domingo, 27 de março de 2011

Aprendendo seu lugar na sociedade

            
É de conhecimento comum que a escola não ensina apenas matemática, português e geografia, mas também a “arte de o ser humano viver em sociedade”. A criança, sentada em uma carteira de sala de aula, aprende muito mais do que o conteúdo que o professor escreve no quadro: ela internaliza, inconscientemente, a cultura de um povo, seus jogos, seu idioma, suas gírias e rituais.
Ocorre que, privatizada a educação por algumas escolas, há, também, uma separação de “classes” entre as escolas pagas e as públicas. Essa separação simboliza, principalmente, o isolamento daqueles que “podem” (ou seja, detêm o poder de) pagar por uma escola particular em relação ao “resto” da população. Decorrência dessa separação é a subtração parcial da dignidade de quem é “resto” – até pelo próprio fato de ser o “resto” – em detrimento dos egos inflados dos pais orgulhosos de seus lindos filhos, os quais a sociedade olha como “especiais”, chamando-lhes costumeiramente pelo sobrenome (que, por si só, pode nos dizer muito sobre a realidade de alguém) ou por “filho de tal, dono daquilo”.
Esse valor imputado às pessoas, em geral, diminui a motivação do aluno de escola pública de buscar o conhecimento necessário para ascender da categoria de “resto” para a categoria de “especial”, mesmo porque tal feito é algo extremamente desgastante para a pessoa, que precisa andar intelectualmente muito mais que o que é exigido de um aluno de escola particular para que se prove que ele é capaz.
Não se quer dizer, com essas afirmações, que o aluno de escola pública possua menos capacidade intelectual que o aluno de escola particular, nem que não haja possibilidade de um aluno de escola pública se esforçar muito e obter êxito em qualquer área da sociedade. O que se quer evidenciar é que a cultura de exclusão, junto aos conteúdos teóricos ditados pelo professor, também é internalizada pelo aluno de escola pública, que está muito mais predestinado a ser um funcionário, um empregado, do que imaginamos. Da mesma forma o aluno de escola particular, de certa maneira, está predestinado a ocupar os cargos de chefia, é educado socialmente para ser um patrão e comportar-se como tal.
Tal processo dificilmente pode ser visualizado objetivamente por um observador incauto. Tenha-se por “observador incauto” aquele que comumente profere o discurso do mérito – a popular meritocracia. Já sabemos quão ultrapassada está essa visão. Mas podemos, por outro lado, apontar alguns sintomas dessa “cultura de exclusão”: 1º) Observe qualquer foto de alunos de escolas pagas e conte quantos negros há – não se esqueça de contar quantos brancos há também. 2º) Pergunte ao seu patrão (leia-se ao proprietário da empresa) se ele estudou em escola pública ou particular, ou onde seus filhos estudam (eles provavelmente serão seus próximos patrões). 3º) Observe as estatísticas dos alunos que, hoje, cursam o ensino superior e compare a existência de alunos de escola particular em relação aos de escola pública nesse ambiente (principalmente nas universidades públicas).
Não se quer excluir a constatação da possibilidade de ascensão social de pessoas de camadas pobres da sociedade. Não há aqui, também, qualquer menção sobre o que é justo ou não nessa “cultura de exclusão”. Há apenas observação lógica, empírica, talvez até um leve raciocínio sobre princípios fundamentais e constitucionais, em especial o da igualdade. Cabe a cada pessoa, em seu íntimo, pesar a condição de igualdade e justiça existente na eterna contradição entre o poder e a submissão.

Luís Henrique Kohl Camargo - GEDIS

terça-feira, 15 de março de 2011

Redução da maioridade penal

Texto elaborado pela aluna Giulia Melo de Mello, estudante da oitava série do Colégio Expressivo,

A redução da maioridade penal tem o objetivo principal de reduzir a criminalidade. Os favoráveis a essa redução possuem basicamente esses argumentos:
a) Os criminosos usam menores de 18 anos para delinquir, em razão da ausência de responsabilidade penal destes;
b) Um adolescente de 16 anos já possui maturidade para responder por um crime;
c) Os menores praticam crimes e não são punidos;
d) Se um adolescente de 16 anos tem responsabilidade para decidir o futuro de um país (pelo direito de votar), também deve ser responsável para assumir as conseqüências de um crime.

