quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Quanto de social há na dimensão particular? – breve análise acerca de duas formas de se compreender a responsabilidade e a justiça social



Deparo-me, então, com as páginas amarelas da “Veja” de uma edição recente (nº 2.230 – ano 44 – nº 33, 17 de agosto de 2011) e encontro o psiquiatra inglês Anthony Daniels comentando sobre o sistema prisional, o comportamento dos criminosos e o vício em drogas, entre outros temas. Sua tese, em linhas gerais, é: os criminosos encontram justificativa para seus crimes na retórica sociológica (a qual ele denomina “intelectual”) de que, como a sociedade produz o criminoso, logo ele não possui plena responsabilidade pelos seus crimes (que é social). O mesmo raciocínio é estendido ao comportamento dos presos e dos usuários de drogas. Segundo Daniels, tal teoria “produz cidadãos que não assumem suas responsabilidades” e “desumaniza” os criminosos, pois não os considera capazes de escolher (o que implica necessariamente ser responsabilizado por suas escolhas). Em um determinado momento da entrevista, Daniels (obviamente provocado por uma pergunta “neutra” do repórter da Veja) traça um paralelo entre Anders Breivik (autor do atentado na Noruega que deixou aproximadamente 70 mortos) e Cesare Battisti. Traçaremos algumas considerações tomando tal teoria como princípio.
De antemão, cumpre lembrar a lição principal que Hans Kelsen traz em sua obra “O que é Justiça?”: afirma o jurista austríaco que a ideia de justiça é fundada em uma pressuposição do indivíduo, a qual antecede mesmo a lógica e a racionalidade e encontra suas fontes na história, na sociedade, além de uma infinidade de outros fatores que o influenciam na construção da ideia de “justo” e “injusto”, “bem” e “mal”. Assim, podemos partir da observação, em nossa sociedade, de duas pressuposições iniciais para a ideia de justiça e responsabilidade: uma é fundada na “liberdade” e na “igualdade formal”, outra é fundada na “necessidade” e na “igualdade material”.
A primeira afirmará que o indivíduo possui liberdade (desde que não coagido pelo Estado) para escolher e atuar na sociedade. Ainda que dependente de uma série de condições, a esfera da liberdade, segundo essa linha de pensamento, proporciona ao indivíduo uma possibilidade infinita de vencer os “obstáculos sociais” e “triunfar”, ou seja, passar a ser “alguém na vida”: para isto, basta ele “querer” e se esforçar. Tal teoria desembocará regularmente na ideia de “meritocracia” e de que “todos são iguais perante a lei” – logo devem responder da mesma forma aos mesmos estímulos jurídicos.
A segunda teoria, por sua vez, compreenderá o indivíduo como um ser condicionado ao contexto social em que está inserido. Porém, ainda que provido de uma considerável bagagem de mediações sociais, o sujeito possui liberdade para escolher e agir, mas tal liberdade é seriamente limitada às suas condições econômicas, sanitárias e psicológicas. Logo, a pessoa não precisa apenas de esforço e dedicação para “vencer” sua condição precária, mas sim contar com a ajuda de mecanismos sociais que o alavanquem aos “altos escalões da sociedade” e preencham o lugar de exclusão que antes ocupava com outra pessoa. Os últimos desdobramentos desse raciocínio serão a busca pela igualdade e a necessidade como valor maior que a liberdade, além da busca pela construção de uma “igualdade material”, ou seja, de que os desiguais devem ser tratados de forma desigual.
Essas ideologias compreendem de formas diferentes a questão da “responsabilidade” (a questão de quem responde pelas “falhas” encontradas na sociedade).
Para os adeptos da primeira aqui exposta, a responsabilidade é integralmente transferida ao indivíduo, que, se está em situação precária, se não possui acesso a um salário digno, se trabalha em funções básicas para as quais normalmente não se exige estudo, se mora em uma habitação desprovida das condições sanitárias básicas, é porque não se esforçou, não provou que é capaz, é desasseado, relaxado, “não está nem aí” e por essas razões encontra-se nessa situação. Os problemas mais gritantes (e os que ameaçam a economia, o conforto e a acumulação) são transferidos ao Estado (segurança pública, construção de conjuntos habitacionais – que muitas vezes são a materialização urbana da exclusão –, câmeras de vigilância para proteger o patrimônio “central” ameaçado...). Ora, o indivíduo é livre, não é? Então que cada um “lute pelo que quer”. A competição é frequentemente invocada como elemento da evolução/progresso (porém pouco se questiona o sentido de tal evolução – evolução para quem? Para o quê e, principalmente, em benefício de quem?). Àqueles que perdem – os fracos e incompetentes – resta a piedade dos vencedores, que se organizam para promover seus eventos beneficentes e amenizar a dor de quem sofre.
A segunda teoria mencionada, por sua vez, compreende a questão da responsabilidade em sua dimensão material, o que quer dizer que os vários elementos sociais se encontram integrados e o fenômeno/acontecimento social é apenas a “ponta do iceberg”. É claro que o sujeito possui escolhas, possui liberdade, porém essa liberdade é sempre condicionada às mediações em que ele vive (a sua história). A construção da sua personalidade passa por uma infinidade de fatores sobre os quais ele próprio não tem controle, logo não pode ser integralmente responsabilizado pela sua situação, muito menos pelas suas escolhas. Isso não quer dizer que ele não deva ser punido, pois essa é outra dimensão, que é definida pelas instituições construídas pela sociedade. O que não se pode é relegar unicamente ao indivíduo os efeitos de suas escolhas, mesmo porque esses efeitos abrangem toda a sociedade em que ele vive. Nesse contexto, pensar em penas mais severas, Estado-polícia máximo, vigilância (políticas públicas de dimensão negativa) pouco resolve. A persecução de políticas públicas positivas (saneamento básico, distribuição de renda, reforma agrária, saúde e educação de qualidade, interferência do Estado nas relações de opressão inter-particulares) é compreendida como mais eficaz para a amenização das moléstias sociais.
A maioria das pessoas considera atraente a primeira das ideias aqui expostas. Realmente, dentro da lógica capitalista, não há como pensar diferente. Tudo se justifica e podemos deitar tranquilos afinal a pobreza lá fora não é nossa culpa e, quando nos sentidos acometidos por uma crise de consciência, investimos nosso dinheiro na caridade (um ramo da economia muito explorado pelos miseráveis trabalhadores – os mendigos – que utilizam como matéria-prima a hipocrisia do ser humano). Porém, que passos deixamos para trás quando acreditamos cegamente na responsabilidade absoluta fundada na “liberdade absoluta” do indivíduo?
Ora, é apenas coincidência que a maioria gritante das vagas de universidades públicas é ocupada por alunos provenientes de escolas particulares? Que a maioria da população pobre é negra e que a maior parte dos pobres é, por sua vez, filho de pobres? Será coincidência o fato de que os trabalhos geralmente exercidos pelos excluídos são normalmente os mais mal remunerados? Se eles não o fizerem, quem o fará? Que juiz deixará de exercer seu trabalho para recolher o lixo espalhado pela rua?
Um psiquiatra pode afirmar com mais propriedade do que um jurista a forma como um detento compreende os fatos e discursos que chegam a ele. A proposta de Daniels, porém, traz a consequência de que desejamos apenas mudar os atores, porém nunca a peça teatral. Enquanto criamos criminosos capazes ou incapazes de auto-justificar seus crimes, continuamos criando mais criminosos independentemente de sua capacidade maior ou menor de banalizar seus atos. O grau de culpa sentido pelo ser humano que transgrediu as convenções sociais não muda o fato de que ele chegou um dia a transgredi-la – e de que, pelo fato de que outros também a transgredirão, precisamos encontrar soluções para diminuir tais inconvenientes. Isso é o que importa para o estudo do direito.
Uma rápida pesquisa nos Índices de Desenvolvimento Humano de diversos países mostra que a desigualdade é um fator criminológico. Agora, se o criminoso fica tranquilo ou não após cometer o crime, isso não é competência do jurista – é do psicólogo. A frequência com que surgem novos sujeitos reveses à ordem jurídica não muda em proporção à mudança ou à existência de uma retórica de cunho mais social em contraposição a outra de cunho liberal, mais sim a partir do momento em que assumimos a responsabilidade pelo “outro” – e finalmente o encontramos, reconhecemo-nos nele – eis a experiência da alteridade. Sem essa experiência fundante, continuaremos lidando com o resultado (gestão do caos), sem nunca atingir a origem do problema.
Para finalizar, vale citar a opinião de Anthony Daniels acerca da função da prisão: “A prisão não é uma instituição terapêutica. Sua função principal é prevenir crimes que um condenado poderia cometer se estivesse solto”. Realmente, as coisas na Europa não funcionam como as do Brasil.

