segunda-feira, 27 de março de 2017

TEMPOS UIVANTES*

O tempo e o vento uivam
marcando nossas vidas.
Levam, trazem juventudes
e emplacam tirania.
Motivam más mudanças
e, sem temperanças,
nossas aposentadorias.

Desentendido de finanças
Desacreditado nestes tempos
por toda antidemocracia
se instalando em arrebentos
Mas, acredito em esperanças
em bem-aventuranças,
em novos argumentos.

Escrevendo nada com nada,
entrelaço a armação.
Sabendo que não se justifica
corrupção com sonegação.
Só não quero comer paçoquinha
e rapadura com farinha
em estado de exceção.

Fábio Soares – Professor e mestre em Comunicação.


 SEI LÁ!*

Sei lá. O tempo é uma dimensão difícil, tudo porque ele carrega embora a nossa juventude, derruba os nossos cabelos e agora levará a nossa aposentadoria, pois quando somado à tirania o estrago é grande. O tempo contado em semanas é legal, porque nas semanas há os finais de semana, e nos finais de semana eu não tenho que trabalhar. Ninguém deveria. Trabalhar nesse tempo é fazer muitas coisas que às vezes não entendemos. Por falar em não entender, eu não entendo nada de finanças. Sobre isso, eu só sei que tem a dívida pública da união; tem a dívida do município; e tem a certeza de que em nenhuma delas haverá auditoria. Tenho pensado em assistir alguma produção que não seja de terror ou algum documentário que não seja triste, porque aqueles da guerra civil na Síria são doídos demais, ainda mais quando as vítimas são as crianças pequeninas e nós temos que ficar na condição impotente de somente olhar a barbárie do outro lado da tela. Bashar al-Assad não é um sujeito bom. Nem o Temer é, porque impor reformas e ignorar a sociedade civil é ser antidemocrático. Eu tô pensando na democracia. Democracia está nos livros, está na constituição, está na periodicidade das eleições, mas ela, a democracia, está nas relações? Porque não é democrático fazer uma avaliação na escola e não haver, institucionalmente, possibilidade de recorrer à correção. Eu escrevo nada com nada mesmo. Eu gosto da escrita do Gabriel García Márquez. E gosto dele. Eu poderia gostar de muitas pessoas, mas nem sempre eu gosto. Quando a pessoa pensa muito em dinheiro eu não gosto. E também não gosto de quem sonega imposto argumentando que "lá em cima roubam tudo mesmo", até porque corrupção e sonegação são coisas parecidas. Falando em coisas parecidas, paçoquinha e rapadura são coisas parecidas para mim, porque ambas são doces e me dão vontade de tomar bastante água, só espero que amanhã ou depois não me digam que na rapadura e na paçoquinha acrescentaram substâncias maléficas, porque me sentirei desesperançado demais. Falando nisso, eu me lembrei dos casos em que o leite foi adulterado. É porque quando estoura o resultado das investigações somos bombardeados de noticiários relatando as acusações, mas depois, no tramitar dos processos judiciais, não voltamos a tomar conhecimento de nada, inclusive das decisões finais. Será que não é isso que produz em nossas cabeças a ideia de que nada dá em nada? Pensando.


André Detoni – graduando em Direito.

* Publicados na Coluna Pimenteiro na versão impressa do Diário Data X de 24 de março de 2017.
GOSTO SE DISCUTE!*

