quinta-feira, 26 de maio de 2011

Um detalhe oculto no debate sobre o novo código ambiental

O acalorado debate sobre o novo código ambiental tem um propulsor oculto: por trás da defesa passional do “homem do campo” existe a arcaica estrutura fundiária brasileira. Prova disso é que a maioria dos argumentos gira em torno da amplitude do direito a propriedade, como é o caso da reserva legal.
Tradicionalmente no Brasil grandes interesses elitistas usam a defesa dos mais pobres para resguardar os seus. Do mesmo modo o latifúndio nacional propõe reformas à legislação ambiental alegando a defesa dos pequenos agricultores, além do desenvolvimento do país.
Em todo e qualquer debate que, direta ou indiretamente, envolva a propriedade agrária é necessário diferenciar a agricultura familiar do agronegócio, que são duas categorias antagônicas na estrutura social brasileira com interesses que não se confundem jamais. Embora boa parte das lideranças ruralistas insista em dizer que o agronegócio inclua os pequenos agricultores, é algo ilusório crer neste argumento, pois a agricultura familiar de forma alguma consegue desenvolver de forma duradoura a produção em pequena escala dos produtos agrícolas do agronegócio exportador. Nessa linha, o que se percebe é a pequena propriedade sendo engolida pelas grandes, justamente sob o argumento de que “quem tem pouca terra não consegue se manter”.
É necessário debater a estrutura fundiária, que é extremamente arcaica e ambientalmente insustentável, facilitando a produção de alimentos envenenados, alterando o equilíbrio ambiental através da monocultura, e, principalmente, tirando pequenos agricultores do campo.
Lideranças ruralistas apontam a legislação ambiental como um mecanismo que expulsa o pequeno agricultor do campo. Contudo, para defender a permanência dele no campo, não basta uma nova lei ambiental, é preciso muito mais que isso, principalmente uma ampla e profunda reforma agrária. No entanto, essa questão não apareceu em nenhum momento no acalorado debate legislativo recente.

Samuel Mânica Radaelli – GEDIS

terça-feira, 10 de maio de 2011

Alterações no Código de Processo Penal – Lei 12.403, de 04 de maio de 2.011

*Eduardo Pianalto de Azevedo

A nova legislação, inobstante com previsão de uma vacatio legis de sessenta (60) dias, como de regra ocorre em toda e qualquer alteração legislativa, trouxe uma série de dúvidas e incertezas à sistemática anterior, em especial no tocante a ampliação das situações de cabimento da prisão preventiva e a criação das denominadas medidas cautelares.
Ainda que diante de muitas dúvidas e até mesmo contradições, realizou-se uma análise, ainda que superficial, da nova legislação, abordando-a por tópicos, de forma a melhor compreender-se algumas de suas alterações e novidades trazidas.

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Prisão Preventiva

Com relação a prisão preventiva, foram mantidas as condições anteriores de cabimento da medida cautelar, com o acréscimo de quatro novas situações:

- Descumprimento das medidas cautelares, como medida de exceção. (art. 282 parág. 4º.)
Importante observar que a decretação da prisão preventiva na hipótese acima referida não é efeito automático da inobservância ou descumprimento da(s) medida(s) cautelar(es), mas medida de exceção cuja aplicação somente poderá ocorrer no curso de investigação policial e/ou instrução criminal.
Não bastasse isso, a medida sempre estará subordinada a verificação de sua necessidade para aplicação da lei penal ou para evitar a prática de infrações penais, bem como da verificação de sua adequação à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.

- Crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos. (art.313, I)
Em que pese a má redação da nova legislação, é possível compreender-se que a prisão preventiva somente será possível nos crimes dolosos cuja pena máxima cominada seja superior a 4 (quatro) anos. Em interpretação com o artigo 322, do mesmo texto legal, que faculta a autoridade policial a afiançabilidade nos crimes com pena máxima igual ou inferior a 4 (quatro) anos, são pertinentes, pelo menos, duas ilações. Uma, pela impossibilidade de prisão preventiva em crimes cuja pena máxima cominada seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos. Outra, como conseqüência, seria de que a prisão preventiva somente seria possível nos crimes cuja pena máxima cominada fosse superior a quatro anos.