Luís Henrique Kohl Camargo – GEDIS

Um comentário:

  1. O modo de ser bitolado ao qual estamos acostumados nos evidencia a questão envolvente às anuências das conjecturas liberdade e igualdade formal. Levando em conta ainda a desconsideração das pessoas que em sua maioria têm em relação às preferências em tratar os desiguais de forma desigual. Isso salienta o quão precária é a situação como são debatidas as questões de necessidade e da igualdade real.
    Vemos hodiernamente como ainda é levado a cabo o pensamento de “solipsismo barato” (sempre com o pensamento de liberdade e igualdade formal). Em que a maioria das pessoas não possuidoras de algum subsídio de conhecimento sociológico ou empatia acabam ficando atrás de suas vidas medíocres almejando futilidades - das quais muitas patrimoniais. Acarretando no esquecimento daqueles que precisam de alguma ferramenta para se tornarem menos desiguais e não a possuem mas mesmo assim estes tangenciam e fazem valer a vida desses “solipsistas”.
    Àqueles excluídos que tentam buscar o mesmo e que não conseguiram, seja por não terem tido a mesma base ou por que não conseguiram seguir o mesmo rito, são considerados marginais ou rebeldes e seu lugar será sempre a exclusão social ou vivendo no meio social trabalhando de empregado para os que “conseguiram valer pelo seu êxito” – “afinal há uma igualdade formal todos são iguais e detém as mesmas não é mesmo?” Não pensam que por vezes as dificuldades não estão apenas em relação à busca patrimonial, e sim por questões culturais e por isso precisam de alguma ferramenta para buscar a tão sonhada igualdade real.
    Quem sabe a busca por tantos valores patrimoniais em prol de uma liberdade acabou acarretando em uma vida tão medíocre que àqueles que não conseguiram chegar ao “nível dessa classe superior”, - pois não chegaram aonde os outros conseguiram chegar. Acabam marginalizados e só consegue encontrar seus semelhantes em algum lugar de reunião de excluídos. Mas afinal Quanto de Social há nessa dimensão particular? Difícil pergunta, ainda mais com a realidade social que nos é transpassada, mas isso já é assunto para outro debate ...

    Thiago Gottardi.

    ResponderExcluir