Os
integrantes da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados
consideraram constitucional o projeto de lei que permite ao Congresso Nacional
cassar decisões do Judiciário. O projeto impressiona por não ser de autoria do
deputado Tiririca (este talvez tenha ouvido falar das idéias defendidas por
Montesquieu sobre separação dos Poderes!).
Admita a
descabida pretensão, o Poder Legislativo teria as funções de legislar e de
fiscalizar a atividade judicial. Com isso, elaboraria leis, estas poderiam ter
sua constitucionalidade examinada pelo Judiciário e, pasmem, o Legislativo
poderia fiscalizar a fiscalização! Ou seja, ele próprio se fiscalizaria, o que
representa um sério abalo ao princípio de freios e contrapesos, desenvolvido
exatamente com o intuito de evitar o acúmulo de poder ou as sobreposições
deste.
A idéia
representa, dessa forma, um controle do controle de constitucionalidade a ser
realizado pelo controlado!
As escusas
para este despautério vêm da chamada “crise institucional do Judiciário”. É
inegável que este Poder necessita rever algumas de suas posturas, sendo irrefutável
sua ineficácia estrutural para tratar de temas que transcendem os conflitos
individuais. Nesse âmbito, contudo, os congressistas não possuem sugestões a
dar (nem mesmo o Tiririca). Quem apóia a iniciativa são os descontentes com o
STF - ou com o Judiciário de um modo geral - em relação à repressão das
pretensões eleitorais de políticos corruptos ou com decisões que vão de
encontro a preceitos religiosos (defendidos por bancadas crentes, não apenas
evangélicos, mas também católicos carismáticos).
Em nome de
combater a ditadura do Judiciário os protagonistas da proposta pretendem
instituir a ditadura do Legislativo. Cumpre indagar, nesse contexto, porque as
propostas que defendem o controle popular de toda a atividade estatal, inclusive
do Judiciário e o Legislativo, não ganham corpo.
O Legislativo
se autoproclama mais democrático em razão do sistema de escolha de seus membros
(eleições). Entretanto, é sabido que um de seus graves problemas é exatamente o
déficit de representatividade!
E o Supremo excede
seus limites constitucionais? Passou a legislar?
Mesmo que
isso tenha acontecido, o Legislativo - se eficiente fosse - teria como combater
o excesso. O Judiciário trata da interpretação da lei. Logo, se o Legislativo
entende que há abuso, pode mudar a lei de forma a não deixar margem para a
interpretação, como no caso da verticalização das candidaturas (em 2002). Naquela
ocasião, o Judiciário interpretou o artigo 146 da Constituição entendendo que
os partidos que coligassem na esfera federal deveriam coligar nas instâncias
inferiores. Não concordando com os rumos do processo eleitoral decorrentes
deste posicionamento, o Legislativo reformou a Constituição por meio de Emenda,
inserindo texto que expressava literalmente a possibilidade de coligações
diferentes em todos os níveis da Federação.
O
Legislativo, exceto na hipótese de cláusula pétrea, pode sempre que discordar
de uma interpretação dada a uma lei, modificá-la. Tal modo de proceder
resguarda a independência, a autonomia e a harmonia do Poderes, dependendo,
todavia, da eficiência do processo Legislativo: se ele não consegue agir com a
rapidez e coesão que lhe garantam a eficiência não pode culpar o Judiciário por
isso.
Ademais, Judiciário
e Legislativo padecem de males comuns: vinculação elitista, prática
patrimonialista e cultura conservadora e pouco republicana que não reflete os
anseios populares. Por isso, o Legislativo não irá redimir o Judiciário. Vai pervertê-lo
ainda mais!
Aliás, nesta
concorrência para verificar qual dos Poderes é mais democrático, cai bem
lembrar Capelletti:
“Certamente, também os juízes podem se transformar
em burocratas distantes e isolados do seu tempo e da sociedade, mas quando isto
ocorre, um sadio sistema democrático tem a capacidade de intervir e corrigir a
situação patológica, mediante instrumentos de controles recíprocos. Em
particular, a norma inaceitável, judicialmente criada, pode ser corrigida ou
ab-rogada mediante um ato legislativo e, no limite, até por meio de uma revisão
constitucional. De outra face, exatamente na natureza do processo jurisdicional
é que os juízes podem encontrar o antídoto mais formidável contra o perigo de
perderem contato com a comunidade. Também quando chamados a decidir disputas de
amplo significado político-social - como ocorre amiúde especialmente no campo
da justiça constitucional e nos litígios envolvendo categorias de pessoas e
interesses públicos-, a sua função, enquanto não degenere, permanece sempre a
de decidir cases and controversies, portanto controvérsias não abstratas mas
que lhes são levadas por membros interessados da comunidade, ou por alguns
destes. Lembro, mais uma vez, as regras fundamentais de antiga sapiência, que
imprimem ao processo judiciário a sua natureza única; a regra segundo a qual a
função jurisdicional não pode ser exercida senão a pedido da parte, e aquela,
segundo a qual o juiz não pode ficar sujeito a pressões parcializadas e deve
garantir o contraditório das partes”.
Montesquieu defendeu
a divisão das funções estatais entre Poderes autônomos, justamente para evitar
os malefícios da concentração. A divisão é a melhor forma de prevenção contra
abusos, consubstanciada na máxima “o poder corrompe e o poder absoluto corrompe
absolutamente”.
Samuel Mânica
Radaelli - GEDIS