quarta-feira, 9 de março de 2011

“Pena” (?) de morte: o discurso do equívoco e o equívoco do discurso

Os fatos mais recentes, ocorridos, principalmente, no Rio de Janeiro (invasão do Complexo do Alemão, dentre outras “Favelas”), tornaram ainda mais manifesto um discurso que já vinha sendo utilizado de forma recorrente não só pela mídia e o povo em geral, mas, principalmente, por legisladores e indivíduos públicos de nosso País.
Trata-se de um discurso que tem como ponto nodal o anseio pela implantação da pena de morte no Brasil. Bradam, com uma indignação que somente poderia ser reservada ao mais incólume dos indivíduos, contra a “injustiça” e a “impunidade” das penas existentes em face de várias estirpes de criminosos. Dentre tantos, os traficantes e os estupradores são os mais citados como merecedores desse castigo (a eliminação da vida).
O discurso é de que seria um equívoco garantir a esses indivíduos qualquer tratamento digno, ao qual somente fazem jus pessoas de “bem”, comprometidas em respeitar a sociedade e os valores instalados nela, e que direitos como a liberdade e a vida seriam demasiados caprichos para pessoas tão desprezíveis como tais meliantes.
O discurso assume, porém, um nível mais profundo do que um simples grito de justiça, impulsionado pela cólera. Trata-se, isto sim, da propagação da concepção de que delinqüentes de tamanha periculosidade não devem ser tratados como integrantes da sociedade, não lhes sendo previstos, assim, garantias jurídicas (há uma semelhança, neste aspecto, com o que dispõe a Teoria do Direito Penal do Inimigo). Já que desrespeitaram as obrigações do contrato assumido com a coletividade, esta, por sua vez, encarnada no Estado, não estaria obrigada a respeitar garantias e direitos antes pactuados, em uma espécie de exceção do contrato não cumprido.
Está-se diante, portanto, de uma espécie de seleção de pedigree dos integrantes da sociedade. Esta somente seria formada pelos cumpridores dos deveres morais e jurídicos. Não mais seria apreendido como seu componente todo e qualquer integrante do povo de um determinado território, ainda mais se descumpridor de mencionadas obrigações (desse jeito, inexistirá sociedade. Afinal, quem nunca desobedeceu um mandamento legal, ou cometeu um delito, por menor que seja? – ver, acerca disso, Augusto Thompson, em seu livro “Quem são os criminosos?”).
 O Direito Penal passaria a exaltar apenas seu aspecto punitivo, com o declarado intuito de retribuir o mal ocasionado e, quando possível, de acordo com a vontade da maioria, até mesmo exterminar os malfeitores. As garantias constitucionais, consoante já dito, seriam obstáculo à feitura da “justiça” (vingança), de modo que reina um certo consenso em prol da execução sumária de bandidos, sem qualquer processo e outras garantias constitucionais.
Um bom exemplo disso é a cena dos pretensos (a inocência é constitucionalmente presumida) traficantes fugindo do Complexo do Alemão, quando um deles é alvejado supostamente por um policial ou combatente do Exército. Tem-se aí a imagem que melhor resume o discurso que vem sendo defendido por muitos. Sem qualquer direito ao devido processo legal, o agente teve uma pena juridicamente proibida no Brasil sumariamente executada contra si, qual seja: a morte, que, no caso, talvez não tenha chegado a ser plenamente satisfeita.
O equívoco do discurso, de outro giro, parece ser a falsa ideia de que o criminoso não é formado pela sociedade. Obviamente que, em qualquer organização social, haverá pessoas infratoras, isto é, que descumprirão alguma(s) regra(s), dentre as quais aquelas mais graves, tuteladas penalmente. Outrossim, sem qualquer pretensão de exaurir as causas do evento “crime” e do indivíduo criminoso, é indubitável que o traço “competitivo” da sociedade é uma das fontes genuínas da criação de delinqüentes.
 De qualquer sorte, o que se pretende deixar esclarecido é que o criminoso somente existe em sociedade. E, como integrante da sociedade, não pode receber tratamentos sem qualquer legitimação jurídica. Aliás, é exatamente à isso que se presta a Constituição. Vista como o “Contrato Social”, contempla em seu bojo vários direitos, deveres e garantias individuais, que são, como lembra Ronald Dworkin, trunfos de cada pessoa em face da vontade majoritáira.
 O simples fato de a Constituição vedar a pena de morte deveria ser motivo suficiente para inibir qualquer tentativa de sua implantação no Brasil. Isso somente seria possível de ser realizado de forma golpista, redundando em uma nova Constituição, a qual, entretanto, estaria na contramão das conquistas do Constitucionalismo Pós-Guerra, mormente no Brasil.
Discursos desse feitio são antidemocráticos. Sim, pois como ressalta o jurista italiano Luigi Ferrajoli (in: Juspositivismo critico y democracia constitucional. Isonomia, n. 16, 2002. Disponível em:<http://www.cervantesvirtual.com. Acesso em: 16 set. 2010): “La positivización de principios y derechos fundamentales en normas constitucionales, condicionando la legitimidad del sistema político a su plena tutela y observancia, ha incorporado también en la democracia una dimensión substancial [...].
Logo, não há que se confundir maioria com democracia. Eduardo Cambi (in: Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo: Direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 22) assevera, nesse compasso, que o “princípio da maioria não está assentado no absolutismo da maioria ou da opressão das minorias. O conceito de democracia não pode ser reduzido ao governo da maioria”. Nem se diga que o interesse contramajoritário exposto na Constituição é antidemocrático, pois, como bem ensina Lenio Luiz Streck (Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma construção hermenêutica da construção do Direito. 7 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 19), “se existir alguma contraposição, esta ocorre necessariamente entre a democracia constitucional e a democracia majoritária”.
A bem da verdade, pode-se considerar que o Constitucionalismo Pós-Guerra imprime uma evolução qualitativa na Democracia. Desvincula-se do prestígio conferido à maioria, levada, em suas decisões, pelos desígnios arbitrários e setoriais (basta lembrar que o Nazismo praticou os feitos mais horríveis e desumanos legitimado pela vontade da maioria), para garantir valores substanciais e não somente regras formais para a formação da vontade geral.
Em suma: mesmo que a grande maioria do povo brasileiro pugne pela implantação da pena de morte ou, ainda, pela redução de garantias constitucionais (presunção de inocência, devido processo legal etc.), isso seria democraticamente impossível de ser efetivado. Como arremata Ronald Dworkin (apud STRECK, Lenio, op.cit., p. 19): “a democracia constitucional pressupõe uma teoria de direitos fundamentais que tenham exatamente a função de colocar limites/freios às maiorias eventuais.”
Não bastasse isso, do ponto de vista acadêmico, lembram Pierangeli e Zaffaroni que a “pena” de morte, definitivamente, não pode ser teoricamente considerada como pena. A sanção penal, hodiernamente, conforme a escola eclética (a mais difundida), ao lado da finalidade de castigar o infrator, culminando, por via reflexa, na intimidação dos demais indivíduos (prevenção geral), objetiva, de forma primordial (pelo menos teoricamente, dada a péssima situação do sistema carcerário brasileiro), ressocializar o meliante (prevenção especial) – obs: quem sabe a sociedade somente será defendida quando o condenado for readaptado ao seio social.
Ora, a “pena” de morte, dessa forma, somente poderia, no máximo, cumprir o caráter de prevenção geral, mas jamais a ressocialização do apenado (prevenção especial). Este, portanto, somente seria castigado, e não apenado. Conseguintemente, lamentam os renomados penalistas que a “pena” de morte não passaria de mais uma forma de exterminar vidas; ela pode ser considerada qualquer outra coisa, mas não pode ser tratada como “pena”, diante do sentido teórico assumido pelo termo.
Entretanto, a Academia e os teóricos, por conveniência ou por falta de espaço (na mídia), silenciam-se. Enquanto isso, meia dúzia de pseudo-intelectuais repisam, com base em uma visão mesquinha, ser a “pena” de morte a solução para acabar com a criminalidade.