As pessoas que são contra a redução da maioridade penal – como eu – têm os seguintes contra-argumentos:
a) Se os criminosos usam menores de 18 anos para a prática de crimes, com a redução da maioridade penal, passarão a utilizar menores de 16;
b) É comprovado que um adolescente não tem total desenvolvimento de sua personalidade, tornando necessário um cuidado especial que, certamente, um presídio não irá oferecer;
c) Em caso de cometimento de crime, o menor está sujeito a uma medida sócio-educativa (com a função de reeducá-lo), podendo inclusive ocorrer internação por no máximo três anos;
d) Responsabilidade eleitoral e responsabilidade penal são coisas completamente diferentes (se fossem a mesma coisa, as pessoas que votassem mal deveriam ser presas!). O voto aos 16 anos - que é facultativo - é um exercício de cidadania que, se praticado, torna os jovens mais maduros.

Na verdade, as pessoas que são favoráveis à redução da maioridade penal, têm o desejo de se isentar da responsabilidade de proteger e educar os jovens que cometem crimes. Querem então que esses adolescentes sejam levados para a prisão, porém não pensam que depois que esses menores saírem de lá, estarão mais revoltados e mais problemas isso trará para a sociedade.
Isso quer dizer que, no meu ponto de vista, a redução da maioridade penal não diminuirá a criminalidade, e sim a aumentará.

