O GEDIS preza pela pluralidade do
pensamento. Nesse sentido, dentre as várias questões discutidas entre os
membros do grupo, algumas não se batem por uma opinião unívoca. A divergência
é natural e estimulante, quando tratada com respeito.
Separamos
dois textos elaborados por membros do GEDIS acerca de um assunto polêmico: o
corte no fornecimento de energia elétrica e água àqueles que residem em
loteamentos/construções irregularidades perante a administração municipal e
às normas de direito urbanístico. Há divergência entre eles. Decidimos expor
ambas as opiniões àqueles que acompanham o trabalho do GEDIS, para fomentar o
debate e incentivar a todos à exposição de seus pensamentos.
É um espaço
livre. Posicione-se, exponha sua opinião ou, então, aprecie a diferença.
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Luz para a
Clandestinidade
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Por que
fornecer luz e água a moradias juridicamente irregulares
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Às vezes temos
pontos de vista diferentes sobre alguns assuntos no GEDIS e achamos isso
salutar. A unanimidade é pobre porque não fomenta o pensar além da opinião
previamente formada. Assim fomos instigados dentro do grupo a travar uma
discussão sobre direitos básicos e clandestinidade. Talvez seja um dos
assuntos mais difíceis para um urbanista escrever: falar da cidade
clandestina que existe dentro da cidade legal na maioria dos municípios do
Brasil, e mais difícil/comovente, cidade clandestina onde moram famílias, com
seus filhos pequenos, seus pais idosos e pessoas doentes.
Mesmo os tecnocratas, que não têm grande
sensibilidade, devem questionar-se: com que justificativa negar direito a luz
e água para alguém que tem tanto direito quanto eu e você as mínimas
condições de vida?
Para iniciar é
preciso aprofundar-se e entender a perversidade do sistema. Sou contra o mecanismo
que alimenta a clandestinidade. Em todas as campanhas políticas presencia-se,
e de muito perto, o dinheiro público que desaparece sem deixar vestígios, contudo
deixam obras públicas mal feitas, áreas para habitação não compradas,
crianças que vão à escola e não aprendem, pessoas cada vez mais doentes (emocionalmente)
mendigando atendimento nas filas do sistema de saúde, etc. Deixam também caixa-dois
e mensalão sendo publicizados aos extremos, como se fosse raridade e nunca houvesse
acontecido e pessoas trocando voto por cinquenta reais. Um sistema falido, uma
parcela da população sem perspectiva à curto prazo e poucos tentando fazer
algo para mudar este cenário, porque o sistema é contaminante e diz que para ele
(e os que se beneficiam dele) sobreviver deve continuar assim.
Loteamentos
clandestinos e favelas como Cidade de Deus (Rio de Janeiro), Santa Cruz (Xanxerê),
Morro do Bumba (Niterói) surgiram porque o sistema alimenta-se desse caos e,
enquanto desvia dinheiro público, permite que a clandestinidade ganhe o
mínimo (acesso à luz e água) para não perturbar em demasia. Quando o morro
despenca, a várzea alaga, a ambulância e a segurança não chegam, não comove o
sistema que alimenta a clandestinidade, porque os votos continuarão lá, mesmo
que morram alguns. Para eles, pobres são como ratos: por mais que alguns
morram, sempre haverão outros, pesteados e famintos. Poucos se dão conta que
estes inocentes morrem ou tem uma vida miserável devido à corrupção
existente, e é mais fácil abrandar/acalmar a opinião pública permitindo
acesso à luz e água para os miseráveis em locais impróprios do que perder as
vantagens que o dinheiro desviado, que poderia ser destinado para habitação,
propicia à parcela que se beneficia desse. É mais fácil colocar a culpa na
promotoria, que exige garantias mínimas e cumprimento da lei para população,
do que punir os dirigentes do sistema, que não garantem o mínimo constante na
constituição, como moradia digna.