Nosso país é rico em diversidade artístico-cultural e a música popular brasileira, embora não seja tão apreciada por aqui, é reconhecida e valorizada em boa parte do mundo. No entanto, ao longo dos últimos anos, a interferência da indústria cultural e dos interesses da mídia vem fazendo com que a música, outrora consequência de expressão artística, se transforme num ‘produto’ descartável, desprovido de qualidade e que parece ter a clara função de contribuir para a imbecilidade e alienação social. Tornou-se comum rotular estilos e gêneros de uma forma que não condiz com suas características originais. Não é só sertanejo que não é sertanejo e funk que não é funk, mas também se costuma chamar de artista aquele que não é artista.
O artista se cria em meio à sensibilidade, estudo, dedicação e capacidade de compreender e se expressar através da arte. O fato de alguém subir num palco e apresentar alguma coisa não o faz artista. Ser adepto de tal ‘indústria’ e se despreocupar com o fazer artístico enquanto corre enlouquecidamente atrás do sucesso a qualquer custo, utilizando-se na maioria das vezes de recursos apelativos, que vão da imagem pessoal às letras paupérrimas e com refrãos monossilábicos que demonstram claramente a falta de criatividade do compositor, evidencia a real intenção de quem o ‘lançou’ ao mercado. Não me surpreende que esse tipo de música necessite de tantos artifícios para chegar até o público. Presumo que os próprios produtores reconhecem a baixa qualidade das músicas, por isso, tanto investimento extra para ‘estourar’. Incluo nesse contexto o famoso “jabá” que empurra “goela abaixo” do povo esse tipo de produção musical.
Insistir em viver de arte no Brasil não é tarefa fácil. Significa falta de lugares para se apresentar, falta de orçamento, exploração ‘recreativa’, uma vida financeiramente limitada, além do desdém de boa parte da sociedade que ainda associa o trabalho artístico à “vagabundagem”. É imprescindível filtrarmos o que entra em nossos ouvidos, deixarmos de ser passivos e garimparmos músicas ‘não midiáticas’ para apreciação. Há uma mina de ouro musical além da mídia, incluindo artistas do oeste catarinense. Saber que a maioria dos brasileiros não aprecia a música popular brasileira, negando sua própria cultura musical, demonstra o quanto carecemos mudar esse cenário e recuperarmos nossa identidade musical.               
        
Wagner Kinappe – Professor de arte e músico


MÚSICA LÍQUIDA*

Aqui, gosto se discute
e o que gostar, também.
A MPB que desvaloriza
e chega a sofrer desdém.
Enquanto a indústria cultural,
provocando alienação social
rotula o grande artista do bem.

Ser artista não é fácil
Estudo e dedicação é preciso
Compreender e se expressar,
De olho no fazer artístico.
Não precisa de “jabá”
mas, pra conseguir estourar,
enfrenta grande martírio.

O artista é um vagabundo
Muitos assim são ditos.
Enganados estes estão
Não controlam nem seus ouvidos
Escutam o que as mídias lhes dão
Passivos e em recreação
Todos os sons parecem-lhes líquidos.

Fabio Soares – Professor e mestre em Comunicação  

*Publicados na Coluna Pimenteiro na versão impressa do Diário Data X de 17 de março de 2017.
ATOS DE ELUCUBRAÇÃO: SOBRE DISSIDÊNCIAS DE ESCRITA*


ATO I
 Invadindo-me, te, se...
sempre encontro a evasão
nas palavras, letras e verdade
hipocrisia, mentira e encenação
à procura, da cura à enfermidade,
de escritas, gritos e profundidade
da vida à espera de um bordão.

Desatando esperas pra dizer
aquilo que palavras dizem em vão
a depender de boas ou más intensões
que fazem do texto bom ou “bão”
encarcerando-nos cada dia
como parte de uma abadia
ouvindo as vozes do caixão.

No ato II vejo e ouço
a abundância da perdição
palateando-me com Sabino,
divertindo-me em distração
alegrando-me com o bolo em fatia
E como a pimenta ardia!
Originalidade? Mera ilusão!

ATO III
Num Mundo de Medo e da Mulher
Descosturo o alinhavo da prisão
que fizeram do meu bolso amarrado
a propósito de silêncios em menção
a podar meu grito rouco
belo, indignado e sempre louco
esquecendo-se do papel na minha mão.