- Condenação por outro crime doloso com sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do artigo 64, do CP. (art. 313, II)
Pela ressalva expressa do dispositivo, forçoso concluir que a prisão preventiva somente seria cabível ao reincidente. E, se insistirmos numa interpretação sistemática, não bastaria a simples reincidência, mas que aquela sentença anterior tivesse imposto uma pena superior a 4 (quatro) anos. Nunca se esqueça que, em qualquer situação, deverão estar presentes os demais pressupostos fáticos exigidos à decretação da medida. Não basta, portanto, a simples reincidência para justificar a medida.

- Dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando não fornecer elementos suficientes para esclarecer sua identidade. (art. 313 parágrafo único)
Inicialmente, mister destacar-se que a medida prevista para tais situações era a Prisão Temporária (lei 7.960/89), que, agora, sofre um esvaziamento, porquanto a possibilidade de prisão preventiva poderá conceder, pelo menos em tese, um prazo maior que aqueles previstos para prisão temporária, que eram de dez (10) dias, cinco prorrogáveis por mais cinco; ou de sessenta (60) dias, trinta prorrogáveis por mais trinta, nas hipóteses de crime hediondos ou assemelhados(lei 8072/90). Tendo o princípio da especialidade por norte, s.m.j., entendo que a lei 7.960/89, deve continuar em vigor e regular as hipóteses de segregação nela expressas e nos prazos nela constantes.
Ainda que se admita a possibilidade de preventiva nas mesmas hipóteses, em razão da isonomia e proporcionalidade, não se concederá prazos de prisão preventiva superiores aos máximos previstos na lei 7.960/89, tendo por justificativa a dúvida sobre a identidade civil ou não fornecimento de elementos ao esclarecimento da identidade. Até mesmo para evitar os abusos, como o pedido de prisão preventiva, nas citadas hipóteses, apenas com objetivo de “ganhar” tempo para investigar.

Das medidas cautelares

As novas medidas cautelares, a rigor, não constituem nenhuma novidade conceitual e prática, porquanto várias delas já existiam como condição imposta à concessão da liberdade provisória e também como medida cautelares contempladas na denominada “lei Maria da Penha”.
A novidade consiste no fato de que, agora, não estão mais vinculadas a liberdade provisória, mas passaram a constituir-se em verdadeiras medidas cautelares à investigação ou instrução criminal, prescindindo de anterior segregação da liberdade para sua decretação. Se antes, tínhamos a liberdade provisória, ironicamente, no momento, temos algo próximo da “prisão latente”.
Todavia, também é possível entender-se que as medidas cautelares somente poderão ser decretadas como condição à liberdade provisória, a teor do que dispõe o artigo 321, do CPP.
Preferia que fosse assim, mas o texto não é claro e a semelhança (poderíamos também chamar de empréstimo) às medidas cautelares da Lei Maria da Penha, levam a crer que é correta a assertiva inicial, de que a(s) medida(s) possa(m) ser imposta(s) desvinculada(s) de anterior segregação à liberdade, como condição para concessão de liberdade provisória. Aguardemos as manifestações de nossos doutrinadores e tribunais. 
Importante destacar que ainda que sua decretação  possa ocorrer inaudita altera pars, de regra, observa-se que a medida (ou medidas) deverá ser precedida da ciência e manifestação do acusado ou réu. Desde que estando, portanto, obedecido o binômio ampla defesa e publicidade, que é o que se depreende do parágrafo 3º., do artigo 282.
Desta forma, entendo que, ressalvadas as hipóteses de urgência ou perigo de ineficácia, a(s) medida(s), somente poderão ser decretadas após a ciência e manifestação do réu ou acusado, pessoalmente ou por seu(s) procurador(es), sob pena de nulidade absoluta.
Merece reparo, sem dúvida, a mencionada “hipótese de urgência”, que, como qualquer medida cautelar, deverá sempre estar vinculada a uma necessidade fática (grifei) caracterizadora do periculum in mora, conforme previsto no inciso I, do artigo 282 caput.
A demonstração fática de sua necessidade para aplicação da lei penal ou para evitar a prática de infrações penais, constituem pressupostos fáticos indispensáveis – conditio sine qua – à decretação de qualquer medida cautelar e não poderia ser diferente com essas novas medidas cautelares.
Apenas para ilustrar, são medidas cautelares aplicáveis aos acusados e indiciados, a teor do disposto nos incisos I a IX, do artigo 319, do CPP:
- Comparecimento periódico em juízo, no prazo e condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades;
- proibição de acesso ou freqüência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;
- proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;
- proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução;
- recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalhos fixos;
- suspensão do exercício de função pública ou atividade de natureza econômica ou financeira quando houver receio de sua utilização para a prática de infrações penais;
- internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração;
- fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial;
- monitoração eletrônica.   
Entendo que o rol é exaustivo, não comportando a aplicação de qualquer outra medida que não esteja elencada naquelas previstas nos incisos do artigo já mencionado.
Nunca é demais repisar que, por se tratarem de penalidades, devem obedecer aos estreitos limites do princípio da legalidade.
Por outro lado, entendo que a possibilidade de aplicação de medidas cautelares dessa magnitude e no amplo contexto da investigação e instrução criminal, com certeza mitigará o elenco de situações e possibilidades para concessão da prisão preventiva, que somente deverá ser concedida na impossibilidade ou ineficácia da(s) medida(s) cautelar(es), que passa a ser medida de exceção.
Necessário enfatizar que a prisão preventiva, no contexto atual, não é medida alternativa às medidas cautelares, mas um recurso extremo e, como tal, de aplicação restrita e excepcional, somente possível quando esgotadas as possibilidades ou ineficácia das medidas cautelares. Não é outro o entendimento trazido do parágrafo 6º., do artigo 282.