quarta-feira, 9 de março de 2011

“Pena” (?) de morte: o discurso do equívoco e o equívoco do discurso

Os fatos mais recentes, ocorridos, principalmente, no Rio de Janeiro (invasão do Complexo do Alemão, dentre outras “Favelas”), tornaram ainda mais manifesto um discurso que já vinha sendo utilizado de forma recorrente não só pela mídia e o povo em geral, mas, principalmente, por legisladores e indivíduos públicos de nosso País.
Trata-se de um discurso que tem como ponto nodal o anseio pela implantação da pena de morte no Brasil. Bradam, com uma indignação que somente poderia ser reservada ao mais incólume dos indivíduos, contra a “injustiça” e a “impunidade” das penas existentes em face de várias estirpes de criminosos. Dentre tantos, os traficantes e os estupradores são os mais citados como merecedores desse castigo (a eliminação da vida).
O discurso é de que seria um equívoco garantir a esses indivíduos qualquer tratamento digno, ao qual somente fazem jus pessoas de “bem”, comprometidas em respeitar a sociedade e os valores instalados nela, e que direitos como a liberdade e a vida seriam demasiados caprichos para pessoas tão desprezíveis como tais meliantes.
O discurso assume, porém, um nível mais profundo do que um simples grito de justiça, impulsionado pela cólera. Trata-se, isto sim, da propagação da concepção de que delinqüentes de tamanha periculosidade não devem ser tratados como integrantes da sociedade, não lhes sendo previstos, assim, garantias jurídicas (há uma semelhança, neste aspecto, com o que dispõe a Teoria do Direito Penal do Inimigo). Já que desrespeitaram as obrigações do contrato assumido com a coletividade, esta, por sua vez, encarnada no Estado, não estaria obrigada a respeitar garantias e direitos antes pactuados, em uma espécie de exceção do contrato não cumprido.
Está-se diante, portanto, de uma espécie de seleção de pedigree dos integrantes da sociedade. Esta somente seria formada pelos cumpridores dos deveres morais e jurídicos. Não mais seria apreendido como seu componente todo e qualquer integrante do povo de um determinado território, ainda mais se descumpridor de mencionadas obrigações (desse jeito, inexistirá sociedade. Afinal, quem nunca desobedeceu um mandamento legal, ou cometeu um delito, por menor que seja? – ver, acerca disso, Augusto Thompson, em seu livro “Quem são os criminosos?”).
 O Direito Penal passaria a exaltar apenas seu aspecto punitivo, com o declarado intuito de retribuir o mal ocasionado e, quando possível, de acordo com a vontade da maioria, até mesmo exterminar os malfeitores. As garantias constitucionais, consoante já dito, seriam obstáculo à feitura da “justiça” (vingança), de modo que reina um certo consenso em prol da execução sumária de bandidos, sem qualquer processo e outras garantias constitucionais.
Um bom exemplo disso é a cena dos pretensos (a inocência é constitucionalmente presumida) traficantes fugindo do Complexo do Alemão, quando um deles é alvejado supostamente por um policial ou combatente do Exército. Tem-se aí a imagem que melhor resume o discurso que vem sendo defendido por muitos. Sem qualquer direito ao devido processo legal, o agente teve uma pena juridicamente proibida no Brasil sumariamente executada contra si, qual seja: a morte, que, no caso, talvez não tenha chegado a ser plenamente satisfeita.
O equívoco do discurso, de outro giro, parece ser a falsa ideia de que o criminoso não é formado pela sociedade. Obviamente que, em qualquer organização social, haverá pessoas infratoras, isto é, que descumprirão alguma(s) regra(s), dentre as quais aquelas mais graves, tuteladas penalmente. Outrossim, sem qualquer pretensão de exaurir as causas do evento “crime” e do indivíduo criminoso, é indubitável que o traço “competitivo” da sociedade é uma das fontes genuínas da criação de delinqüentes.
 De qualquer sorte, o que se pretende deixar esclarecido é que o criminoso somente existe em sociedade. E, como integrante da sociedade, não pode receber tratamentos sem qualquer legitimação jurídica. Aliás, é exatamente à isso que se presta a Constituição. Vista como o “Contrato Social”, contempla em seu bojo vários direitos, deveres e garantias individuais, que são, como lembra Ronald Dworkin, trunfos de cada pessoa em face da vontade majoritáira.
 O simples fato de a Constituição vedar a pena de morte deveria ser motivo suficiente para inibir qualquer tentativa de sua implantação no Brasil. Isso somente seria possível de ser realizado de forma golpista, redundando em uma nova Constituição, a qual, entretanto, estaria na contramão das conquistas do Constitucionalismo Pós-Guerra, mormente no Brasil.
Discursos desse feitio são antidemocráticos. Sim, pois como ressalta o jurista italiano Luigi Ferrajoli (in: Juspositivismo critico y democracia constitucional. Isonomia, n. 16, 2002. Disponível em:<http://www.cervantesvirtual.com. Acesso em: 16 set. 2010): “La positivización de principios y derechos fundamentales en normas constitucionales, condicionando la legitimidad del sistema político a su plena tutela y observancia, ha incorporado también en la democracia una dimensión substancial [...].
Logo, não há que se confundir maioria com democracia. Eduardo Cambi (in: Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo: Direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 22) assevera, nesse compasso, que o “princípio da maioria não está assentado no absolutismo da maioria ou da opressão das minorias. O conceito de democracia não pode ser reduzido ao governo da maioria”. Nem se diga que o interesse contramajoritário exposto na Constituição é antidemocrático, pois, como bem ensina Lenio Luiz Streck (Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma construção hermenêutica da construção do Direito. 7 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 19), “se existir alguma contraposição, esta ocorre necessariamente entre a democracia constitucional e a democracia majoritária”.
A bem da verdade, pode-se considerar que o Constitucionalismo Pós-Guerra imprime uma evolução qualitativa na Democracia. Desvincula-se do prestígio conferido à maioria, levada, em suas decisões, pelos desígnios arbitrários e setoriais (basta lembrar que o Nazismo praticou os feitos mais horríveis e desumanos legitimado pela vontade da maioria), para garantir valores substanciais e não somente regras formais para a formação da vontade geral.
Em suma: mesmo que a grande maioria do povo brasileiro pugne pela implantação da pena de morte ou, ainda, pela redução de garantias constitucionais (presunção de inocência, devido processo legal etc.), isso seria democraticamente impossível de ser efetivado. Como arremata Ronald Dworkin (apud STRECK, Lenio, op.cit., p. 19): “a democracia constitucional pressupõe uma teoria de direitos fundamentais que tenham exatamente a função de colocar limites/freios às maiorias eventuais.”
Não bastasse isso, do ponto de vista acadêmico, lembram Pierangeli e Zaffaroni que a “pena” de morte, definitivamente, não pode ser teoricamente considerada como pena. A sanção penal, hodiernamente, conforme a escola eclética (a mais difundida), ao lado da finalidade de castigar o infrator, culminando, por via reflexa, na intimidação dos demais indivíduos (prevenção geral), objetiva, de forma primordial (pelo menos teoricamente, dada a péssima situação do sistema carcerário brasileiro), ressocializar o meliante (prevenção especial) – obs: quem sabe a sociedade somente será defendida quando o condenado for readaptado ao seio social.
Ora, a “pena” de morte, dessa forma, somente poderia, no máximo, cumprir o caráter de prevenção geral, mas jamais a ressocialização do apenado (prevenção especial). Este, portanto, somente seria castigado, e não apenado. Conseguintemente, lamentam os renomados penalistas que a “pena” de morte não passaria de mais uma forma de exterminar vidas; ela pode ser considerada qualquer outra coisa, mas não pode ser tratada como “pena”, diante do sentido teórico assumido pelo termo.
Entretanto, a Academia e os teóricos, por conveniência ou por falta de espaço (na mídia), silenciam-se. Enquanto isso, meia dúzia de pseudo-intelectuais repisam, com base em uma visão mesquinha, ser a “pena” de morte a solução para acabar com a criminalidade.