Se ninguém reclama
ou cobra é mais fácil deixar tudo como está, porque quem mais se beneficia do
sistema continua morando no seu apartamento de luxo, com luz, água, carro
importado na garagem e, se for deputado (com salário que ultrapassa 20 mil
reais[1]),
ainda recebe auxilio moradia (de 4 mil reais[2]).
De
acordo com o levantamento do IBGE (2008), o percentual de municípios que
relataram existência de favelas passa de 27,7% naqueles com até 50 mil
habitantes, para 70,8% dos 319 que têm entre 50 mil e 100 mil habitantes,
chegando a 84,7% dos 229 municípios que têm entre 100 e 500 mil habitantes. Aproximadamente
46% das prefeituras declararam a existência, em seus municípios, de
loteamentos irregulares cadastrados totalizando 63 mil oficialmente
levantados em todo país. Somente em Xanxerê há mais de vinte loteamentos irregulares
e mais de 600 domicílios não regularizados sobre áreas públicas, sem direito
a obter financiamento, sendo muitos sub-habitações (casebres).
Para
diminuir os parcelamentos irregulares, que, na maioria dos casos, não
proporcionam qualidade de vida e em outros coloca a vida da população em
risco, é um dos casos onde o poder público poderia intervir facilmente – quando
a área ainda conta com poucas edificações e propuser ao proprietário uma
operação urbana consorciada ou iniciativa público-privada. A municipalidade,
auxiliando na elaboração dos projetos, execução da infraestrutura, com
terraplenagem, abertura de valas para tubulação, poderia, em troca, ficar com
terrenos para serem utilizado para implantação de habitação de interesse
social. Caso não se concretize o
aceite do proprietário, o Ministério Público deve ser cientificado para
intervir e notificar o parcelamento clandestino. Após a ocupação, as
operações público-privadas tornam-se mais difíceis, pois a moeda de troca,
que seria a terra, já foi ocupada. Mas o sistema prefere beneficiar e fechar
os olhos para o loteador clandestino e permitir que os moradores tenham
acesso à luz e água.
Em alguns
municípios catarinenses, após o aumento de ocorrências de desastres e
emergências, que vitimaram dezenas de pessoas, o Ministério Público proibiu a
ligação de água e energia pelas respectivas concessionárias das moradias sem
o alvará de construção/regularização das edificações e certidão do imóvel em
nome do proprietário. Essa parceria busca coibir os loteamentos clandestinos,
já que, para aprovar o projeto, o morador precisa ter a certidão do imóvel em
seu nome. A legislação municipal também precisa ser eficiente, determinando o
número máximo de edificações sobre áreas não loteadas, sem necessidade de
constituição de condomínio, para que não incentive loteamentos clandestinos
por omissão.
Constata-se
que o papel social da propriedade e principalmente da cidade não vem sendo
cumprido em nosso município. O Estatuto da Cidade (lei 10257/2001) prevê
alguns instrumentos como IPTU progressivo que poderiam diminui a segregação,
aumentar a mobilidade e evitar desastres, mas é mais fácil deixar tudo como
esta, desviar muito dinheiro e na véspera das campanhas comprarem os votos
com dinheiro público de caixa dois[3].
A cultura da sociedade
brasileira também contribui para a perpetuação dos desastres anunciados
devido à falta de responsabilização dos técnicos e gestores públicos pelos
desastres construídos ou incentivados. Exemplificando o exposto, o desastre
do Morro do Bumba no município de Niterói (RJ), ocorrido em 2010, matou
dezenas de pessoas; mesmo tendo elas sido incentivadas a permanecer no local
com as melhorias de infraestrutura oferecidas, não foi questionada a
inexistência de documentos de responsabilidade técnica para pavimentar as
ruas e construir equipamentos públicos num loteamento irregular. Não
existindo documentos de responsabilidade técnica, os dirigentes públicos
deveriam ser responsabilizados pelo CREA (Conselho Regional de Engenharia e
Agronomia) ou pelo CAU (Conselho de Arquitetura e Urbanismo) por executarem
obras sem a documentação mínima necessária para uma obra legal. Mas, como as
vítimas são anônimas (pobres desconhecidos), os Conselhos Técnicos, o
Ministério Público e a população em geral aceitam passivamente o desastre
como fatalidade.
