terça-feira, 22 de maio de 2012

Para quem não leu Montesquieu...


Os integrantes da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados consideraram constitucional o projeto de lei que permite ao Congresso Nacional cassar decisões do Judiciário. O projeto impressiona por não ser de autoria do deputado Tiririca (este talvez tenha ouvido falar das idéias defendidas por Montesquieu sobre separação dos Poderes!).
Admita a descabida pretensão, o Poder Legislativo teria as funções de legislar e de fiscalizar a atividade judicial. Com isso, elaboraria leis, estas poderiam ter sua constitucionalidade examinada pelo Judiciário e, pasmem, o Legislativo poderia fiscalizar a fiscalização! Ou seja, ele próprio se fiscalizaria, o que representa um sério abalo ao princípio de freios e contrapesos, desenvolvido exatamente com o intuito de evitar o acúmulo de poder ou as sobreposições deste.
A idéia representa, dessa forma, um controle do controle de constitucionalidade a ser realizado pelo controlado!
As escusas para este despautério vêm da chamada “crise institucional do Judiciário”. É inegável que este Poder necessita rever algumas de suas posturas, sendo irrefutável sua ineficácia estrutural para tratar de temas que transcendem os conflitos individuais. Nesse âmbito, contudo, os congressistas não possuem sugestões a dar (nem mesmo o Tiririca). Quem apóia a iniciativa são os descontentes com o STF - ou com o Judiciário de um modo geral - em relação à repressão das pretensões eleitorais de políticos corruptos ou com decisões que vão de encontro a preceitos religiosos (defendidos por bancadas crentes, não apenas evangélicos, mas também católicos carismáticos).
Em nome de combater a ditadura do Judiciário os protagonistas da proposta pretendem instituir a ditadura do Legislativo. Cumpre indagar, nesse contexto, porque as propostas que defendem o controle popular de toda a atividade estatal, inclusive do Judiciário e o Legislativo, não ganham corpo.
O Legislativo se autoproclama mais democrático em razão do sistema de escolha de seus membros (eleições). Entretanto, é sabido que um de seus graves problemas é exatamente o déficit de representatividade!
E o Supremo excede seus limites constitucionais? Passou a legislar?
Mesmo que isso tenha acontecido, o Legislativo - se eficiente fosse - teria como combater o excesso. O Judiciário trata da interpretação da lei. Logo, se o Legislativo entende que há abuso, pode mudar a lei de forma a não deixar margem para a interpretação, como no caso da verticalização das candidaturas (em 2002). Naquela ocasião, o Judiciário interpretou o artigo 146 da Constituição entendendo que os partidos que coligassem na esfera federal deveriam coligar nas instâncias inferiores. Não concordando com os rumos do processo eleitoral decorrentes deste posicionamento, o Legislativo reformou a Constituição por meio de Emenda, inserindo texto que expressava literalmente a possibilidade de coligações diferentes em todos os níveis da Federação.
O Legislativo, exceto na hipótese de cláusula pétrea, pode sempre que discordar de uma interpretação dada a uma lei, modificá-la. Tal modo de proceder resguarda a independência, a autonomia e a harmonia do Poderes, dependendo, todavia, da eficiência do processo Legislativo: se ele não consegue agir com a rapidez e coesão que lhe garantam a eficiência não pode culpar o Judiciário por isso.
Ademais, Judiciário e Legislativo padecem de males comuns: vinculação elitista, prática patrimonialista e cultura conservadora e pouco republicana que não reflete os anseios populares. Por isso, o Legislativo não irá redimir o Judiciário. Vai pervertê-lo ainda mais!
Aliás, nesta concorrência para verificar qual dos Poderes é mais democrático, cai bem lembrar Capelletti:

“Certamente, também os juízes podem se transformar em burocratas distantes e isolados do seu tempo e da sociedade, mas quando isto ocorre, um sadio sistema democrático tem a capacidade de intervir e corrigir a situação patológica, mediante instrumentos de controles recíprocos. Em particular, a norma inaceitável, judicialmente criada, pode ser corrigida ou ab-rogada mediante um ato legislativo e, no limite, até por meio de uma revisão constitucional. De outra face, exatamente na natureza do processo jurisdicional é que os juízes podem encontrar o antídoto mais formidável contra o perigo de perderem contato com a comunidade. Também quando chamados a decidir disputas de amplo significado político-social - como ocorre amiúde especialmente no campo da justiça constitucional e nos litígios envolvendo categorias de pessoas e interesses públicos-, a sua função, enquanto não degenere, permanece sempre a de decidir cases and controversies, portanto controvérsias não abstratas mas que lhes são levadas por membros interessados da comunidade, ou por alguns destes. Lembro, mais uma vez, as regras fundamentais de antiga sapiência, que imprimem ao processo judiciário a sua natureza única; a regra segundo a qual a função jurisdicional não pode ser exercida senão a pedido da parte, e aquela, segundo a qual o juiz não pode ficar sujeito a pressões parcializadas e deve garantir o contraditório das partes”.

Montesquieu defendeu a divisão das funções estatais entre Poderes autônomos, justamente para evitar os malefícios da concentração. A divisão é a melhor forma de prevenção contra abusos, consubstanciada na máxima “o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente”.

Samuel Mânica Radaelli - GEDIS

Um comentário:

  1. Tem uma questão que me resta nubiloso quanto ao mote. O ilustre professor Samuel citou Capeletti, in verbis "Em particular, a norma inaceitável, judicialmente criada, pode ser corrigida ou ab-rogada mediante um ato legislativo e, no limite, até por meio de uma revisão constitucional." - Não seria justamente esta a proposta da nova lei? Não será um ato do legislativo? Qual vai ser o procedimento adotado pelo legislativo, o mesmo de um projeto de lei? Me parece que o texto entrou em loop!

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