenvolvido) e a adoção de suas técnicas implicam necessariamente em resultados positivos. Segundo Ricardo Esteves, arquiteto e urbanista, doutor em engenharia, este conceito e suas técnicas ainda não estão disseminados pelo Brasil, e poucas iniciativas são observadas neste sentido. Tal fato acontece principalmente pelo desconhecimento e pela falta de normas que direcionem a adoção das medidas de moderação. Os riscos à segurança na circulação de todos os atores envolvidos no exercício da mobilidade (pedestres, idosos, portadores de deficiências, obesos, crianças, gestantes, motoristas e passageiros, etc.) devem ser incorporados na análise para o planejamento de intervenção urbana, como uma estratégia consistente para a sua eliminação, redução e mitigação.
Salvar vidas no Brasil ainda não serve como justificativa para colocar em prática o planejamento participativo, com capacitação da população e medidas mais eficientes para reduzir o comportamento violento no trânsito, reflexo de uma sociedade culturalmente violenta. O caso da duplicação da BR 282 em Xanxerê é mais um triste exemplo do comprometimento dos gestores públicos com grupos econômicos (locais ou não) e da condição de abandono a que estão submetidos os principais interessados nesse tipo de projeto, os quais são sistematicamente silenciados, engolidos por procedimentos formais  que deveriam integrá-los. 


Rosângela Favero, Bruno Picoli - GEDIS