Afiançabilidade pela autoridade policial
  
Pela nova legislação, sem dúvida, foi ampliado o rol de crimes afiançáveis pela autoridade policial, porquanto, anteriormente, isso somente era possível aqueles que tivessem cominada pela de prisão simples e detenção, a teor do que dispunha o revogado artigo 332, CPP:

Art. 322. A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração punida com detenção ou prisão simples (grifei)”. 

Pela nova redação, ampliou-se o elenco de crimes afiançáveis pela autoridade policial, eis que o poder discricionário da autoridade policial atinge a todas as infrações cuja pena máxima cominada seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos.
Art. 322. A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos.

Note-se que o legislador utilizou-se da expressão infrações, que abrange tanto os crimes como as contravenções penais.
Logo, deixaram de ser inafiançáveis, inclusive, as contravenções penais dos artigos 59 e 60, que não bastasse isso, tiveram tal anterior previsão legal revogada, a teor do que dispunha o inciso II, do artigo 323, CPP.
Desta forma, além dos crimes punidos com detenção e prisão simples, que antes já eram objeto de fiança pela autoridade policial, passaram a ser também suscetíveis de fiança os crimes punidos com reclusão, desde que a pena máxima cominada seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos.
Apenas para ilustrar, recordemos que os crimes de furto simples (art. 155 caput), apropriação indébita (art. 168 caput) e receptação (art. 180 caput) eram insuscetíveis de fiança pela autoridade policial, tendo em vista terem a si cominada pena de reclusão.
Atualmente, mesmo tais crimes e mesmo outros, que tenham pena máxima cominada igual ou inferior a 4 (quatro) anos, não importando que seja de detenção, prisão simples ou reclusão, são afiançáveis pela autoridade policial.


Eduardo Pianalto de Azevedo é Mestre em Direito (UFSC)
e professor de direito penal da UNOESC Xanxerê.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Mas afinal quem morreu? Osama ou a dignidade do Ocidente?

