Professor
Warat já observava que a maneira como a linguagem é manejada pode resultar
efeitos concretos na realidade: a forma como as palavras são empregadas em uma
mensagem pode desencadear uma série de “evocações sensitivas”, ou seja, reações
que envolvem sentimentos despertados por signos que possuem um anêmico sentido
explícito, mas um farto “sentido de fundo” que faz com que sua simples
vociferação já cause sentimentos padronizados e induza condutas de alto grau de
“previsibilidade social”. Tudo isso é muito complicado, muito teórico, parece.
Na
verdade, quero me referir ao que se sente quando se fala, jocosamente (mas nem
sempre, embora pareça absurdo em “tempos modernos”), “isso é coisa de preto”,
ou “você é um judeu”, ou ainda “só podia ser loira” ou “gordo só faz gordice”. Os
termos “preto”, “judeu”, “loira” e “gordo” não representam, obviamente, uma
pessoa negra, um ser humano de etnia judaica, uma mulher de cabelos loiros ou
uma pessoa obesa. Significam, na verdade, alguns sentidos que construímos socialmente
e que, em certa altura, se desligaram de seu signo originário e passaram a
integrar um rol de conceitos que não precisam mais ser explicados para ser
entendidos.
Isso
foi uma introdução. Servi-me disso para ilustrar a que classe linguística
enquadro a expressão “bandido”.
Ouve-se
muito que “bandido deve ir para a cadeia”. Discordo. Acho que bandido não deve
ir para a cadeia, da mesma forma que acho que um marciano não deve ir para a
cadeia. É porque bandido, na forma empregada nessa expressão, é uma coisa que
não existe fora da cabeça de algumas pessoas que acham que dá para se separar
humanos em “raças”. Fora essas pessoas, aqueles que afirmam que “bandido deve
ir para a cadeia” não estão se referindo a uma pessoa, mas a um termo vago e
anêmico que não representa alguém de verdade, mas um conceito que interiorizou
por indução e que é simplesmente repetido porque lhe parece algo lógico e conveniente:
a realidade que nos é apresentada é comprometida com um projeto ideológico, e
traz consigo uma lógica que se pretende a única possível, mas não é.
Acredito
que a pessoa que comete uma conduta previamente qualificada como crime por lei
(constitucionalmente respaldada) deve ser punida, após o trâmite do devido
processo legal. Daí, como resultado, eventualmente “ir para a cadeia”. É ser
humano que cometeu um erro, que praticou algo socialmente condenável, e que
deve sofrer a sanção. Após cumprir a sanção, estará “quites” com a sociedade –
pagou o que devia.
Agora,
dizer que um ser humano praticou algo socialmente condenável não é coisa tão
simples. Uma notícia no jornal não é suficiente para isso – mesmo porque
criminoso pode ser quem espalhou a notícia (se ela for mentirosa). Além do
mais, criminoso pode ser o policial que relatou falaciosamente a dinâmica dos
fatos. E, também, criminoso pode ser exatamente a pessoa que foi detida pelo
policial, o qual agiu de boa-fé e relatou honestamente os fatos. Quem sabe o
que realmente aconteceu?
A
origem dessa incerteza é que apenas umas poucas pessoas obtiveram contato
sensível com os acontecimentos. A relação fenomênica é, quase sempre, restrita
a uns poucos envolvidos. Como posso eu afirmar que certo indivíduo é “bandido”
se sequer o vi fazer algo errado? Ou melhor, será que posso afirmar que
determinada pessoa é criminosa se tudo o que tenho é o relato de outra pessoa
afirmando que ela cometeu um crime? A pena é uma coisa muito grave para que
possamos utilizar base tão frágil para uma condenação. E é exatamente por isso
que existem o “devido processo legal” e os “direitos humanos”, direitos de todo
e qualquer ser humano, incluindo civis, militares, eleitores, pobres, ricos,
crianças adultos mulheres homens homossexuais heterossexuais negros brancos
favelados...
Acho
ilógico apoiar alguém que vai agredir uma pessoa porque simplesmente afirmou
ter essa pessoa feito algo errado. A sanção deve vir depois do processo, é
princípio básico de nosso ordenamento jurídico. Não se deve esquecer que quem
viola esse princípio – e agride qualquer pessoa sem a permissão legal – também
faz algo socialmente condenável. Quanto aos agentes públicos (policiais, por
exemplo), há tipo penal para isso: Exercício arbitrário ou abuso de poder,
artigo 350 do Código Penal. Afinal, de que “bandidos” estamos falando?
Prefiro,
também, não utilizar a expressão "bandido" para qualificar a pessoa
que comete um crime, porque acredito que o uso compulsivo e irreflexivo desse
vocábulo gera um efeito de segregação social que agrava ainda mais o fator
social da insegurança pública.
Criar
uma classe de humanos denominados "bandidos" de regra faz parte de um
discurso de pessoas que aceitariam vultosos investimentos em armas e munição
para o Estado, mesmo que em detrimento da educação popular e das reformas
sociais de base.
Além
do mais, todos somos criminosos em potencial. Dessa forma, a polarização
"bandido"/"pessoa honesta", na realidade, não polariza
nada.
Por
fim: aceitar a divisão da humanidade entre uma classe de “bandidos” e outra de
“gente honesta” não é algo novo na história. Temos, no passado, exemplos
funestos dos resultados dessa retórica de segregação e aviltamento. Assim foi
com os regimes totalitários (de Hitler, por exemplo, com a morte de milhares –
senão milhões – de judeus), na idade média (com a tortura e a “caça às bruxas”)
e, para os cristãos, na própria crucificação de Jesus.
Não
desejo viver em tempos assim. Prefiro não utilizar expressões como “retroceder”
e “voltar” porque, para mim, o retorno é algo histórica e filosoficamente impossível.
Gosto
da liberdade de expressão e, mesmo sem cometer nenhum crime, gosto de saber que
possuo direitos e garantias face ao poder punitivo.
E é
por isso que afirmo que “bandido” não deve ir para a cadeia.
Luís Henrique Kohl Camargo – GEDIS