Papel, caneta e lápis deslizando
ou mesmo dedos frenéticos e um telão
instauram-me singela liberdade
da voz planando em devoção
um ato de descortinamento:
é o quarto em desenvolvimento
em busca de compreensão.

ATO V
O nó de escota é muito firme,
mas desata com intenção.
O importante é manter-se livre
independente de entender ou não.
Como o brincar de escrever
que liberta todo meu ser
e pode te libertar também, então?
Doce ou ardido. Escreva-te e sinta a liberdade de suportar a evasão.


Fábio Soares. Professor e Mestre em Comunicação.



SUPORTANDO A EVASÃO*


Escrevo...tento evadir-me em minhas próprias palavras! Mas, evadir-me pra quê?
Passo os olhos no teclado, tento achar a letra inspiradora que se juntará a outras e...ei-la: a escrita!!! Delas restará a solidão do ato I- o texto terá um ponto final. No fundo, é uma simulação da existência. Busca-se harmonia, profundidade...esbarra-se em hipocrisia, verdades mentirosas...palavras que, ágeis, meus dedos teclarão; mentiras doloridas empurradas garganta abaixo- mas a vida tem garganta????- vivo com a voz embargada, por isso grito no papel/tela.
Não deixa de ser frágil também a escrita, basta uma borracha, uma tecla e. Foi. “Passou e ele nem viu?” Gritam as vozes na porta do caixão...” Era tão bom”. Era, mas passou o momento de ser bom. Bom. Bom texto? Boa vida? Agora vai ter de esperar. Também a escrita. Se quero escrever, sentir a liberdade da caneta eletrônica, mas só quero, não escrevo, foi-se!!! Passou da hora de ser o texto. Pode adquirir categoria desconhecida.
A emoção é tanta que fui protelando. Deixei pra última hora e não lembrava mais. Que assunto se “escolhe” enquanto se escreve?! Aí, vem à mente Fernando Sabino e “ A Última crônica”. O que ele pensava enquanto escrevia a crônica sem assunto, já que na abundância, fica-se perdido. O que escreveu era o que pensava ou só evasão? A alegria da menininha diante de uma fatia de bolo, os olhares de humildade e amor são como oásis. Também a vida é essa escrita. O ato II. O de aprender a sentir a alegria de uma fatia de bolo. Mesmo que doces não sejam o teu prato preferido. Mesmo que a preferência seja pela ardência da pimenta. Sim. É uma intertextualidade. Oásis puro no coração de tumulto do mundo.
Não há originalidade na escrita. Todas as palavras já foram ditas ou escritas. Mas é original o que sai dos meus lábios emudecidos até o ato III. Hora de lembrar: acabou de passar o dia da mulher. E eu sou. Vou aproveitar a onda e me deitar na rede livre do escrever. Ah, como é bom ter medo. Medo porque sei o que vai vir. Meu bolso apertado de mulher terá de ser costurado. Até o ponto em que nada possa sair. Mas tem a escrita. O papel. A tela. Então, nesse espaço íntimo de evasão, eu sou. A letra perdida que não conseguia achar. Um murmúrio baixo de uma voz a me soletrar docemente no ouvido: Vá. Não importa o que digam, o que pensem. Seja. Tu mesma. Sempre. Simples. Mulher. Outro nó na garganta. Onde vou viver? Ora...em ti. Só.
Qual o maior símbolo da liberdade hoje? Pergunta minha voz ao quadro: A liberdade guiando o povo, de Eugène Delacroix. Seios de fora ou ser eu mesma? Ato IV: A liberdade. Um viva a ela. Porque ser livre é saber tirar do ambiente que sufoca, ar suficiente para poder planar. Pode ser só em mim, também planar com e sobre os outros. Não por soberba. Por alegria. E identidade. Dos nós apertados, laços de compreensão. Quanto mais apertar, mais rir. Da capacidade que te foi dada de soltar os próprio laços. Os que não são visíveis. Desses, é fácil. Só soltar.
Ato V: o cordel dá conta do recado. Desata os nós. Brinca seriamente com as palavras. Eis outro tipo de liberdade. E de verdade. Língua do povo. Jeito de falar, literatura da região, cultura local. E íntima. Que gera o grande: Ahhhhh... entendi! Ou não. Não precisa. Também se é livre para não entender. Só viajar. Sem gasolina. Na vida e na folha. No papel, ainda um grito. Na existência, a construção de um texto cujo ponto não precisa ser final. Pode ser de exclamação, de puro deslumbre, de sereno êxtase...ainda resta a interrogação. Pode ser. Terminar com uma pergunta. Eu já vivi? Como assim, já passou? E no texto: essa pimenta ardeu em meu peito, mas foi doce pra você?