Desejo luz, água e casas
com o mínimo de dignidade e legalizada para todos. Todos têm direito a
legalidade e para isso é preciso enfrentar o sistema. Quem tem casa sem luz e
água irá bater nas portas da Prefeitura todos os dias, só assim dar-se-ão
conta que para ter mais sossego é melhor para
todos que o sistema mude.
Rosângela Favero - GEDIS
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Evidente
que luz, água e moradia são elementos básicos para uma vida digna. Também
sabemos que a dignidade da pessoa humana é princípio jurídico declarado
expressamente pela Constituição Brasileira de 1988. Habitação, além do mais,
é direito social, exigindo uma postura ativa do Estado no sentido de garantir
a todos a efetividade de tal direito. Luz e água são consequências diretas do
direito à habitação; devem ser tratados, juridicamente, da mesma maneira. São
lições básicas de conhecimento difuso, até mesmo fora do âmbito dos
profissionais/acadêmicos do direito. Diante disso, discute-se acerca da forma
como o Estado deve lidar com essas obrigações, tendo em vista seu dever em
realizar a todos tais previsões legais.
Em
Xanxerê, instaura-se uma controvérsia: as concessionárias de água e energia
elétrica, sob o aval da Promotoria Pública e a proteção do Poder Judiciário,
estão cortando o abastecimento em relação aos moradores de loteamentos
irregulares e àqueles que não possuem sua residência regularizada nos órgãos
públicos (Alvará de Construção, Habite-se, etc.). É necessário atenção para
vermos os reais motores de tais condutas, para após observarmos sua adequação
jurídica.
Em
geral, a história das ocupações urbanas se inicia com a inércia do Poder
Público em fiscalizar as construções que vêm surgindo. A ausência dessa fiscalização,
na maioria dos casos, tem uma razão política: a população que ocupa áreas
irregulares possui, de regra, baixa instrução e, por serem socialmente
vulneráveis e não verem sentido no regime político que se instaura – pois,
mandato vai mandato vem, sua situação concreta como classe substancialmente
não se altera –, aparecem como excelentes cabos eleitorais e uma abundante
fonte de “votos fáceis”.
Pontuado
isso, é necessário observar outra dimensão da questão: a população alvo das
medidas em foco neste texto é de baixíssima renda, em sua ampla maioria. Se
sequer possuem renda para adquirir uma habitação digna, quando se dispuseram
a pagar os (proporcionalmente) altos valores tributários que recaem sobre a
concessão de um alvará de construção e um habite-se, além dos custos com
projetos e o custeio de um profissional legalmente habilitado para a
execução? É claro que tensionarão ao máximo para evitar tais submissões
legais, posto que dispender valores a título de despesas
administrativo-burocráticas pode ser o sacrifício da alimentação, do
vestuário, em suma, da dignidade mínima do mês.
Tecnicamente,
quando o exercício de um direito fundamental pede o sacrifício de outro, o
raciocínio jurídico que se exige do jurista é a ponderação: diante do caso concreto,
levantam-se suas peculiaridades e os bens jurídicos protegidos, sopesando
quais são mais importantes e merecem maior proteção. É diante de um caso
assim que estamos: o descumprimento das normas de urbanização pelas pessoas
que se instalam irregularmente se dá pela sua vulnerabilidade social, pela
impossibilidade de adquirirem um imóvel/habitação regular, e não por uma
simples afronta ou descaso com os preceitos legais.
Não dá para voltar
as costas a problemas sociais como o desemprego, a baixa qualidade do ensino
público e a precarização do empregado, que são, entre outros, os motores de
tais condutas. Se o sujeito tiver de escolher entre um prato de comida e o
pagamento das despesas administrativas para a realização de um direito que já
é seu (habitação), creio que não haverá séria discordância acerca da escolha
que provavelmente será adotada. É diferente do grande empresário que sonega
impostos, por exemplo, onde o ato ilegal está movido por outros fatores que
não a realização de direitos de dignidade básicos, visto que já usufrui dessas
prerrogativas; não praticar tal ilegalidade não fará com que deixe de contar
com o mínimo exigível para o exercício de sua dignidade individual.
