Deparo-me,
então, com as páginas amarelas da “Veja” de uma edição recente (nº 2.230 – ano
44 – nº 33, 17 de agosto de 2011) e encontro o psiquiatra inglês Anthony
Daniels comentando sobre o sistema prisional, o comportamento dos criminosos e
o vício em drogas, entre outros temas. Sua tese, em linhas gerais, é: os
criminosos encontram justificativa para seus crimes na retórica sociológica (a
qual ele denomina “intelectual”) de que, como a sociedade produz o criminoso,
logo ele não possui plena responsabilidade pelos seus crimes (que é social). O
mesmo raciocínio é estendido ao comportamento dos presos e dos usuários de
drogas. Segundo Daniels, tal teoria “produz cidadãos que não assumem suas
responsabilidades” e “desumaniza” os criminosos, pois não os considera capazes
de escolher (o que implica necessariamente ser responsabilizado por suas
escolhas). Em um determinado momento da entrevista, Daniels (obviamente
provocado por uma pergunta “neutra” do repórter da Veja) traça um paralelo
entre Anders Breivik (autor do atentado na Noruega que deixou aproximadamente
70 mortos) e Cesare Battisti. Traçaremos algumas considerações tomando tal
teoria como princípio.
De
antemão, cumpre lembrar a lição principal que Hans Kelsen traz em sua obra “O
que é Justiça?”: afirma o jurista austríaco que a ideia de justiça é fundada em
uma pressuposição do indivíduo, a qual antecede mesmo a lógica e a
racionalidade e encontra suas fontes na história, na sociedade, além de uma
infinidade de outros fatores que o influenciam na construção da ideia de
“justo” e “injusto”, “bem” e “mal”. Assim, podemos partir da observação, em
nossa sociedade, de duas pressuposições iniciais para a ideia de justiça e
responsabilidade: uma é fundada na “liberdade” e na “igualdade formal”, outra é
fundada na “necessidade” e na “igualdade material”.
A
primeira afirmará que o indivíduo possui liberdade (desde que não coagido pelo
Estado) para escolher e atuar na sociedade. Ainda que dependente de uma série
de condições, a esfera da liberdade, segundo essa linha de pensamento,
proporciona ao indivíduo uma possibilidade infinita de vencer os “obstáculos
sociais” e “triunfar”, ou seja, passar a ser “alguém na vida”: para isto, basta
ele “querer” e se esforçar. Tal teoria desembocará regularmente na ideia de
“meritocracia” e de que “todos são iguais perante a lei” – logo devem responder
da mesma forma aos mesmos estímulos jurídicos.
A
segunda teoria, por sua vez, compreenderá o indivíduo como um ser condicionado
ao contexto social em que está inserido. Porém, ainda que provido de uma
considerável bagagem de mediações sociais, o sujeito possui liberdade para
escolher e agir, mas tal liberdade é seriamente limitada às suas condições
econômicas, sanitárias e psicológicas. Logo, a pessoa não precisa apenas de
esforço e dedicação para “vencer” sua condição precária, mas sim contar com a
ajuda de mecanismos sociais que o alavanquem aos “altos escalões da sociedade”
e preencham o lugar de exclusão que antes ocupava com outra pessoa. Os últimos
desdobramentos desse raciocínio serão a busca pela igualdade e a necessidade
como valor maior que a liberdade, além da busca pela construção de uma
“igualdade material”, ou seja, de que os desiguais devem ser tratados de forma
desigual.
Essas
ideologias compreendem de formas diferentes a questão da “responsabilidade” (a
questão de quem responde pelas “falhas” encontradas na sociedade).
Para os
adeptos da primeira aqui exposta, a responsabilidade é integralmente
transferida ao indivíduo, que, se está em situação precária, se não possui
acesso a um salário digno, se trabalha em funções básicas para as quais
normalmente não se exige estudo, se mora em uma habitação desprovida das
condições sanitárias básicas, é porque não se esforçou, não provou que é capaz,
é desasseado, relaxado, “não está nem aí” e por essas razões encontra-se nessa
situação. Os problemas mais gritantes (e os que ameaçam a economia, o conforto
e a acumulação) são transferidos ao Estado (segurança pública, construção de
conjuntos habitacionais – que muitas vezes são a materialização urbana da
exclusão –, câmeras de vigilância para proteger o patrimônio “central”
ameaçado...). Ora, o indivíduo é livre, não é? Então que cada um “lute pelo que
quer”. A competição é frequentemente invocada como elemento da
evolução/progresso (porém pouco se questiona o sentido de tal evolução –
evolução para quem? Para o quê e, principalmente, em benefício de quem?).
Àqueles que perdem – os fracos e incompetentes – resta a piedade dos
vencedores, que se organizam para promover seus eventos beneficentes e amenizar
a dor de quem sofre.
A
segunda teoria mencionada, por sua vez, compreende a questão da
responsabilidade em sua dimensão material, o que quer dizer que os vários
elementos sociais se encontram integrados e o fenômeno/acontecimento social é
apenas a “ponta do iceberg”. É claro que o sujeito possui escolhas, possui
liberdade, porém essa liberdade é sempre condicionada às mediações em que ele
vive (a sua história). A construção da sua personalidade passa por uma
infinidade de fatores sobre os quais ele próprio não tem controle, logo não
pode ser integralmente responsabilizado pela sua situação, muito menos pelas
suas escolhas. Isso não quer dizer que ele não deva ser punido, pois essa é
outra dimensão, que é definida pelas instituições construídas pela sociedade. O
que não se pode é relegar unicamente ao indivíduo os efeitos de suas escolhas,
mesmo porque esses efeitos abrangem toda a sociedade em que ele vive. Nesse
contexto, pensar em penas mais severas, Estado-polícia máximo, vigilância
(políticas públicas de dimensão negativa) pouco resolve. A persecução de
políticas públicas positivas (saneamento básico, distribuição de renda, reforma
agrária, saúde e educação de qualidade, interferência do Estado nas relações de
opressão inter-particulares) é compreendida como mais eficaz para a amenização
das moléstias sociais.