Márcia Brasil Stonoga- Professora de Língua Portuguesa e Literatura. Especialista em Estética

*Publicados na Coluna Pimenteiro na versão impressa do Diário Data X de 10 de março de 2017.

CONDENADA POR SER MULHER OU CONDENADA A SER MULHER*

Frágil, delicada, meiga, doce e simpática. Essas são algumas, das muitas características que toda mulher “que se preze” em uma sociedade machista precisa ter.
Lavar, cozinhar, passar, ser organizada, cuidar dos filhos, ter filhos, cuidar do marido, casar. Essas são algumas, das muitas funções que precisamos dar conta, nem que para isso tenhamos que fazer duplas ou triplas jornadas.
Mas vejam só, muitas foram as conquistas das mulheres nos últimos anos, a exemplo disso podemos até trabalhar “fora”. Mesmo que, na maioria das vezes, em cargos que se configuram como uma extensão do trabalho doméstico, ou seja, cargos em que desempenhamos funções semelhantes às que fazemos em casa. E, desde que, claro, as conciliemos com o cuidado da casa, do contrário se é uma péssima esposa. Desde que, claro, cuidemos e eduquemos nossos filhos, do contrário se é uma mãe deplorável.
Podemos votar, e até somos número ou anexo em partidos políticos.
Podemos dirigir, desde que obrigadas a engolir piadas machistas. Mesmo que o carro nos tenha sido apresentado depois da maioridade, e para os meninos desde o nascimento, afinal carrinho é brinquedo de menino.
Não nego que de fato, muitas lutas ocorreram ao longo dos anos, sim tivemos algumas conquistas. Mas venho aqui indagar sobre o quanto ainda somos condenadas por sermos mulheres.
Indagar sobre como vivemos em uma sociedade em que a violência sexual e doméstica muitas vezes é romantizada. E precisamos atentar a essas temáticas, pois a violência aparece em muitos tons.
Somos singulares, vivenciamos nossa feminilidade de formas diversas, e devemos sim ter direitos, ser reconhecidas, vistas e ouvidas. Não podemos mais em uma sociedade dita tão avançada, sermos condenadas a ser aquela mulher, um ruído.
Com isso, feliz dia das mulheres, porque não podemos, diante de nossa complexidade e diferenças sermos reduzidas ao singular.

* Monique Fernanda dos Santos



AI, QUE SAUDADES DA AMÉLIA!*

O que se há de fazer?
pelo pobre homem ou Amélia?
À procura de ser ou não ser
Aquela que se quer sempre bela
em casa, na cama, a entender
que seu lugar há de sempre ser
na sombra, em segundo e à espera.

Que triste condenação:
por ser ou a ser mulher.
Vivendo sempre em condição
de estereótipos quaisquer,
em busca de luz e ascensão
para que não se compreenda em vão
o que é, de fato, ser mulher.

Muitas conquistas, a contar.
Longo caminho, a percorrer.
Pois, a condição em ainda estar
condenada a ser ou por ser
é pauta de discussão
de diversas, e sem diversão
pra melhor podermos entender.