Segunda-feira, 02 de maio de 2011: o mundo assiste com atenção, comoção, alívio e, alguns, ceticismo à notícia que George W. Bush não pode dar. Estava morto o homem mais procurado da década, cuja empresa baixou sobre este início de milênio (para os países cristãos) um nevoeiro de medo, guerras e, principalmente, supressão camuflada de alguns valores basilares do Estado de Direito. De lá para cá (nem mesmo uma semana) uma quantidade inumerável de jornalistas têm se dedicado a noticiar este episódio que, não há dúvidas, dá evidências de que este milênio (não no sentido cronológico) está ainda começando...
Quero aqui discorrer não sobre a operação que culminou na morte de Bin Laden e de várias outras pessoas que estavam na casa-esconderijo – deixo isso para os bons “jornalistas” que exaustivamente dedicam-se a pensar sobre o assunto. O objetivo é apontar algumas questões que muito me perturbam (creio que não só a mim) sobre os modos como as mídias de massa têm tratado o evento e como têm simplesmente reproduzido os discursos unilaterais construídos sobre o mesmo.
Antes de prosseguir, um adendo: não há aqui a intenção em defender Bin Ladem, a Al Qaeda, o fundamentalismo (de todos os tipos – incluso o cristão), as relações de gênero no mundo islâmico, etc... Trata-se de uma análise, pautada na comparação entre o que defende (defendia?) o Ocidente e o que pratica, além de como o que se é praticado é forçadamente (sobretudo contra o intelecto) associado ao que se é defendido. Para ser mais simples: como um crime (ou uma série destes) é tornado um não-crime.
O fato: um grupo militar norte-americano invade a casa em que estava Bin Laden que, como consequência do ataque, morre. O corpo é supostamente jogado no mar. Não há imagens – ao menos não públicas. A Al Qaeda sofreu um duro golpe. O EUA fizeram a sua justiça.
Em outubro de 2009 o jornalista Daniel Scheschkewitz afirmou que a condecoração de Barak Obama com o Nobel da Paz era uma aposta no futuro. Conforme afirma “a atribuição do Nobel da Paz a Barack Obama é menos um balanço do passado e mais uma aposta no futuro. O agraciado deveria vê-lo como um estímulo e um voto de confiança. O mundo precisa mais do que nunca de um representante da esperança.”. Estava feito então: enfim um presidente americano guiado por princípios éticos e pela defesa intransitiva da paz que, com um discurso popular (“Sim, nós podemos!”), mudaria a forma de agir da maior potência mundial.
Entretanto, o Nobel da Paz tem se esforçado para comprovar a previsão de José Arbex Jr. feita antes mesmo das eleições presidenciais de 2008, para quem o ainda candidato não passava de um “falso brilhante”. Embora mais carismático que Bush, Obama é adepto do continuísmo – o que só demorou para aparecer (e consequentemente manteve por um tempo maior a “ilusão Obama”) efetivamente devido à crise econômica de 2008. Não seria exagero dizer que Bush não estaria de todo equivocado se apoiasse o democrata para a reeleição...
Obama manteve o campo de concentração (ainda não de extermínio) de Guantánamo, injetou mais soldados nas frentes de combate no Afeganistão e no Iraque (embora o discurso de que está retirando as tropas seja mantido pela grande mídia mundial), mantém posturas conservadoras e unilaterais em conferências econômicas e climáticas... E agora inovou, instituindo como política de Estado o assassinato político (se bem que não é, necessariamente, uma inovação...)!
