sábado, 10 de março de 2012

O ensino de História e a Lei 11.645/2008

A formação do Estado Nacional brasileiro produziu uma identidade que cerceava o direito à diferença, que não admitia como válida as expressões culturais de origem africana e indígena. Dai a produção de um modelo de ensino de História voltado para o “abrasileiramento” desses grupos, entendidos pela concepção tradicional como matrizes de inferior qualidade étnico-intelectual na conformação do “brasileiro”, ou, ainda, voltado ao seu silenciamento enquanto construtores da História do Brasil. A obrigatoriedade do ensino de História e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas de nível básico, pela Lei 11.645/08, é o começo de um repensar a importância da cultura desses grupos preteridos pela História oficial na formação da sociedade brasileira. Trata-se, simbolicamente, de uma correção, por parte do Estado brasileiro, pelo débito histórico em políticas públicas para a população negra e indígena.
Dia do Índio – alunos do Colégio
Gomes Carneiro – Xaxim-SC,
década de 1960. Acervo
da EEB Gomes Carneiro 
Historicamente, no Brasil, a escola e, em especial o ensino de História, constituíram-se como instâncias negadoras da diversidade cultural e da importância da contribuição cultural africana e indígena na trama social brasileira. O primeiro programa para o ensino de História do Brasil desenvolvido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) defendia a formação do Brasil através da mistura de três raças, sendo uma superior e as demais inferiores. Ressaltava-se, então, o elemento branco, a colonização lusa, a ação missionária da Igreja Católica, a monarquia e o gradual branqueamento populacional como caminho para a civilização. Entretanto, a referida lei, fruto de intensas pressões de intelectuais, movimentos indígenas e negros organizados, parte de um pressuposto diferente de escola e de ensino de História no Brasil, não nega que podem ser espaços de reprodução de estigmas, porém também podem ser espaços imprescindíveis para a valorização e emancipação desses grupos. Parte, portanto, da premissa de que a escola não apenas reproduz interesses de grupos dominantes, mas também pode se transformar num instrumento de resistência e valorização da cultura afro-brasileira e indígena, entendida na sua diversidade de povos.
A Lei 11.645/08 refere-se a diversas temáticas para serem aplicadas nas disciplinas escolares de Educação artística, Literatura e História. Portanto, dessas temáticas podemos destacar a História da África e dos africanos, a História dos povos indígenas, as lutas dos negros e índios no Brasil, a culinária, as datas comemorativas, a dança, a copoeira, etc. É importante salientar que desde 1943 nas escolas, em especial nas séries iniciais, “comemorava-se” o dia do índio. Nesse dia as crianças, como afirma Edson de Brito, com os rostos pintados e com uma pena de papel ou papelão presa à cabeça. Nessa concepção a cultura dos povos indígenas estava condenada à extinção e ao passado, ou seja, o tempo presente não lhes pertencia. De forma semelhante, na escola, anterior à lei (e ainda hoje, dado a dificuldade de efetivação da mesma), reproduziam-se preconceitos através da generalização e banalização de culturas diversas e milenares, vivas e que se situam no presente mantendo forte poder transformador e de assimilação de novas demandas.
De acordo com Silva e Grupioni, os povos indígenas aparecem nas escolas brasileiras como portadores de uma cultura sem correspondência com a contemporaneidade. Frequentemente o tupi aparece como única língua, a caça e a pesca como únicas atividades, etc., o que não significa em absoluto a realidade complexa desses povos. Enfatizam-se, no ensino tradicional, as derrotas, impossibilitando espaço para o estudo das estratégias de lutas e resistências empreendidas por negros e indígenas no decurso da História do Brasil. Privilegiava-se o ensino de uma visão folclórica e estigmatizante, pelo qual esses grupos não estavam apenas condenados ao passado, mas também à pobreza, à preguiça e a uma suposta inferioridade biológica e cultural. Em última instância eram empecilhos para o desenvolvimento e para o progresso nacional.
Uma nova postura pedagógica para o ensino de História faz-se preciso para romper com os estigmas que se atribuem e com os preconceitos de que são vitimados esses grupos. O ensino de História pode trabalhar com uma noção de História que reconheça a importância e a presença desses grupos na contemporaneidade nacional. No caso dos grupos indígenas, Berta Ribeiro afirma que são povos detentores de saberes milenares que podem contribuir para a reflexão sobre o mundo moderno e suas consequências para a humanidade. O ensino de História pode ainda, conforme Bandeira, contribuir para a constatação da existência atual de índios de carne e osso, não mais idealizados e presos ao passado. O caminho é rever os nossos conhecimentos, perceber as deficiências de nossa formação e buscar novas formas e fontes de saber.
O professor de História deve, então, buscar novos subsídios e recursos pedagógicos que qualifiquem sua atuação em sala de aula. De acordo com Rosa Helena Silva, através de informações amplas e corretas sobre os diferentes povos e culturas que contribuem para a formação da sociedade brasileira, os alunos poderão entender a importância da diversidade cultural e formar uma postura de cidadania, onde a pluralidade é um valor (o que, aliás, vai de encontro com os Parâmetros Curriculares Nacionais). Com certeza esse processo contribuirá para a formação de uma sociedade que supere os preconceitos, estigmas sociais e discriminações.
Dia do Índio – alunos do Colégio Gomes Carneiro
– Xaxim-SC, década de 1960. Acervo da EEB
Gomes Carneiro 
Entretanto, a efetivação da Lei 11.645/08, tanto na rede pública como privada tem esbarrado em alguns limites profundos. Conforme afirma Selva Fonseca as razões e problemas são múltiplos, mas podem ser sintetizados nas deficiências da formação dos professores de História e na dificuldade de obtenção de materiais didáticos que contemplem as temáticas citadas acima, além da falta de vontade política no sentido de fazer cumprir-se essa exigência legal. Até 2008 eram raros os cursos de licenciatura em História que possuíam no currículo disciplinas que tratassem da História da África e dos povos indígenas. Essa situação exige, por parte do poder público e das universidades, o oferecimento de cursos de formação continuada para os professores de História, Artes e Literatura Brasileira, além, é claro, de uma revisão nos currículos das licenciaturas atuais. A ausência de uma política de formação continuada de professores compromete a boa vontade dos próprios educadores que se mostram engajados com as mudanças propostas pela legislação e concomitantemente mantém a reprodução de preconceitos e estigmas com afro-brasileiros e indígenas.
 A viabilização do ensino de História e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas brasileiras de nível básico, conforme determina a Lei 11.645/08, é um esforço de reconhecimento e valorização da diversidade cultural, é também uma maneira de realizar o diálogo da cultura desses povos preteridos com a cultura nacional até então oficial. As ações da referida lei podem provocar o debate sobre a necessidade da revisão da História do Brasil (que, a propósito, já vem sendo realizada pela historiografia brasileira, mas não encontra eco na sala de aula), eliminando estigmatizações e equívocos historicamente produzidos. Infelizmente fez-se necessária uma determinação legal (além da Constituição que já determinava isso pelo parágrafo primeiro do artigo 242) para que esses grupos humanos fossem compreendidos como sujeitos históricos participantes da construção do Brasil. Fazer com que as determinações da Lei 11.645/08 não se tornem letra morta é condição precípua para a construção de uma sociedade que supere a mera “tolerância” cultural e compreenda a pluralidade como um valor diferencial e positivador da brasilidade, em seus múltiplos sentidos e manifestações.