O saudosismo de Amélia
é pra gente enxergar
uma mulher que por vir
não pode viver sem lutar
olhando do fronte ao futuro
passando por cima do muro
esquecendo Amélia singular.


Fábio Soares. Professor e Mestre em Comunicação.

*Publicados na Coluna Pimenteiro na versão impressa do Jornal Data X de 03 de março de 2017. 

quarta-feira, 1 de março de 2017


SUBMISSÃO OU SUBVERSÃO?*

Notícias de feminicídios decorrentes da misoginia, machismo e cultura do estupro surgem o tempo todo. Informações que, de tão absurdas, parecem distantes da nossa realidade. E os casos daqui, da nossa região? Quantas mulheres sofrem em silêncio, vítimas de violência física, sexual e/ou psicológica? Quem não passou por isso, certamente conhece alguém que sim. Nas rodas de amigos, quando alguém faz um comentário machista, qual a reação das pessoas ali presentes? Qual a tua reação?
O machismo é reproduzido diariamente por pessoas de diferentes gêneros, idades, classes sociais e ideologias políticas, camuflado em piadas, opiniões, atitudes e convicções patriarcais. Interfere negativamente na vida dos homens também, que desde crianças aprendem a reprimir a vaidade, o afeto, o choro. São pressionados a demonstrar força, sucesso profissional e financeiro, manter o papel de ‘provedor’. Alguns descuidam da própria saúde para não por a ‘masculinidade’ em xeque.
Historicamente, o feminismo almeja um novo cenário social, em que a mulher sinta-se livre para decidir sua própria vida. Casar ou não, ter filhos ou não, ‘ser bela, recatada e do lar’ ou não, até mesmo considerar-se ou não feminista, desde que sejam escolhas dela. “Ah, as mulheres reclamam por direitos iguais e se aposentam cinco anos antes, pagam menos para entrar na balada e não são submetidas ao alistamento militar obrigatório.” Sobre essas afirmações contínuas e parvas, consideremos: 1) Muitas mulheres passaram uma vida recebendo salários mais baixos na profissão (comparado ao mesmo tipo de trabalho realizado pelo homem) e, com dupla jornada de trabalho. A conquista deste direito é uma questão de equidade. 2) Quanto ao ingresso da balada, não parece assustadoramente absurdo que mulheres sirvam de iscas para atrair homens para esses lugares? 3) Por que os homens não lutam para que o alistamento militar não seja mais obrigatório, ao invés de sugerir que isso se estenda às mulheres?
“Eu mesma nunca cheguei a entender direito o que quer dizer feminismo, só sei que as pessoas me chamam de feminista toda vez que expresso sentimentos que me diferenciam de um capacho” (Rebecca West, 1913). Se concordas que mulheres e homens precisam ter os mesmos direitos, que a mulher deve sentir-se livre para fazer suas escolhas... Se também pensas que toda mulher merece ser tratada como ser humano, tu és feminista.

Beatriz Soares - Professora


DÓI, UM TAPINHA NÃO DÓI*

“Vai glamurosa,
cruza os braços no ombrinho
empina bem tua bundinha
que eu te pego gostosinho”

Em todo lugar,
de diferentes formas
vemos e sentimos um olhar
que violenta em amostras
bem grande, por sinal,
desvelando o desigual
mundo fálico de anedotas.

Aí vem uma mulher,
homem, jovem ou idosa
tentar te abrir os olhos
que só enxergam espetaculosa
misoginia, violência e machismo
em cenário de anaforismo
a pensar que só isso importa.

Nos chamam de subversiva
anarquista, sapatão, feminista.
E só pensam que esses termos
criam em nós, expectativa
de ofensa e vã transformação
rendendo-nos ao viril machão
que pensa ter prerrogativa.

Ah! Como somos feministas,
sem perceber, e sem que percebamos.
Almejamos equidade à diferença,
conquista de direitos e outros tantos
definindo como queremos viver,
gozar, nos entreter e conhecer
um novo mundo de encantos.