Entretanto, Obama é um chefe de Estado, tem seus interesses e age de acordo com estes. O que causa calafrios, indignação e vergonha (de fazer parte da mesma espécie) é que a grande maioria dos jornalistas tem se ocupado em reproduzir discursos prontos, tratados, filtrados e ideologicamente mal-intencionados. Utilizando-se do “salvo-conduto” de que apenas informam cometem um crime contra a inteligência humana: acreditar (com imensa ingenuidade ou malícia – cabe ao leitor decidir o que é pior) que os documentos oficiais de Estados são neutros, desinteressados, que apresentam e representam a verdade.
Cidadãos dos EUA regozijam o assassinato
de Osama Bin Laden.
Não houve, salvo algumas exceções que levam a sério o trabalho jornalístico (Elaine Tavares, Altamiro Borges, entre outros), a preocupação sequer em questionar a necessidade da morte de Bin Laden e dos demais na forma como se deu. Até mesmo os piores carrascos nazistas tiveram o Tribunal de Nuremberg. Por mais parcial e até ridículo que tenha sido (no sentido das razões e do procedimento), até Saddan Hussein teve a oportunidade de falar (relativa) e o direito de ter um julgamento...
Assassinatos políticos não são novidades, sobretudo quando se trata da política externa norte-americana. O problema é que o assassinato de Bin Laden abre um precedente perigoso (que por muito pouco não foi antecipado pelo de Khadafi, cuja casa em que estava foi bombardeada na semana passada): legitimação da tortura como forma de obter informações, comemorações pela “justa morte” do inimigo, cancelamento de aulas em universidades, ruas tomadas pela euforia coletiva (de uma massa manobrada) e declarações que agridem o bom senso, crimes contra a humanidade, e a lista prosseguiria...
O assassinato político e a subsequente desova de Bin Laden no mar tem sido divulgada como uma vitória da esperança, da democracia, de um estilo de vida que preza pela plena liberdade (pobre Voltaire, deve ser uma alma atormentada...). O sítio de notícias da Rede Globo de televisão, reproduzindo texto da Reuters, divulgou, em 05 de maio, sem dar sequer uma breve analisada, apresentar um posicionamento (se bem que tratando-se da Globo seria melhor não...) a seguinte declaração de Obama sobre o desfecho dado ao corpo: "Tomamos mais cuidado com isso do que, obviamente, Bin Laden tomou quando matou 3 mil pessoas (nos atentados de 11 de setembro de 2001). Ele não teve muito respeito sobre como (as vítimas) eram tratadas e profanadas".
É compreensível que quem perdeu pessoas nos atendados de 11 de setembro ou em outros promovidos por grupos fundamentalistas pensem isso. É compreensível até que o presidente dos EUA, que quer se reeleger, diga e/ou pense dessa maneira, mas é inadmissível que um formador de opinião – que é o jornalista –, que se diz ocidental, defensor da paz e da democracia, admita tal pensamento como compatível com os conceitos que afirma defender.
Em complementação à supracitada passagem, há o esforço em legitimar, por meio de uma fala de Obama, o assassinato como necessário, dado ao criado contexto maniqueísta de enfrentamento do bem contra o mal: "Mas isso, novamente, é algo que nos torna diferentes.”. Está correto o presidente, pelo menos nos tornamos mais hipócritas.
É, este milênio vai ser longo...