Cleiton Luis Chiodi - GEDIS

terça-feira, 1 de março de 2011

Breves considerações sobre o crime de aborto

Já nos tempos da monarquia absolutista, aproximadamente nos séculos XVII e XVIII, um jovem iluminista italiano escreve a obra que até hoje vem sendo considerada pioneira e fundamental à compreensão do direito penal contemporâneo: “Dos Delitos e das Penas” (de Cesare Beccaria). Ali encontramos as bases históricas para o surgimento das garantias da pessoa acusada, consagradas até hoje, tal qual a vedação da tortura como meio de obtenção da confissão, a presunção de inocência do réu, o princípio da legalidade (ou anterioridade) e da individualização da pena, entre outros.
A característica mais interessante, porém, destacada desse livro, é a mudança conceitual da idéia de “pena”, que até então era utilizada como meio de afligir no acusado o desejo de vingança privada. A “punição racional” citada pelo autor só seria adequada se a medida da pena fosse o prejuízo social causado pelo acusado. Dessa forma introduzimo-nos ao direito penal moderno, que se desenvolve por meio de uma série de evoluções sociais e jurídicas (como a declaração dos direitos do homem e do cidadão, da revolução francesa, e a declaração universal dos direitos humanos de 1948, por exemplo), até chegarmos ao código penal brasileiro e à Constituição Federal de 1988.
A breve introdução busca adequar o tema que será posto em questão à condição histórica e social dos direitos humanos. A prática do aborto, atualmente, tipifica crime previsto pelo artigo nº 124 do nosso código penal, punido com detenção, de um a três anos. Ou seja, ainda que no segundo mês de vida do embrião a mãe opte pela intervenção médica à gravidez, será considerada criminosa.
Se observarmos atentamente a situação social de grande parte das mulheres que praticam aborto, notaremos que muitas delas se submetem a uma verdadeira carnificina clandestina para interromper sua gravidez, correndo sério risco de vida. Algumas estatísticas demonstram que mais da metade das mulheres que optam pelo aborto, devido ao fato de restarem obrigadas a fazê-lo em “clínicas” ilegais, não sobrevivem. Esse dado demonstra que criminalizar a referida conduta não é meio eficaz de preservar vidas, pois, de fato, não é a situação jurídico-positiva o que leva uma mãe ao aborto.
Deixar de criminalizar o aborto não significa logicamente posicionar-se a favor dessa prática. Significa, na verdade, uma forma de pensar socialmente (e racionalmente) um problema grave. O fato de uma mãe não desejar o nascimento de uma criança é lastimável. Suas fontes são, basicamente, a frágil estrutura familiar na qual ela está inserida, a pressão social e, sobretudo, a falta de informação e educação. Logo, o que acontecerá com a pessoa que, além de estar submetida a uma infinidade de fatores de miséria existencial, ainda passa a ser considerada criminosa, respondendo um processo onde possivelmente será obrigada a pagar à sociedade aquilo que nem esta forneceu? Pergunto-me se há caráter pedagógico nessa pena, ou se há vontade de “reintegrar” o sujeito à convivência social.
Socialmente, aborto não é sinônimo de homicídio. Neste, o caso é de uma subjetividade “além-de-mim” que foi aniquilada “por mim”. No aborto, o fenômeno é de uma subjetividade que está sendo construída “em mim” (na mãe), cuja qual “eu” (mãe) não possibilito a ela a conclusão de sua formação e nascimento (desligamento do ser para a individualidade/totalidade). Na gravidez, abrangemos uma área demasiada íntima e especial para que simplesmente disciplinemos sua interrupção como um crime. É mais um problema de saúde pública. O dano causado pelo aborto é muito mais íntimo do que social.
Na última disputa eleitoral, por exemplo, a então candidata (atual presidente) Dilma Rousseff sofreu um “processo de satanização” por considerar o aborto dessa forma. Vale lembrar que criminalizar uma conduta não representa extirpá-la da realidade social. É totalmente compatível estar contra o aborto e defender sua descriminalização.
Ainda que o valor de uma vida seja inestimável, não podemos nos olvidar de considerar, em uma argumentação de direito penal, que a punição visa ser socialmente eficaz. Em alguns casos (e enquadro aqui a presente questão) punir significa aumentar ainda mais as feridas causadas por uma sociedade desigual e segregária. Se o nosso desejo está realmente voltado à preservação da vida, devemos tomar uma postura de alteridade para com o outro. Senão, corremos o risco de retornarmos à Idade Média, onde a pena era utilizada para infligir no “outro” o meu desejo de vingança.

Luís Henrique Kohl Camargo - GEDIS