Fábio Soares. Professor e Mestre em Comunicação

* Publicados na Coluna Pimenteiro na versão impressa do Jornal Diário Data X de 24 de fevereiro de 2017.

CIDADÃO DE BEM TAMBÉM MATA*

O sujeito autointitula-se cidadão de bem. Reputa-se honesto, correto. Do bem. Louva aqueles que pelo mérito conseguiram uma posição social de prestígio, despreza os que vivem na base. Aos criminosos, pede punição severa. Não se importa com as péssimas condições da cadeia nem com o assaltantezinho amarrado nu no poste, e para ele bandido bem que merece levar uns tabefes da polícia. O cidadão de bem é um moralista, não raro religioso, que prega a eliminação de outros seres humanos caso eles cometam crimes graves.
O cidadão de bem é um cidadão do mal. Ele reprime sua maldade mal resolvida e projeta suas angústias em um lugar socialmente preparado para sofrer.
Exemplo: a pessoa interiorizou que decote é feio. Então não usa decote. Lá no fundo ela queria chamar atenção com seu corpo, como qualquer homem pode fazer. Ela não, ela é mulher, ficaria feio para ela. Ela quer ser uma cidadã de bem. Então sofre, porque reprime seu desejo.
Consequentemente, essa pessoa passa a punir aquela outra pessoa que ousou usar decote. Afinal, se não usar decote é algo "bom", usar decote é algo "mau". Pessoas boas fazem coisas boas, coisas más são feitas por pessoas más. O sujeito conclui, então, que usar decote é coisa de gente "má": safada, vadia, vagabunda etc. E gente má merece ser punida para aprender a virar gente do bem.
O pano de fundo para esse raciocínio é a raiva. A pessoa que sofre por não ser livre tende a projetar naquele que é livre o peso da raiva contida pelo desejo reprimido.
Mas, para manifestar raiva, é preciso antes desumanizar a pessoa alvo, acreditar que ela vale menos por agir de determinada forma. Aí, consegue-se aceitar mais tranquilamente que essa pessoa sofra, sinta dor, seja presa, estuprada, xingada, perca o emprego. Tudo para aprender a ser correta tal qual o cidadão de bem.
Aquele que se autodeclara cidadão de bem é, portanto, um cidadão de bem apenas para consigo mesmo e para com quem é parecido com ele: o resto é degradação moral, anomalia. O cidadão de bem pratica o mal para as pessoas diferentes dele, pois acredita que, dessa forma, um dia essas pessoas se tornarão assim, iguais a ele: boas, probas, ótimas, normais.
Para o cidadão de bem, o outro só é humano se não fizer nada muito grave. Se fizer algo errado, o outro passa a ser um monstro que merece sofrer. Por isso, o cidadão de bem é um cidadão do mal, sem se dar conta do mal que pratica contra o outro.

Luís Henrique Kohl Camargo – Bacharel em Direito e músico.


QUE DECOTE!*

Vi lá longe linda amaragem.
Impecável, de beleza lunar.
Representação de santa imagem
recatada, sem decote e do lar.
Daí, o supliquei tão logo:
tentação, fornicação, mas rogo
não me deixe no mau mergulhar.

Do bem ou mau posso ser,
basta moral minha testar.
Se reprovo o decote, do bem
sou cidadão exemplar.
Só esqueço que ali me reprimo
e, sedento de sê-lo, não atino
para o desejo que tenho a sonhar.

– Como, do mau posso ser
se de bons modos estou a zelar?
– Atente-se bom cidadão
às vias de um desumanizar,
que de ódio e raiva sustentam
discursos de sofrer e alimentam
abismos de mal-estar.

Fábio Soares. Professor e Mestre em Comunicação.

* Publicados na Coluna Pimenteiro da versão impressa do Jornal Diário Data X de 17 de fevereiro de 2017. 

