UM BRINDE AO
INDESPERTO
Ontem à noite, ele não pôde dormir. A
insônia, que se tornara uma amiga íntima nos últimos tempos, lhe fizera
companhia até mais tarde. Abriram uma garrafa de vinho e engataram uma conversa
sobre a escola, seu ambiente de trabalho. Contou-lhe a rotina. Falta de
materiais para trabalhar. Falta de estrutura física decente para abrigar os
estudantes. Salário sem reajustes. Reformas ‘temerosas’. Desanimou. Ficou
receoso em transformar a noite num poço de lamentações e desistiu da ideia.
Engataram uma conversa sobre teoria da
conspiração e sobre a morte de um delegado que investigava a morte de um
ministro. Duas mortes envoltas em mistério. Ficou receoso em transformar a
noite num poço de lamentações e desistiu da ideia.
Engataram uma conversa sobre as próximas
eleições e os possíveis candidatos de uma lista que sequer existe. Quis
argumentar sobre a importância de lutar por eleições diretas no exato momento,
mas lembrou-se do último protesto que acontecera na região e do minguado número
de participantes. Ficou receoso em transformar a noite num poço de lamentações
e desistiu da ideia.
Engataram uma conversa sobre um sujeito
queridinho de uma galera conservadora, sedenta por heróis de estimação. Sujeito
esse, ícone de xenofobia, misoginia e homofobia. A empatia por quem sofre
diariamente o entristeceu. Ficou receoso em transformar a noite num poço de
lamentações, mas, desta vez, não desistiu da ideia. Decidiu encarar suas
angústias de frente.
Engataram uma conversa sobre a diversidade
religiosa e o punhado de gente que não se identifica com religião alguma. Ele
próprio já não se identificava com nenhum tipo de esperança de sociedade
utópica para a humanidade. Lembrou-se dos sujeitos que definem padrões de
normalidade às vidas alheias. Refletiu sobre o ‘conceito’ de normalidade. O
‘conceito’ de personalidade também lhe pareceu um asqueroso conjunto de
rótulos, colecionados ao longo das vidas que buscam um sentido à existência.
Utilizado para justificar arrogância e destilar ódio, camuflado em piadas e
opiniões.
Engataram uma conversa sobre o absurdo da
existência. Lembrou-se de suas tarefas diárias. Precisava ter dormido. Não
obstante reconheça a falta de sentido dessas, continuava executando-as com
resignação. A essa altura, a insônia já tomara seu último gole de vinho.
Observara o rosto angustiado daquele indivíduo solitário, altruísta e
conscientemente destituído de qualquer verdade. Amanhecia. Ela despedira-se
carinhosamente, presumindo um retorno na noite seguinte.
Beatriz Soares, professora
ELA
Por quanto à
espera
de noites em
cumplicidade.
Destratos e
querelas
entre eu e a
verdade.
Sobre uma
ontologia utópica
de entremeios e
sempre à volta
de intangível
serenidade.
A taça de vinho
medeia
reflexos e
reflexão
sobre movimentos
agudos
e tanta corrupção.
Mesmo que nosso
intento
não fosse
inteiriço lamento
mudávamos de
direção.
Ela
Insistente e
atrevida
me instigava a
pensar
sobre abusos e
modos
de nosso ser e
estar.
Dava-me chances
intensas
a fio de horas
imensas
e prestes a
transformar.
Ela
Abraçava-me em
ternura
em aparente ninar.
Contanto que não
findasse
aquele turbilhão
de idear.
E ao contrário que
pensava
Ao invés de noite
clara
Clarificou meu
olhar.
Ela
De tanto
e tudo sobre tanto
me fez fugir de um
tratar.
Tentei, tentei
tanto
Mas como não
lamentar?
Deste estado de
coisas.
Destas coisas em
estado
de nos abocanhar.
Aquela noite foi
Ela
que me transformou
desnudo.
do branco ao tinto
rubi
letargia em pensar
astuto.
E apesar da
despedida
que se pôs em
desmedida
prometeu voltar
contudo.
Fabio Soares,
Professor
Publicados em 09
de junho na Coluna Pimenteiro do Diário Data X
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