Cleiton Luis Chiodi - GEDIS

Um comentário:

  1. No cálculo da pena, percebe-se literalmente a sistematização na aplicação da pena, apesar de o Direito como um todo ser regido por vários Princípios, esquecemos que estamos mudando todo o curso de uma vida, que na maioria dos casos, não tiveram acesso a oportunidades geradas pela disparidade social em que estamos inseridos, nosso sistema penitenciário adota a progressividade, onde o condenado, por mérito próprio e alguns requisitos pré determinados consegue progredir de regime e diminuir seu tempo de cumprimento. O sistema prisional esta todo contemplado para a reeducação do preso, sendo ele posteriormente inserido na sociedade, mas o Estado tem sido omisso, sem dar as condições necessárias para tal realização. A “pena” de morte seria regredir no tempo para a barbárie, seria desacreditarmos em nós mesmos seres humanos, dotados de racionalidade e poder de evolução, é definitivamente irracional, a condição humana em que estamos nos propondo a participar, pois, passamos os poderes de representação para o Estado através do Contrato social. Mais absurdamente é se deparar com alguns discursos dessa natureza usando da ignorância e clamor social para atingir seus objetivos próprios.

    “Quanto vale a vida acima de qualquer suspeita, quanto vale a vida de baixo dos viadutos, quanto vale a vida longe de quem nos faz viver, são segredos que a gente não conta, e faz de conta que não quer nem saber, coisas que o dinheiro não compra, quanto vale a vida?” (Humberto Gessinger).

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