dá licença de
contá
que aqui onde agora está
que aqui onde agora está
esse edifício
arto
era uma casa véia
um palacete
assobradado
foi aqui seu
moço
que eu, Mato
Grosso e o Joca
construímo
nossa maloca”
(Adoniran
Barbosa, Saudosa Maloca, 1951)
Na Primeira
República o Brasil iniciou um processo (ainda em curso) de transição de uma
sociedade rural para outra urbana, principalmente em cidades portuárias (como o
Rio de Janeiro) e/ou para onde confluíam ferrovias (caso de São Paulo). O
modelo latifundiário plantacionista hegemônico desde o Império enveredava para
uma crise sem volta, embora os coronéis mantivessem, graças à Política dos
Governadores e ao café, o controle da vida política em suas mãos. Muitos desses
coronéis e herdeiros aburguesaram-se e investiram em comércios, manufaturas,
pequenas fábricas e indústrias, estabelecendo-se nessas pequenas cidades,
erguendo casarões e palacetes, alguns dos quais ainda de pé.
Muitos
camponeses também se deslocam para as cidades em busca de alternativas de
sobrevivência, haja visto o monopólio da terra por parte dos latifundiários (o
que constitui um problema crônico na espinha dorsal da sociedade brasileira) e
a violência a que estavam submetidos quando nas mãos dos coronéis (herança de
nosso modo escravocrata de pensar). As cidades tornaram-se para estes, assim
como para muitos outros décadas depois, um refúgio possível, onde se poderia
efetivamente ser livre (em todos os sentidos atribuídos ao termo).
Não é preciso
ser um grande conhecedor da história nacional para saber que o sonho da vida
urbana era, na verdade, uma atualização da velha utopia da terra da Cocanha, da
terra sem mal e/ou demais variáveis. Como tais foram frustradas (o que,
ironicamente, contribui para a manutenção do mito). As áreas próximas às
indústrias e aos portos eram por demasiado caras paras as condições desses
pauperizados cidadãos. Estabeleceram-se, então, em periferias distantes, como
muito bem retratou Lima Barreto em seu “Clara dos Anjos”, ou ergueram cortiços
e malocas nos vazios deixados pela burguesia-aristocracia nas áreas próximas
aos centros. O que efetivamente alimentava a aversão ao pobre (à presença deste
nas áreas nobres), por parte dos grupos já estabelecidos, como muito bem pinta
Aluízio de Azevedo na voz de Miranda:
“– Um
cortiço! exclamava ele, possesso. Um cortiço!
Maldito seja
aquele vendeiro de todos os diabos!
Fazer-me um
cortiço debaixo das janelas!...
Estragou-me a
casa, o malvado!
E vomitava
pragas, jurando que havia de vingar-se
[...]
O Miranda
mandou logo levantar o muro.”
(Aluízio
Azevedo, O Cortiço, 1890)
No início do
século XX, por influência de vanguardas urbanísticas europeias, uma onda de
modernização toma conta dos centros urbanos brasileiros, a começar pelo Rio de
Janeiro, sob a bandeira do higienismo. Pensando em modernizar capital, torná-la
um lugar atrativo ao olho rico do turista e de chefes de Estado que,
eventualmente, por lá pusessem os pés, a prefeitura do Rio de Janeiro, com a
chancela do presidente da República, Rodrigues Alves, põe em prática um projeto
de “revitalização” urbana. O plano era, em teoria, demasiado simples, pois
consistia na derrubada de casarões velhos, cortiços, malocas, etc. do centro da
cidade, alargamento das vias e arborização. Em tese, queria-se fazer do Rio uma
Paris tropical (sem os incômodos sanns cullotes, é claro!).
A ‘Política
do Bota à Baixo’, como ficou popularmente conhecida, deu início ao processo de
favelização do Rio de Janeiro (ocupação do Morro da Favella), que depois se
espalhou para o restante do país, e foi, indubitavelmente, também, vetor da
Revolta da Vacina. Ao contrário do que por muito tempo se tentou vender como
prova da ignorância popular, não foi o decreto da vacinação obrigatória em si
que motivou as barricadas e os enfrentamentos com a polícia e com os agentes
sanitários de Oswaldo Cruz. A obrigatoriedade, sim, catalisou o
descontentamento da população mais pobre, que se encontrava preterida pelos
poderes públicos e desabrigada em função da reforma urbana. Foi a gota d’água
(ou o “puta que o pariu! agora chega!”).
