terça-feira, 23 de junho de 2015

De volta para o passado (infelizmente não é ficção científica)

Na última segunda-feira, dia 22 de junho, na Câmara de Vereadores de Xaxim, ocorreu o debate sobre o Plano Municipal de Educação (PME). Elaborado pelos professores, calcado na realidade de suas escolas e atento às demandas do tempo presente, o plano proposto previa a valorização dos professores, a melhoria das condições de trabalho e a sua formação continuada. No que diz respeito à melhoria das condições de trabalho, o plano propunha que, ao final de sua vigência, os professores teriam ampliado seu tempo para planejamento, estudo direcionado, formação, correção de atividades e orientação com estudantes, que hoje compreende 1/3, para 1/2 da carga horária (hora relógio e não hora aula). Houve vereadores que entenderam impossível essa modificação, embora ressaltaram suas preocupações com a qualidade das condições de trabalho e do ensino (um deles professor, que afirmou que para ele 8 horas/atividade estava de bom tamanho). Hipocrisia pouca é bobagem por aqui!

No âmbito da formação continuada para os professores um dos tópicos gerou um debate intenso, embora alicerçado sobre os pilares do senso comum, do preconceito e da ignorância. Na meta 15, que compreendia as políticas para a formação docente em nível stricto sensus (mestrado e doutorado), havia a indicação de políticas para a promoção de cursos que discutissem direitos humanos, identidade de gênero, orientação sexual etc. Não diferente do que ocorre hoje em todo o país, brados se levantaram contra a questão de gênero. Que fique claro que o debate é importante, e, se a partir de argumentos racionais se concluísse que os estudos de gênero não deveriam ser inseridos no plano, este texto não teria razão de existir. Ao contrário, o debate foi travado no grito (que interrompia o interlocutor), com argumentos intelectualmente desonestos, baseados em fontes não ditas e na opinião (pifiamente fundamentada no senso comum). Posso afirmar com certeza que os vereadores que argumentaram contra os estudos de gênero não conhecem uma produção sequer dos inúmeros grupos de pesquisa e estudos de gênero no Brasil (alguns dos quais mantidos por universidades católicas). Ficaram (deliberadamente) à margem desse campo que já alcança meio século de produção acadêmica reconhecida no mundo todo. Se a conhecem, não a utilizaram em suas ponderações.

O proponente da retirada dos termos justificou-se pela suposta inconstitucionalidade desse tema no PME, já que o Plano Nacional de Educação (PNE) o havia retirado. Contudo, o mesmo comete um erro primário em confundir uma Lei (PNE – Lei 13.005/14) com a Constituição Federal de 1988 (CF). O seu argumento (defendido por parte dos que se encontravam no local) é derrubado pelo Inciso IV do Artigo 3º da CF, que trata dos objetivos da República, onde lê-se “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Embora o PNE tenha sido mutilado, a CF autoriza que discussões sobre preconceito sexual sejam empreendidas nos estados e municípios.

Não faltaram argumentos afirmando que a intenção, ao inserir os estudos de gênero (errônea, embora deliberadamente, chamados de ideologia de gênero) é dar ao professor e à professora a prerrogativa de dizer que o estudante pode escolher e experimentar diferentes formas de sexualidade, e que é bom fazer isso. Quando – quem conhece minimamente o campo o sabe – os estudos de gênero possuem como um de seus objetivos impedir que a escola faça isso, problematizando justamente como esses papéis são construídos histórica e socialmente. Insistiam, independente das produções e argumentos em contrário, em confundir de forma ignóbil identidade de sexo (biológico) e identidade de gênero (histórico-social). Houve associação entre homossexualidade e pedofilia, embora isso tenha surgido do público e não dos vereadores (contudo houve aqueles que parabenizaram pela “problematização”).

A cereja do bolo, entretanto, foi a afirmação de um vereador, corroborada por outros, de que a escola precisa manter o ensino “normal” e que quando aparecer um “problema de gênero” (homossexualidade era o foco do deplorável comentário) a escola deveria encaminhar para um psicólogo. Para o vereador, homossexualidade é doença. É evidente, que o eminente vereador não faz a menor ideia do entendimento no campo da psicologia sobre o assunto. Poderia evitar a besteira dita se minimamente cumprisse sua função de legislador e conhecesse a Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 001/99 que, em seu artigo 3º afirma que “os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados”.

Pedi a palavra e usei a tribuna. Busquei apresentar um quadro geral da violência contra a mulher, com base em dados da OMS (Estudo multipaíses sobre saúde da mulher e violência doméstica contra a mulher - 2012) e do IPEA (Pesquisa Avaliando a Efetividade da Lei Maria da Penha - 2015). Busquei dissociar o entendimento de que os estudos de gênero buscam promover a orientação sexual, mas tão só promover a igualdade e o respeito para com aquele que não vive do mesmo modo que o “meu”. Defendi a legitimidade da família e da religião em orientar as escolhas do indivíduo. Defendi que isso não se aplica à escola, espaço republicano e que, portanto, deveria ser orientada pelo princípio da laicidade. Enfatizei que laicidade não significa abolir a religião, mas tão só não tomá-la como referência no trato da coisa pública. Apresentei o entendimento acadêmico – com base em autores que há muito discutem gênero (especialmente a professora Joana Pedro) – sobre o conceito de gênero e identidade de gênero. Fui inúmeras vezes interrompido e chamado de canalha e depravado por membros de igrejas neopentecostais. Todas as vezes que fui interrompido permiti que meu interlocutor falasse. O que sempre ouvi foram xingamentos e afirmações levianas de que pretendo “acabar com a família”. Duas vozes dissonantes entre os religiosos que se faziam presentes. Destaco a fala do Pastor Osvaldo, pela sua dignidade e clareza, sobretudo no que diz respeito à separação entre Estado e religião. Além dele um jovem, evangélico, após o fim dos trabalhos veio até mim para pedir desculpas pelas ofensas de seus irmãos e que nem todos os evangélicos pensam daquela forma. Concordo com ele.

Após minha curta fala retornamos à bestialidade. Novas associações entre homossexualidade e pedofilia, entre homossexualidade e doença psíquica, e sobre a “inconstitucionalidade” do plano se mantida a meta 15 sem alterações. Cabe ressaltar que todos os vereadores são homens (a única vereadora do município está licenciada). E é evidente que isso não é uma questão cultural de gênero! Pelo menos no mundo em que eles vivem.

Infelizmente o entendimento da maioria dos vereadores vai ao encontro dos vereadores da maioria dos municípios brasileiros. Os bons homens não estão preocupados com a violência contra a mulher (física e simbólica), contra homossexuais e contra os que não se enquadram em sua visão estreita de mundo. Fazem coro ou silenciam frente aos que acusam os que ousam enfrentar o status quo do senso comum de canalhas e depravados. 

Pois bem, se fosse eu um canalha e depravado, defenderia a retirada urgente das discussões de gênero nos ambientes escolares e em todos os lugares públicos. Por quê? Oras, porque é muito mais fácil ser um canalha depravado quando as vítimas da violência são invisibilizadas e quando a escola é impedida de tornar-se o espaço onde podem tomar consciência de sua condição de vítima de uma sociedade misógina e homofóbica.

Com as alterações nos Planos Municipais de Educação, o Brasil ficou um país bem melhor. Para os canalhas depravados, claro!

Bruno Antonio Picoli - Gedis

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