   Bruno Antonio Picoli - professor de História da UNOESC Xanxerê.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

A política pública de cotas: inconstitucionalidade ou observância dos princípios constitucionais?

"O que garante que esse sujeito se destacará
academicamente mais do que aquele que,
segregado por uma sociedade desigual e
hipocritamente discriminadora, não conta com o
mesmo conforto e motivação para se dedicar em
seu aprimoramento para uma prova de seleção?"
                  Ainda há muitos mitos e contradições acerca do assunto das cotas para negros e indígenas no Brasil. Somam-se argumentos contra tal medida, em que pese a maioria desses se encontra embasada em dados ideologicamente produzidos para a manutenção do status quo da sociedade capitalista (que necessita da desigualdade e a produz). As principais celeumas levantadas giram em torno da inconstitucionalidade do tema (que supostamente viria para solapar o artigo 5º da Constituição, “institucionalizando o racismo” no Brasil) e da inadequação deste: para estes, a solução adequada seria a melhoria na educação básica e não a reserva de vagas. O principal argumento, contudo, diz respeito à questão da “meritocracia”. Vamos tratar das principais e mais controvertidas objeções, iniciando pela questão jurídico-positiva do sistema de cotas em relação ao ordenamento jurídico brasileiro.
Já foi manifestado o entendimento por alguns ministros do STF, entre outros juristas, de que a “discriminação” ocasionada pela seleção dos negros para reserva de vagas em universidades possui fins positivos e não negativos, no sentido de que não objetiva excluir determinado direito devido a motivações racistas, muito pelo contrário, visa garantir a uma parcela socialmente excluída da sociedade o direito à educação e ao desenvolvimento humano, possibilitando, consoante o artigo 3º, III, o cumprimento de um objetivo fundamental da República Brasileira, que é a redução das desigualdades sociais (uma leve pesquisa de dados comprova que os dados da pobreza no Brasil possuem relação direta com a questão racial).
O sistema de cotas também não macula o artigo 5º da Constituição, no tocante à impossibilidade de “distinções de qualquer natureza”, pois a diferenciação que se faz possui a própria finalidade de cumprir o ditame constitucional de assegurar a promoção social das classes fragilizadas, possibilitando a existência de condições para que efetivamente exista eficácia e plausibilidade do princípio da igualdade formal (“todos são iguais perante a lei”). Assim, se a regra da vedação de “distinções de qualquer natureza” possuísse natureza absoluta, não seria lícita, da mesma forma, a criação de políticas públicas de proteção à mulher, e as mesmas prerrogativas jurídicas de um engenheiro também seriam as de um padeiro, por exemplo. A Constituição possui um norte principiológico que deve ser seguido, sempre tendo em vista seus objetivos implícitos e explícitos. Ou seja, juridicamente, no Brasil, o sistema de cotas possui absoluto respaldo e viabilidade constitucional.
Além do mais, é consabido que o princípio ou direito fundamental à igualdade deve ser concebido substancialmente. Com isso , almeja-se sedimentar um tratamento vinculado à realidade, ou melhor,à posição que cada ator exerce em relação ao outro no jogo das relações socias e, porque não, democrático. Destarte, a gama conteudística do princípio da igualdade consiste no tão conhecido jargão de que é necessário tratar os iguais como iguais e, os desiguais, como tais, na medida de suas desigualdades.
A propósito, cumpre destacar a necessidade de cindir discriminação negativa de discriminação positiva. A primeira é tida como concretização de alguma forma de desvantagem ou de tratamento negativo ao sujeito em razão de características, pessoais ou sociais, entendidas como causadora de demérito ou de menos aceitação por parte do sujeito ou do grupo dominante. A segunda, por seu turno, busca justamente alavancar o sujeito que se encontra em desvantagem – por ser alvo de discriminação negativa – a um patamar que antes lhe era tolhido.
 A discriminação positiva é promessa constitucional, cujo afã reside em superar a igualdade formal - perante a lei – para promover a igualdade material – pela lei. Por corolário, constitui-se no bojo do catálogo de atuação do Estado Democrático e Social de Direito, que possui a função peculiar de transformação da realidade social.
