terça-feira, 1 de março de 2011

Breves considerações sobre o crime de aborto

Já nos tempos da monarquia absolutista, aproximadamente nos séculos XVII e XVIII, um jovem iluminista italiano escreve a obra que até hoje vem sendo considerada pioneira e fundamental à compreensão do direito penal contemporâneo: “Dos Delitos e das Penas” (de Cesare Beccaria). Ali encontramos as bases históricas para o surgimento das garantias da pessoa acusada, consagradas até hoje, tal qual a vedação da tortura como meio de obtenção da confissão, a presunção de inocência do réu, o princípio da legalidade (ou anterioridade) e da individualização da pena, entre outros.
A característica mais interessante, porém, destacada desse livro, é a mudança conceitual da idéia de “pena”, que até então era utilizada como meio de afligir no acusado o desejo de vingança privada. A “punição racional” citada pelo autor só seria adequada se a medida da pena fosse o prejuízo social causado pelo acusado. Dessa forma introduzimo-nos ao direito penal moderno, que se desenvolve por meio de uma série de evoluções sociais e jurídicas (como a declaração dos direitos do homem e do cidadão, da revolução francesa, e a declaração universal dos direitos humanos de 1948, por exemplo), até chegarmos ao código penal brasileiro e à Constituição Federal de 1988.
A breve introdução busca adequar o tema que será posto em questão à condição histórica e social dos direitos humanos. A prática do aborto, atualmente, tipifica crime previsto pelo artigo nº 124 do nosso código penal, punido com detenção, de um a três anos. Ou seja, ainda que no segundo mês de vida do embrião a mãe opte pela intervenção médica à gravidez, será considerada criminosa.
Se observarmos atentamente a situação social de grande parte das mulheres que praticam aborto, notaremos que muitas delas se submetem a uma verdadeira carnificina clandestina para interromper sua gravidez, correndo sério risco de vida. Algumas estatísticas demonstram que mais da metade das mulheres que optam pelo aborto, devido ao fato de restarem obrigadas a fazê-lo em “clínicas” ilegais, não sobrevivem. Esse dado demonstra que criminalizar a referida conduta não é meio eficaz de preservar vidas, pois, de fato, não é a situação jurídico-positiva o que leva uma mãe ao aborto.
Deixar de criminalizar o aborto não significa logicamente posicionar-se a favor dessa prática. Significa, na verdade, uma forma de pensar socialmente (e racionalmente) um problema grave. O fato de uma mãe não desejar o nascimento de uma criança é lastimável. Suas fontes são, basicamente, a frágil estrutura familiar na qual ela está inserida, a pressão social e, sobretudo, a falta de informação e educação. Logo, o que acontecerá com a pessoa que, além de estar submetida a uma infinidade de fatores de miséria existencial, ainda passa a ser considerada criminosa, respondendo um processo onde possivelmente será obrigada a pagar à sociedade aquilo que nem esta forneceu? Pergunto-me se há caráter pedagógico nessa pena, ou se há vontade de “reintegrar” o sujeito à convivência social.
Socialmente, aborto não é sinônimo de homicídio. Neste, o caso é de uma subjetividade “além-de-mim” que foi aniquilada “por mim”. No aborto, o fenômeno é de uma subjetividade que está sendo construída “em mim” (na mãe), cuja qual “eu” (mãe) não possibilito a ela a conclusão de sua formação e nascimento (desligamento do ser para a individualidade/totalidade). Na gravidez, abrangemos uma área demasiada íntima e especial para que simplesmente disciplinemos sua interrupção como um crime. É mais um problema de saúde pública. O dano causado pelo aborto é muito mais íntimo do que social.
Na última disputa eleitoral, por exemplo, a então candidata (atual presidente) Dilma Rousseff sofreu um “processo de satanização” por considerar o aborto dessa forma. Vale lembrar que criminalizar uma conduta não representa extirpá-la da realidade social. É totalmente compatível estar contra o aborto e defender sua descriminalização.
Ainda que o valor de uma vida seja inestimável, não podemos nos olvidar de considerar, em uma argumentação de direito penal, que a punição visa ser socialmente eficaz. Em alguns casos (e enquadro aqui a presente questão) punir significa aumentar ainda mais as feridas causadas por uma sociedade desigual e segregária. Se o nosso desejo está realmente voltado à preservação da vida, devemos tomar uma postura de alteridade para com o outro. Senão, corremos o risco de retornarmos à Idade Média, onde a pena era utilizada para infligir no “outro” o meu desejo de vingança.

Luís Henrique Kohl Camargo - GEDIS

Um comentário:

  1. Perfeitas as suas colocações, onde realmente conseguimos nos “transportar” a tal situação, no caso, na difícil escolha de uma mãe (que por instinto não aceitaria tal situação), mas as pressões sociais e as circunstâncias de determinado momento são tantas... realmente ser considerada como criminosa, e ter que conviver eternamente com “peso” em sua própria consciência. Onde a dignidade da pessoa humana está submerso ao transcendental e o irracional, desejo de vingança privada, sem o menor efeito social. A forte influência de preconceito religioso a qual cria em determinadas “criminosas” um verdadeiro “vinculo de satanização”. Ainda bem que vivemos em um Estado Laico.!!??....

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