A
maioria das pessoas considera atraente a primeira das ideias aqui expostas.
Realmente, dentro da lógica capitalista, não há como pensar diferente. Tudo se
justifica e podemos deitar tranquilos afinal a pobreza lá fora não é nossa
culpa e, quando nos sentidos acometidos por uma crise de consciência,
investimos nosso dinheiro na caridade (um ramo da economia muito explorado
pelos miseráveis trabalhadores – os mendigos – que utilizam como matéria-prima
a hipocrisia do ser humano). Porém, que passos deixamos para trás quando
acreditamos cegamente na responsabilidade absoluta fundada na “liberdade
absoluta” do indivíduo?
Ora, é
apenas coincidência que a maioria gritante das vagas de universidades públicas
é ocupada por alunos provenientes de escolas particulares? Que a maioria da
população pobre é negra e que a maior parte dos pobres é, por sua vez, filho de
pobres? Será coincidência o fato de que os trabalhos geralmente exercidos pelos
excluídos são normalmente os mais mal remunerados? Se eles não o fizerem, quem
o fará? Que juiz deixará de exercer seu trabalho para recolher o lixo espalhado
pela rua?
Um
psiquiatra pode afirmar com mais propriedade do que um jurista a forma como um
detento compreende os fatos e discursos que chegam a ele. A proposta de
Daniels, porém, traz a consequência de que desejamos apenas mudar os atores,
porém nunca a peça teatral. Enquanto criamos criminosos capazes ou incapazes de
auto-justificar seus crimes, continuamos criando mais criminosos
independentemente de sua capacidade maior ou menor de banalizar seus atos. O
grau de culpa sentido pelo ser humano que transgrediu as convenções sociais não
muda o fato de que ele chegou um dia a transgredi-la – e de que, pelo fato de
que outros também a transgredirão, precisamos encontrar soluções para diminuir
tais inconvenientes. Isso é o que importa para o estudo do direito.
Uma
rápida pesquisa nos Índices de Desenvolvimento Humano de diversos países mostra
que a desigualdade é um fator criminológico. Agora, se o criminoso fica
tranquilo ou não após cometer o crime, isso não é competência do jurista – é do
psicólogo. A frequência com que surgem novos sujeitos reveses à ordem jurídica
não muda em proporção à mudança ou à existência de uma retórica de cunho mais
social em contraposição a outra de cunho liberal, mais sim a partir do momento
em que assumimos a responsabilidade pelo “outro” – e finalmente o encontramos,
reconhecemo-nos nele – eis a experiência da alteridade. Sem essa experiência
fundante, continuaremos lidando com o resultado (gestão do caos), sem nunca
atingir a origem do problema.
Para
finalizar, vale citar a opinião de Anthony Daniels acerca da função da prisão:
“A prisão não é uma instituição terapêutica. Sua função principal é prevenir
crimes que um condenado poderia cometer se estivesse solto”. Realmente, as
coisas na Europa não funcionam como as do Brasil.
Luís Henrique Kohl Camargo –
GEDIS
O modo de ser bitolado ao qual estamos acostumados nos evidencia a questão envolvente às anuências das conjecturas liberdade e igualdade formal. Levando em conta ainda a desconsideração das pessoas que em sua maioria têm em relação às preferências em tratar os desiguais de forma desigual. Isso salienta o quão precária é a situação como são debatidas as questões de necessidade e da igualdade real.
ResponderExcluirVemos hodiernamente como ainda é levado a cabo o pensamento de “solipsismo barato” (sempre com o pensamento de liberdade e igualdade formal). Em que a maioria das pessoas não possuidoras de algum subsídio de conhecimento sociológico ou empatia acabam ficando atrás de suas vidas medíocres almejando futilidades - das quais muitas patrimoniais. Acarretando no esquecimento daqueles que precisam de alguma ferramenta para se tornarem menos desiguais e não a possuem mas mesmo assim estes tangenciam e fazem valer a vida desses “solipsistas”.
Àqueles excluídos que tentam buscar o mesmo e que não conseguiram, seja por não terem tido a mesma base ou por que não conseguiram seguir o mesmo rito, são considerados marginais ou rebeldes e seu lugar será sempre a exclusão social ou vivendo no meio social trabalhando de empregado para os que “conseguiram valer pelo seu êxito” – “afinal há uma igualdade formal todos são iguais e detém as mesmas não é mesmo?” Não pensam que por vezes as dificuldades não estão apenas em relação à busca patrimonial, e sim por questões culturais e por isso precisam de alguma ferramenta para buscar a tão sonhada igualdade real.
Quem sabe a busca por tantos valores patrimoniais em prol de uma liberdade acabou acarretando em uma vida tão medíocre que àqueles que não conseguiram chegar ao “nível dessa classe superior”, - pois não chegaram aonde os outros conseguiram chegar. Acabam marginalizados e só consegue encontrar seus semelhantes em algum lugar de reunião de excluídos. Mas afinal Quanto de Social há nessa dimensão particular? Difícil pergunta, ainda mais com a realidade social que nos é transpassada, mas isso já é assunto para outro debate ...
Thiago Gottardi.