Com o perdão
do salto temporal que o formato do presente texto exige, podemos perceber que
tais práticas com relação à população pobre, encetadas pelos poderes públicos e
com a complacência de órgãos (poder judiciário) e instituições da sociedade
civil, em espacial dos meios de comunicação de massa, se mantém constantes nas
grandes e médias cidades brasileiras, e cada vez mais violentas.
Embora
recente, o caso de Pinheirinhos é paradigmático, pois evidencia uma “logística
dos problemas sociais” como bem denomina Samuel Radaelli (em texto anterior
nesse blog). Parte-se do entendimento do pobre enquanto problema para a
especulação imobiliária, para a beleza da cidade, para a segurança pública...
Entendendo (insisto) o pobre como problema a priori, a solução (na cabeça
perversa de certos administradores públicos) é livrar-se dele! Fazer com que o
“problema” vá embora. Não há nenhuma preocupação em oferecer uma alternativa
decente a esses grupos (morar na casa de parentes ou em albergues não é uma
proposta tolerável nem mesmo em curto prazo). Instaura-se, então, um Estado
policial que impede a determinados grupos sociais o exercício de direitos
básicos, pois, se habitar constitui-se enquanto um privilégio, ocupar é um
direito.
“Mas, um dia
nóis nem pode
se alembrá
veio os homi c'as
ferramentas
o dono mando derrubá
Peguemo todas
nossas coisas
e fumos pro
meio da rua
aprecia a
demolição
Que tristeza que nóis sentia
Que tristeza que nóis sentia
cada táuba
que caía
duia no
coração”
(Adoniran
Barbosa, Saudosa Maloca, 1951)
No início do
mês de março, em Chapecó, três famílias que ocupavam uma área da Prefeitura
(uma APP), amanheceram diante de mais de trinta policiais militares (conforme o
Jornal Voz do Oeste) que cumpriam ordem de despejo. Os poucos móveis das pobres
famílias eram retirados enquanto as casas de madeira eram desmanchadas. Às famílias
nenhuma alternativa efetiva foi dada, apenas paleativa... A Prefeitura afirma
que foram devidamente avisadas e que, inclusive, assinaram documento
comprometendo-se a deixar a ocupação. As famílias argumentam que assinaram,
sim, um documento, entretanto enfatizam que lhes foi dito tratar-se de solicitação
para o registro em uma lista para a aquisição de habitações populares
regularizadas. Tento em conta que são de pessoas de baixa instrução escolar
formal e que uma das senhoras, que residia só em uma das três casas, não é
alfabetizada, é bem possível que assinaram um documento que acreditavam ser
outro.
“Mato Grosso
quis gritá
Mas em cima eu falei:
‘Os homi tá cá razão
Nós arranja outro lugar’
Só se conformemo quando o Joca falou:
‘Deus dá o frio conforme o cobertô’”
Mas em cima eu falei:
‘Os homi tá cá razão
Nós arranja outro lugar’
Só se conformemo quando o Joca falou:
‘Deus dá o frio conforme o cobertô’”
(Adoniran
Barbosa, Saudosa Maloca, 1951)
O referido
jornal enfatizou em uma publicação o incidente, entrevistou os moradores,
posicionando-se claramente, inclusive, do “lado destes”, etc. Entretanto, nos
dias que seguiram, não tocou mais no assunto, não pressionou a Prefeitura, não
procurou os “atingidos”... postura essa que revela questões sobremaneira
preocupantes. A inicial indignação atesta a revolta, por parte de um formador
de opinião, frente às injustiças sociais. O esquecimento repentino do assunto
mostra, por sua vez, um processo de naturalização/banalização (fatalismo) da
violência contra o pobre. Talvez aí esteja o problema primeiro que move (ou
deixa mover) esse tipo de ação: a naturalização do não natural ou, então, o paradoxo
da doxa. Tomar consciência da historicidade de tais relações de forças
desiguais é fator precípuo para um novo entendimento de direitos sociais, que
não se limite à informação e à inicial indignação, mas que envolva uma postura ativa
de permanente vigilância (para o exercício de direitos já constituídos em lei).
O “cobertô” que ao frio suporta já está corroído pelo tempo, não abriga mais
ninguém.
Bruno Antonio Picoli –
GEDIS
Regina Miliorança –
Acadêmica de Arquitetura e Urbanismo