Futebol à tarde na TV, almoço na casa de amigos, missa matinal, encontro de fãs de automobilismo, “pelada” com a turma, sorvete com os filhos (seguido, claro, da pracinha), passeio com a namorada, chimarrão na casa da vizinha... Eventos díspares, em pouco – ou mesmo nada – relacionados, com a fina exceção de que não acontecem todo dia... Não é na segunda, tampouco na quinta, menos na terça... São práticas domingueiras. Então, seria importante começar este texto indagando se pode o domingo ser considerado apenas um simples dia de descanso para cumprimento de uma exigência legal e, portanto, substituível por qualquer outro dia da semana que tenha o mesmo fim? Tentadora a resposta, mas temos mais a considerar.
Enquanto dia santo tem o domingo uma longa e conturbada história, marcada por controvérsias, perseguições político-religiosas, levantes e sincretismo. Utilizamos oficialmente o domingo, em nosso calendário, como o dia da abertura da semana, o primeiro dia, atribuindo ao sábado a condição de sétimo e último dia... Entretanto, histórica e culturalmente (sobretudo com o mundo da fábrica) temos na segunda-feira o primeiro dia da semana que é fechada pelo sábado e pelo domingo, daí a expressão “fim de semana” e de sua abrangência para além do sábado.
Em culturas que antecederam ao cristianismo que se tornou oficial no Império Romano no fim do século IV, sobretudo o judaísmo e o dito cristianismo primitivo, era consagrado às atividades religiosas o sabá (do pôr do sol da sexta-feira ao pôr do sol do sábado, visto que a noção de início de um novo dia às zero horas é coisa bem recente), o sétimo dia em ordem cronológica. Essas populações, sobretudo as que viviam sob o jugo dos imperados romanos, sofriam constantes ataques e perseguições por negarem-se a ter no chefe de Estado de Roma a personificação de uma divindade, repudiando também, visto a indissolubilidade dos poderes religioso e político no Império, a autoridade do “César”. Muitos líderes foram perseguidos e mortos (alguns, quando cristãos, eram crucificados).
Em 313, o Imperador Constantino, frente ao crescimento incontrolável do cristianismo, publica o Édito de Milão, permitindo o seu culto e, consequentemente, a guarda do sabá. Entretanto, como meio de manter a imagem real associada à autoridade e ao divino, no reinado deste monarca é instituído um dia de louvação ao Imperador: nasce aí o domingo. O próprio termo designador do dia identifica este vínculo com a figura do senhor de Roma, pois domingo deriva de “dies domini”, termo latino que significa “dia do Senhor”. Enquanto no sábado cumpria-se um dever religioso, o domingo era dedicado a atividades cívicas, prática essa que foi reforçada com a oficialização do cristianismo por Teodósio, no ano 391.
Ainda no século IV, mas antes deste também, as fronteiras do Império Romano são tomadas por inúmeras levas de povos da Europa Oriental, que não migravam apenas com suas famílias e tropas, mas com sua cultura, religiosidade, línguas e tradições. Os “povos bárbaros”, de modo geral, possuíam crenças naturalistas, que tinham nos fenômenos naturais manifestações das divindades ou as próprias divindades. Cultuavam o sol, a lua, as árvores, os ventos, as ervas, a primavera, etc. Ocorre aí um interessante sincretismo que alterou e reconfigurou práticas sociais caracterizadoras de uma nova cultura: a cristã medieval. Como exemplo dessa “mistura inventiva” não deliberada podemos citar a árvore de natal, clara tentativa de aproximação do cristianismo com os cultos pagãos dos ditos bárbaros. Daí também o termo utilizado nas línguas anglo-germânicas (que preserva-se atualmente no inglês e no alemão) para designar o domingo: dia do sol (no inglês “Sunday” e no alemão “Sonntag”). O intento era fazer com que estes também guardassem o domingo.
O Império Romano sucumbiu às invasões bárbaras, mas não sua instituição religiosa. A Igreja Católica da Idade Média preservou o domingo, entretanto não mais como dia cívico, mas sim sacro. O “Dia do Senhor” deixa de ser dedicado ao Imperador (então inexistente ou reduzido à condição de Pontífice) e passa aos “domínios de Deus”, tornando-se o “sétimo dia” oficial e simbólico. A Idade Média, sobretudo a Baixa, é marcada por acirrada perseguição aos guardiões do sabá. Guardar o sábado deixa de ser uma prática cristã (ou de bom cristão) e passa a ser associado ao judaísmo, à bruxaria, ao paganismo e ao Diabo. Uma interessante herança simbólica desta associação do sabá com o mal é o ainda comum mito do nascimento de verrugas na ponta dos dedos de crianças que apontam estrelas... O sabá iniciava com a terceira estrela a aparecer no céu da sexta-feira, por isso, apontar era uma forma de não contar duas vezes o mesmo astro. Temendo severas punições as mães inculcavam nos filhos o “mito da verruga”. O domingo passa à Era Moderna como o dia sagrado e que, portanto, não devia ser dedicado ao trabalho.
No amanhecer da modernidade cruzam o Atlântico os “bons cristãos” portugueses. Ao chegar ao Brasil retornam à Europa levando madeiras, produtos, animais e até índios. Em contrapartida, trazem a língua, a religião e o domingo. A importância deste último, vinculado claro ao segundo ítem, era tamanha que mesmo os escravos dos engenhos de açúcar no atual Nordeste tinham sua dura rotina de trabalho atenuada neste dia. Evidentemente ainda eram escravos, mas domingo é domingo.
Com o processo de colonização assessorado por veículos cristãos (primeiro franciscanos, depois jesuítas), a guarda do domingo tornou-se uma prática comum em quase todo o território nacional. Era neste dia que ocorriam os encontros sociais mais expressivos, nas sedes de vilas, capelas, clubes e, mesmo, famílias. O domingo passa a ter uma dimensão simbólica, na medida em que é o propiciador da constituição e reforço de vínculos definidores de diversos “ethos” regionais. No oeste catarinense isso se dá, talvez, de forma ainda mais expressiva. A organização das comunidades em “linhas” isolou relativamente famílias que viviam a distâncias contadas a quilômetros umas das outras. Relativamente porque havia o domingo, a única oportunidade de encontro, de troca de experiências, de lazer, de conversa fiada, etc., que rompia as distâncias impostas pelo trabalho na casa e, sobretudo, na terra.
Com o recente processo de urbanização, o domingo manteve sua função simbólica de agregador de coletividades na medida em que é o refúgio frente à rotina da vida urbana-industrial-comercial (o que se verificou/verifica também no continente europeu). É o dia do encontro em família, do futebol assistido ou praticado, do passeio com os filhos, da conversa das comadres, dos vizinhos, enfim do ócio coletivo que prepara corporal e espiritualmente para a semana que se inicia com a segunda-feira.
Tendo em vista que é no domingo que algumas práticas sociais se desenvolvem, podemos compreendê-lo como um “território simbólico”, no sentido em que cria e reforça identificações, alter e auto-reconhecimentos. O domingo não é um dia, ou um “dia de folga”, como qualquer outro, é o “locus” temporal de interações socioculturais definidoras do “ethos”. O valor do domingo está no uso que coletivamente faz-se dele, uso este que não se pode fazer na segunda-feira, tampouco na quinta...
Bruno Antonio Picoli - GEDIS
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