"...desempenho acadêmico não se mede apenas
pela qualidade do ensino de base, mas
também pela motivação e estímulo recebidos
por aqueles que já cursam nível superior.
[...] O importante é garantir a todos o
acesso à universidade."
 Enquanto não existir igualdade concreta, também não haverá liberdade – ora, quem está em desvantagem, por ser desigual (no sentido negativo do termo) encontra-se, pois, em situação de dominação. De outro vértice, diante do cenário selvagem de submissão (in)consciente, a solidariedade (ou fraternidade), enquanto princípio abarcada pela Constituição da República Federativa do Brasil (art. 3° , inciso I), reside exatamente na efetivação de políticas públicas, isto é, de discriminação positiva! 
Quanto à questão sociológica das cotas, muitas são as objeções. Primeira, aquela que diz que tal política pública é inadequada haja vista que o meio correto seria a melhoria do ensino básico público no Brasil, possui o equívoco de considerar as cotas um fim em si, quando na verdade trata-se de um meio para a possibilidade de emancipação social da classe negra. Da mesma forma, é inadequado pensar em políticas públicas como em uma receita de bolo: não há passos determinados nem causa e consequência direta.
Ambas as medidas citadas são importantes, pois possuem abrangência diversa: as cotas visam amenizar, a curto prazo, a discrepância entre a população negra e branca nas universidades públicas; o aprimoramento do ensino público visa possibilitar, a longo prazo, igualdade material entre os concorrentes, indiferentemente a sua raça.
Também há os que julgam que as cotas acarretarão uma queda no nível acadêmico das universidades que adotam tal medida, pensamento que vai de encontro aos dados, que confirmam o contrário: o nível intelectual dessas universidades não contou com alterações relevantes que justifiquem tal argumento. É preciso observar, aqui, que desempenho acadêmico não se mede apenas pela qualidade do ensino de base, mas também pela motivação e estímulo recebidos por aqueles que já cursam nível superior. Assim, nota-se, com respaldo em pesquisas já efetuadas sobre o tema, que o desempenho acadêmico entre cotistas e não cotistas não possui diferenças consideráveis – é basicamente o mesmo. O importante é garantir a todos o acesso à universidade.
Para arrematar a questão, finalizamos analisando a popular “meritocracia” ferida pelo sistema de cotas. Ora, qual mérito pretendemos adotar? É natural que o jovem que possui disponibilidade física, material e moral para dispor basicamente da totalidade da sua rotina diária para estudar para um vestibular conquiste as melhores notas. Qual é o mérito que queremos observar aqui? O que garante que esse sujeito se destacará academicamente mais do que aquele que, segregado por uma sociedade desigual e hipocritamente discriminadora, não conta com o mesmo conforto e motivação para se dedicar em seu aprimoramento para uma prova de seleção? Uma prova é critério seguro para avaliar a quantidade de mérito que uma pessoa tem para se sobressair no mundo acadêmico, ou melhor, para quantificar o mérito que o sujeito possui como suficiente ou não para o acesso ao ensino superior?
Fugindo do jogo de palavras neoliberal que deprecia com argumentos frágeis o sistema de cotas para negros e alunos de escolas públicas, observamos tal instituto como adequado tanto à adequação jurídico-positiva concedida pelo nosso ordenamento jurídico quanto à questão da emancipação social das classes segregadas pelo processo de exclusão presente no capitalismo periférico. É imperioso ao jurista observar com olhos atentos a sociedade, comparando os abundantes números dos indicadores sociais que denunciam o preconceito racial ocultado por uma cultura de hipocrisia silenciosa que conta com uma disputa desleal de oportunidades que não chegam ao alcance da classe negra.
Constatado isso, movemo-nos no sentido de garantir a essa parcela marginalizada da sociedade seus direitos fundamentais negados por aqueles que se aproveitam de uma reserva de vagas informal destinada aos alunos de escola privada. Tal garantia passa pela criação de institutos jurídicos que dêem conta de transformar a sociedade. Dessa forma apreciamos a questão da política pública democrática das cotas.