Assim, uma ocupação
irregular não se resume a um problema urbanístico de organização espacial da
área urbana: ela revela um direito social que não foi devidamente efetivado
pelo Estado, que é o direito à habitação digna. Assim, quando afirmamos que
um erro não justifica o outro, é possível aplicar, inversamente, o mesmo
raciocínio: a falha do Estado quanto à garantia de um direito social não
justifica o tolhimento de outro direito social (abastecimento de água e luz).
Questão que corriqueiramente
se levanta é o fato de que a agitação social ocasionada com tal corte no
abastecimento de água e energia elétrica seria uma motivação ao Poder Público
para que regularizasse a situação dessas pessoas e providenciasse efetivas
medidas de urbanização que liquidassem o problema da desorganização do espaço
urbano. Ora, aceitar tão facilmente a negativa de um direito social básico
desse porte é tão ilógico quanto mandar fechar as escolas privadas para fazer
com que os pais dos alunos pressionem o Poder Público para melhorar a
qualidade das escolas públicas. É como matar os presos para pressionar os
“bandidos” a pararem de cometer crimes. Direitos humanos não são bens
banalmente negociáveis, não são elementos “em perspectiva”: devem ser
realizados todos, hoje.
Uma urbanização
deficiente é também um problema social, que causa desastres, mata pessoas e
acarreta sérios prejuízos sociais, que são partilhados entre todos. Acredito,
porém, que cessar o abastecimento de água e luz não fará muito para resolver
o problema, tendo em vista que as pessoas alvo dessas medidas não possuem
força econômica ou política para ou adquirir um imóvel habitacional regular
ou pressionar o Poder Público para que garanta a eles tal direito social.
Isso porque, como já vimos, a situação de vulnerabilidade social, baixa renda
e baixo nível de instrução faz com que tais pessoas se movimentem,
politicamente, como “massas amorfas”, em geral sem poder para, em grupo, exigir
mudanças urbanísticas a longo prazo, visto possuírem necessidades individuais
mais urgentes a serem sanadas hoje (alimentação, saúde, transporte etc.).
O resultado prático dessas medidas
será um acréscimo na arrecadação do Poder Público, em relação àqueles que
podem pagar os tributos e regularizar a situação de sua casa, e uma maior
insegurança sentida por aqueles que não possuem renda sequer para adquirir
uma casa juridicamente regular. Continuarão eles sendo movimentados, de um
lado para o outro, elementos necessários, mas “indesejáveis” para o sistema.
Se a decisão em questão quer ser um desincentivo ao descumprimento das leis,
vê-se que não atinge sequer os principais culpados por tal situação:
jurídico-positivamente, o Estado; materialmente, as amarras políticas e
econômicas que impedem sua atuação no sentido de realização integral dos
direitos sociais. A corda sempre estoura no lado mais fraco.
Luís Henrique Kohl Camargo –
GEDIS
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[1]
oas.com.br/noticia/1655/politica/2012/04/12/maioria-dos-deputados-estaduais-ganha-15-salarios.html
[2]http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2012/12/alesc-aprova-aumento-de-79-no-auxilio-moradia-dos-deputados-de-sc.html
[3]http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI975955-EI6578,00.html . Senador pelo PSDB (AM) Arthur
Virgílio afirma: caixa dois é prática corriqueira no país e tem que ser banida.
Ambos posicionamentos não são extremistas, visam a garantia dos direitos pra uma vida digna. De alguma forma devemos sim fazer com que o sistema administrativo desenvolva seu papel, admiro a preocupação e sim devemos tomar atitudes diante nossa administração, atitude que garanta no mínimo respeito aos direitos determinantes de uma vida digna.
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