DE BEM NA LAVANDERIA*

Faça suas orações uma vez por dia. Essa é a primeira parte de um importante conselho de Tom Zé, ao qual emenda “e depois mande a consciência junto com os lençóis para a lavanderia”. A debochada recomendação parece ser mais atual hoje que em 1972, quando foi escrita. Isso porque o recente advento das redes sociais ofereceu, como denunciou Umberto Eco, um megafone a uma legião de idiotas. Sim, de idiotas! Na acepção filosófica, o idiota é por escolha incapaz de alhear-se do mundo, recolher-se no mais íntimo de si, com sua consciência, e responder ao seu inquérito olhando no olho. O idiota é o Hipias Maior do famoso diálogo socrático.
Esse idiota não é burro, muito menos louco. É o cidadão comum da canção de Belchior, ou como é mais conhecido, o cidadão de bem. Acredita que ao fazer o que faz  está construindo um mundo melhor. Regozija-se a cada fim de dia com a prazerosa “sensação da missão cumprida”. Uma das publicações periódicas da Ku Klux Klan, entre 1913 e 1933, era intitulada “O bom cidadão”. Para além disso, os julgamentos dos criminosos nazistas, especialmente, o de Adolf Eichmann em 1962, acompanhado em tempo real por Hannah Arendt assombraram o mundo porque o que se viu é que não eram monstros aqueles homens. Eram normais, comuns, de bem, cujas ações foram monstruosas. Eichmann mesmo era um amável pai de família, dedicado esposo, vizinho querido e, principalmente, já que muito se orgulhava por isso, um cidadão cumpridor das leis. Coordenou, assim, a logística responsável pelo assassinato de mais de 6 milhões de pessoas. Afirmava não nutrir nenhum ódio pessoal por suas vítimas, tendo a sua consciência limpa. Eichmann e os membros da KKK não contavam com o recurso hodierno das redes sociais. Não podiam, assim, em tempo real, no calor da hora, fazer aquilo que é mais característico aos denunciados por Eco, ou seja, expressar-se e agir sem recolher-se em sua consciência, sem considerar a dor do outro.
Dois fatos recentes promoveram a mobilização da legião de idiotas. Os fatos foram inclusive ofuscados pela repercussão e pela manifestação dos refinados “scemos”. O adoecimento repentino e falecimento da ex-primeira-dama  deixou claro o quão longe do bem estão os cidadãos de bem, incapazes de se solidarizar até mesmo com a dor de uma situação limite como a morte. Em seu desejo mortal de aniquilamento, acusam o enlutado de um pecado futuro, imputando dolo de forma vil e covarde. Em Chapecó, cidade recentemente abalada por um acidente com seu time de futebol, que recebeu o abraço do mundo e sua solidariedade, seus cidadãos de bem demonstraram desprezo pela morte absurda de um menino indígena. Um menininho indígena é, inclusive, mascote do referido time. Mas não podemos confundir: é um indiozinho gourmetizado. Para o cidadão de bem chapecoense, índio de verdade tem mais é que morrer, seja de fome, de abandono, ou “na contramão atrapalhando o tráfego”. Que não esqueçam, os bons cidadão, de fazer suas orações uma vez por dia...

Bruno Antonio Picoli – Professor.



EU CIDADÃO DE BEM*

Quantas vezes, penso!
Sobre o a fazer.
De repente, entendo
sobre um tal porquê
que muito orando
e sempre tentando
do bem consigo ser.
É tudo porque não sabia
que uma oração por dia
bom cidadão seria a crer.

Sou vil idiota
de uma consciência a perceber
como perspicaz agiota,
na busca do Belo ver
mas, esqueço-me de tudo
porque de bem e astuto
é o que quero ser.

Quanta indiferença!
E, limpar a consciência:
é só o que penso em fazer.



Fábio Soares. Professor e Mestre em Comunicação.


*Publicados na Coluna Pimenteiro da versão impressa do Jornal Diário Data X de 10 de fevereiro de 2017.