"As cotas são indispensáveis e a implantação
decorre de mandamento constitucional ,
mas devem ser vistas como o início, e não
como o exaurimento da paulatina e crescente
transformação social, até chegarmos a
uma sociedade substancialmente igualitária,
e para todos!"

Para muito mais que as cotas

De pronto, uma premissa deve restar fixada: a cotas são constitucionais e imprescindíveis para diminuir as mazelas sociais abarcadas em sua moldura de abrangência. Isso, em sã consciência, é inobjetável, pois negar a existência de discriminação em relação aos negros e indígenas, por exemplo, é negar a própria realidade histórica do Brasil. Do mesmo modo, omitir a missão constitucional de concretização de tais políticas públicas significa desconhecer o objetivo magno de construir uma sociedade livre, justa e solidária.  
Não obstante isso, é inexorável enveredar para a construção de outra premissa, a qual se apresenta nas entranhas do discurso condicionante dos atores sociais. Esta, a toda evidência, reside na necessidade de as cotas não servirem de alimento à alienação.
A alienação, tal qual ora utilizada, consiste na orientação “virtual”, e não real,  da posição em que o sujeito social se encontra em relação aos demais indivíduos,grupos ou até mesmo no que tange ao Estado. Em outras palavras: a alienação é não-capacidade do indivíduo, ou de certo grupo de pessoas, reconhecer que está em situação outra – de menosprezo e/ou desvantajosa – daquela que lhe é representada.
A alienação advém da representação gerada no ser social de que reside em (outro) local concreto da sociedade, no qual, entretanto, participa apenas ”virtualmente”. Isso ocasiona a falta de consciência de que está condicionado socialmente, ou seja, de que é “fantoche” social, não obtendo êxito em visualizar-se em seu locus socialmente reservado.
E, o que é pior, não haverá resistência enquanto estiver em situação de alienação. Afinal, o grande mote do estado de alienação é governar os atores sociais, impedindo que contestem a ordem imposta. É pelo imaginário das pessoas que os discursos alienadores cumprem seu boçal desígnio.
Concernente às cotas, impõe-se o cuidado de não serem utilizadas como fator gerador de alienação, a qual pode se desencadear em nível setorial e, bem assim, de forma mais abrangente, ultrapassando os destinatários dessa ação estatal.
Isso poderá acontecer com a proliferação acrítica do discurso de que a igualdade e a promoção social  estarão efetivadas com a implantação de políticas de tal jaez. Obviamente que isso não corresponderá com a realidade, vez que existe abismo gigantesco até esse patamar, sendo a instituição desse tratamento igualitário apenas o início de sua transposição, demasiada longa, ademais. A inclusão de alguns integrantes dos grupos alvo da política de cotas no ensino superior pouco representa frente à discriminação que os assola (mas é um bom começo!).
Mas o reflexo mais pernicioso dessa fala de distorção parece ser a falsa representação de que as desigualdades apenas se adstringem aos mencionados grupos sociais. Entretanto, são inúmeros os conclomerados de pessoas que estão em situação de inferioridade, os quais podem ficar esquecidos em face da concentração do foco em relação àqueles. A propósito, veja-se o caso dos miseráveis; dos homossexuais; das mulheres; dos empregados (todos eles!); enfim de todos aqueles que não usufruem dos privilégios exclusivos de alguns, também são excluídos e estão alienados.
Ocorre que a cisão dos grupos de pessoas que se encontram em situação de inferioridade acarreta a falta de consciência coletiva acerca da opressão. É muito salutar para os dominadores que se questione apenas a questão racial, enquanto igual postura não é tomada quanto às demais formas de dominação.  Com isso, as eventuais insurgências ficam restritas em determinado setor da sociedade, fazendo que apenas parcela dos sujeitos dominados exijam melhora na situação. Enquanto isso, o que existe na verdade, é a dominação da grande maioria da sociedade, que não se dá conta, pois soçobra na alienação.
  A falta de interligação de percepção entre os vários grupos de que se encontram dominados acaba por inibir uma reação social mais abrangente, o que impede com que seja realizada transformações revolucionárias no Estado e na sociedade. Dessa feita, o máximo que ocorre são suscitações setoriais e isoladas, cujo discurso ideológico se encarrega de espraiar a sensação de que todos estão sendo incluídos na pauta de atuação estatal, gerando, com isso, nova alienação.
Enquanto as relações sociais estiverem pautadas pela cultura capitalista de individualismo exacerbado e pela falta de solidariedade, não haverá melhora na situação social. O fato de colocar alguns sujeitos dominados em situações socialmente consideradas como mais elevadas é meio ardil para criar uma pseudo-legitimidade às  ações opressivas. O intuito é cessar as poucas reivindicações e distorcer a realidade.
A estratégia é simples, embora difícil de ser constatada: cede-se parcial e pontualmente para repassar a sensação para todos os oprimidos de que haverá melhoras, quando, na realidade, o que se visa é manter íntegros os interesses da parcela dominante da sociedade.
Diante dessas breves pontuações, infere-se em suma que: as cotas são indispensáveis e a implantação decorre de mandamento constitucional , mas devem ser vistas como o início, e não como o exaurimento da paulatina e crescente transformação social, até chegarmos a uma sociedade substancialmente igualitária, e para todos!

Cleiton Luís Chiodi e Luís Henrique Kohl Camargo - GEDIS