sexta-feira, 18 de agosto de 2017



DISTOPIA NOSSA, QUE ESTÁS NA TERRA



Na tira que antecede a acima disposta e nas duas que a sucedem, a pequena Mafalda, personagem do genial Quino, lança-se com sua inocência (e perspicácia) na busca por pessoas bondosas. Afinal, com tanta maldade no mundo era só encontrar essas pessoas, não?! A cada investida, uma afirmativa! Enfim todo mundo é bom! De Don Manolo, que espanca o filho, à senhora rica de um país de miseráveis, passando pelo guarda da rua em plena ditadura argentina. Essa pergunta poderia ser feita a qualquer um, inclusive a esse que escreve... ou ao pastor, ao jornalista e ao prefeito, todos diriam “sim, é claro!”. Talvez esse último, em tom de bravata, ainda emendaria que é tão bom que o país seria bem melhor se existissem uns 20, 30 ou 50 como ele...
A ação moral bondosa, no mundo moderno, é claro, precisa ser aplicada com cautela, à conta-gotas. Afinal, não devem atrapalhar os negócios. Tirar uma vantagem de alguém descuidado, endividado ou fragilizado faz parte do modus operandi contemporâneo, respaldada na própria moral de consenso. Não nos enganemos! Não significa que falta ensinar valores às crianças que no futuro serão os adultos de bem, mas que os valores ensinados são compatíveis com esses outros valores não ditos. Mais que isso, são ensinados exaustivamente! Já em 1968, Tom Zé escancarou o pai de família de bem ao compor “Dólar”. Pois, “ele sempre soube encaminhar seus filhos para a glória [...] Ensinou-lhes bem cedo que ‘a honra’ todos devem cultivar, entretanto, ao tomar decisões, ela nunca deve atrapalhar. Mostrou que as boas ações, a causa justa e que é nobre, convive é com os milhões”.
Essa coexistência entre valores tão díspares, ou, então, esse poder de manter duas crenças opostas na mente ao mesmo tempo foi chamada por George Orwell de “duplipensar”. Talvez a profecia de Orwell tenha se concretizado e vivamos presos na distopia de seu perturbador romance “1984”. O fenômeno da pós-verdade, onipresente na obra (e na contemporaneidade), dá mostras disso: a cultura da arma de fogo pessoal impulsiona as estatísticas de assassinato (da vítima), mas isso não importa, o indivíduo, adepto da religião cujo messias dizia para oferecer a outra face, quer portar a sua; há evidências de que o peso da pena não é fator determinante para diminuição da criminalidade, não importa, para o indivíduo, ainda o mesmo, tem que ter pena de morte ou, no mínimo, socar o “criminoso” numa cela suja, porque tem que ser suja mesmo! Não importa, portanto, que os fatos objetivos deem mostras da absurdidade da ideia ou crença. A ideia se justifica por motivos não ditos, mas moralmente admitidos.
A boa pessoa da investida de Mafalda duplipensa quase o tempo todo. Prega a honestidade e sonega imposto. Quer uma lei violenta para conduzir à paz. Ensina a amar o próximo, desde que não atrapalhe os negócios. Quer praticar o mal e continuar respondendo à menininha curiosa: “sim, por Deus! Sou uma boa pessoa!”.


Bruno Antonio Picoli


SOMOS TODOS BONS

Nesse Brasil de tantas bondades
vivemos outras tantas maldades.
E daí? O que conta na vida?
Viver de mentiras que cremos,
inclusive as que dizemos verdades?
O que me parece viger
constituindo nosso modo de ser
é a mais vil crueldade.

Esses rompantes morais
de encorpa da moralidade
de uma biosfera distópica
de um estado de temeridade
só aumentam meu bem querer
de enxergar e entender
o que move as ambiguidades.

Em terra de tantos bons,
de amável hostilidade
de quem bate por amor
e de quem ama por vaidade
é crucial o pensamento
de que o silenciamento
tem tido tanta legitimidade.

E a Mafalda entendendo o mundo
e sua astuta discursividade
nos faz compreender também
sobre o mau e sua versatilidade
que se traveste de utopia,
mas reflete a distopia
de nós, apesar da bondade.

Fabio Soares



Publicados em 14 de julho na Coluna Pimenteiro do Diário Data X

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