terça-feira, 13 de março de 2012

Banalização do ódio: a tendência de suprimir a garantia do acusado de ter um julgamento “justo”

Na história do Constitucionalismo, a garantia individual de o acusado ter um julgamento justo remonta à Magna Charta, de 1215, da Inglaterra. Desde então começaram a ser desenvolvidos os dois pilares centrais do que deve ser entendido por julgamento justo, consistentes nos princípios do contraditório e ampla defesa e do devido processo legal.
A ideia central do julgamento justo visa exatamente evitar que aquele que é apontado como delinquente não sofra (com) um julgamento qualquer. O julgamento justo, pois, não se confunde com o julgamento realizado pelo controle social informal (de ordem moral, religiosa etc.). Ao revés, deve ser realizado em conformidade com aquele controle social institucionalizado, valendo-se de normas jurídicas estatais (embora não se desconheça que as normas de Direito Penal e Processual Penal, no mais das vezes, representam os interesses do grupo social dominante, que se valem do Direito para dar efetividade ao seu locus social de “superioridade/controle social”).
Daí porque o julgamento não prescinde de um processo judicial, que deve seguir formalidades e ritos legais e, o que é mais importante, deve ser permeado por contraditório e ampla defesa, a fim de manter a paridade de “armas” entre as partes.
O contraditório nada mais é que o direito de que o réu dispõe para se manifestar sobre a acusação que lhe é atribuída e das provas que contra si são produzidas. Enfim, possui o direito de exteriorizar sua contrariedade ao que está sendo produzido contra si e, caso queira, dar sua versão.
Já ampla defesa consiste na garantia do acusado de dispor de mecanismos hábeis para dar sua versão. É a própria exteriorização do contraditório. A ampla defesa engloba também a defesa técnica, ou seja, de defender-se com a tese jurídica que melhor satisfaz seu interesse.
Por isso diz-se que a ampla defesa é divida em autodefesa e defesa técnica.
 A primeira consiste no meio de defesa que o acusado exerce direta e pessoalmente perante o juiz ou tribunal. Exemplo da autodefesa é o interrogatório, oportunidade em que o réu possui o direito constitucionalmente garantido de dar a sua versão sobre os fatos, confessando-os parcial ou integralmente, negando-os ou, ainda, mantendo-se em silêncio.
Já a defesa técnica deve ser exercida por profissional legalmente habilitado para tanto, ou seja, por advogado ou por defensor público. É a defesa técnica que está incumbida de tecer as teses jurídicas hábeis a defender o acusado, na missão de defender a ordem jurídica válida. Evitar excessos ou arbitrariedade (condenando quem é inocente ou condenando o culpado de modo incompatível com o Direito, por exemplo) é seu dever.
Qualquer aplicação insatisfatória das normas que compõem o chamado julgamento justo, acaba por torná-lo injusto, ilícito, arbitrário e juridicamente insustentável e, portanto, nulo. O julgamento justo deve ser visto como condicionamento democrático de qualquer sociedade. Sem ele, não existe democracia, mas apenas arbitrariedade e violência ilegítima.
O que se propugna superar com o julgamento justo é a obscura época da Idade Média em que o processo era sigiloso e não apenas para o público mas, o que é pior, para o acusado (exceto na Inglaterra, desde 1215). Nessa época em que o processo devia ser o mais diligente e o mais secretamente que se pudesse fazer, sem que fosse oportunizado ao acusado saber sobre a acusação, a ter acesso às provas ou participar na produção destas ou ainda possuir o direito de um advogado, o estabelecimento da (de uma) verdade era direito absoluto do soberano e seus juízes, sem qualquer participação do réu (a propósito: FOCAULT, Michel. Vigiar e Punir: a história da violência das prisões. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 32).
Mas, pelo que a história recente vem nos demonstrando, longe estamos de consolidar na teoria e nas “ruas” a consciência de o julgamento justo ser uma garantia e não uma benesse.
Não é preciso ir longe geográfica e temporalmente para constatar o que se diz. Basta lembrar, por exemplo, o “Linchamento” ocorrido em Chapecó-SC na década de 50, em que os supostos autores do incêndio supostamente criminoso da igreja católica dessa cidade foram torturados, agredidos e queimados em praça pública, perante centenas de integrantes da população. Não tiveram qualquer possibilidade de um julgamento justo. Foram sumária e violentamente submetidos à ira de alguns e ao castigo escolhido para a ocasião, tendo como fator relevante o dissídio político-partidário então instaurado.
Poderiam ser usados inúmeros outros casos emblemáticos (como aquela cena da invasão de uma comunidade do Rio de Janeiro, em que suposto traficante é baleado a despeito de estar fugindo). No entanto, vou me ater a um mais recente: o famigerado caso “Eloá”, que dispensa apresentações diante da cobertura exaustiva, porém parcial e tendenciosa, da mídia brasileira.
É de conhecimento de todos que a advogada de defesa do réu “Lindemberg” foi hostilizada não apenas pelas diversas pessoas que se concentravam diante do Fórum em que o ocorreu o dito julgamento, bem como pela mídia e nos diversos cantões deste País continental.
Tal postura demonstra que, para o senso comum, alguns acusados não deveriam ter direito a julgamento justo e, mais ainda, à defesa, exercida diretamente e/ou por intermédio de defensor; que não possuem direito de estabelecer a verdade, em contrariar aquilo que lhe é imputado.
Mais, isso representa, no fundo, que pouco importa o estabelecimento da verdade, da ponderação da culpabilidade ou da justaposição de eventual pena.  O que se quer, no fundo, é punir, praticar o ódio e a vingança e não importa contra quem. Basta a existência de meros indícios para, de pronto, surgir o rótulo inabalável de “culpado”.
O que é mais lamentável é que tal leitura tendenciosa e parcial é feita também pelos atores do Direito. Não me refiro apenas aos profissionais da área, bem assim aos estudantes e professores.
Realmente, se se continuar a sustentar tais despautérios, não tardará muito para cairmos em abismo incontornável, onde o zelo pelas garantias e direitos mais basilares será fustigado do cenário social, institucionalizando-se o ódio, do qual todos nós seremos alvos (motivos não faltarão para isso).



Cleiton Luis Chiodi - GEDIS

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