Bruno Antonio Picoli – GEDIS

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Referências

BRITO, Edson Machado de. O ensino de História como lugar privilegiado para o estabelecimento de um novo diálogo com a cultura indígena nas escolas brasileiras de nível básico. Fronteiras. v. 11, n. 20, jul/dez de 2009.
FONSECA, Selva. A História na Educação Básica: conteúdos, abordagens e metodologias. Anais do I Seminário Internacional: Currículo em Movimento – perspectivas atuais. Belo Horizonte, novembro de 2010.
RIBEIRO, Berta. A contribuição dos povos indígenas à cultura brasileira. In: SILVA, Aracy; GRUPIONI, Luís. A temática indígena na sala de aula: novos subsídios para professores de primeiro e segundo graus. Brasília: MEC; MARI; Global, 1995.
SILVA, Aracy; GRUPIONI, Luís. Introdução: educação e diversidade. In: A temática indígena na sala de aula: novos subsídios para professores de primeiro e segundo graus. Brasília: MEC; MARI; Global, 1995. 
SILVA, Rosa Helena da. Povos indígenas, Estado Nacional e relações de autonomia: o que a escola tem com isso? In: MATO GROSSO (estado). Urucum, jenipapo e giz: a educação escolar indígena e m debate. Cuiabá: Entrelinhas, 1997.

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