quinta-feira, 16 de junho de 2011

Uma democracia não se consolida com cadáveres insepultos

É notório na história recente do Brasil que, desde a edição do AI-5, em 13/12/1968, e do Decreto-Lei nº477/1969, e sob as suas sombras, se praticaram as maiores arbitrariedades a repercutir intensamente nos direitos dos cidadãos (e seus familiares) que se viram inteiramente desprotegidos e submetidos a uma onda de repressão até então nunca vista. Os esquadrões da morte, desde 1968, eliminaram um número até hoje desconhecido de pessoas. A esse número somam-se os extermínios efetuados pelo aparelhamento policial em nome da segurança e do restabelecimento da ordem.
Em meio a tudo isto, as alterações levadas a efeito no texto constitucional e na edição de determinadas leis, como, dentre outras, as já citadas Lei de Imprensa, a Lei Antigreve, a Lei de Segurança Nacional, o Estatuto do Estrangeiro, foram efetivadas para que o sistema encontrasse sua sustentação formal e ficcional, transformando muitas instituições públicas como que gestoras do terror de Estado, reivindicando para si o monopólio do exercício ilegítimo da violência. O Estado foi manejado como se fosse um objeto particular, alheio a qualquer finalidade pública, perdendo-se em uma crise de identidade sem precedentes.
O governo da época conseguiu, com tais comportamentos, criar o Anti-Estado, gerido por iniciativas políticas arbitrárias cada vez mais intensas de alguns comandantes das Forças Públicas; é o surgimento paradoxal do Estado Bandido, blindando ações de tamanha violência física e simbólica referidos com vestes de legalidade formal, e operando com a lógica da disseminação do medo para desmobilizar a sociedade.
Por sua vez, o controle jurisdicional sobre os abusos cometidos pelas forças do sistema foi marcado – com algumas exceções - pelas limitações impostas pelo próprio texto constitucional e pela ideologia conservadora de uma parte dos juristas brasileiros. Tanto é verdade que o estudo levado a cabo pelo movimento Brasil: Nunca Mais, registra que dos 6.385 indiciados em processos militares consultados, presos e torturados, apenas 1,4% dos casos foram comunicados regularmente à autoridade judicial.
Na via inversa, O Ministério da Justiça publicou, no ultimo dia 05 de abril, a Portaria nº417, que pretende facilitar o acesso a determinados documentos relacionados ao regime militar, do Sistema Nacional de Informação e Contra-informação, em especial referente aos anos de 1964 a 1985, sob a guarda do Arquivo Nacional. Tal gesto talvez contribua na avaliação mais refletida que se tenha de fazer sobre os termos restritivos de acesso a este tipo de informação construídos pela Lei Federal nº8.159/91, e posterior Lei Federal nº11.111/2005, ambas criando dificuldades temporais longínquas de abertura dos arquivos secretos do regime de exceção.
Este é mais um passo em direção a restauração da verdade e memória, fortalecendo as condições normativas e políticas para que se avance ainda para além das torres blindadas dos segredos daquele Anti-Estado, em direção ao mundão que heróicas senhoras vislumbraram em antigo prédio em que se instalara o Presídio Tiradentes, em São Paulo, presas pela ditadura militar.
Talvez aquelas donzelas da torre tenham sido mais do que visionárias na resistência, eis que a maior parte das sobreviventes fez valer a pena o mundão que hoje nós vivemos, mas há muito ainda o que recordar e recuperar, principalmente o que já fora silenciado fatalmente, pois como já disse uma delas, uma democracia não se consolida com cadáveres insepultos.

Rogério Gesta Leal
Desembargador do TJ/RS

terça-feira, 14 de junho de 2011

O respeito à vizinhança e o direito à qualidade de vida na cidade

"Os condomínios fechados são uma invenção da era
chamada pós-moderna com a justificativa, entre
outros itens, de propiciar maior segurança aos que nele habitam.
Por outro lado, geram uma insegurança muito maior
para os que circulam no seu entorno e na própria vizinhança."
Quando fui questionada a respeito de uma ilha murada, que se destacava entre pequenas edificações residenciais em Xanxerê, e se não soubesse o que era diria que parecia o muro de uma prisão, não tive como deixar de lembrar de Jane Jacobs e seu livro Morte e Vida de Grandes Cidades. Como a tipologia de ilha murada remete a grandes cidades, parece ser esse partido (em arquitetura tal termo refere-se à solução arquitetônica adotada) inadequado numa cidade de 40 mil habitantes.
Trouxemos para pequenas cidades um modelo de condomínio que iniciou em uma megalópole americana (Los Angeles). Repetimos em Santa Catarina os modelos de Dubai, como se arquitetura e urbanismo fossem moda, que se usa em todo o mundo, pode ser trocada a cada estação e só incomoda quem comprou. Porém a arquitetura e o urbanismo interferem, por décadas, na vida de todos que estão no entorno, dos que passam na região e muitas vezes de todos que habitam na cidade.
Jane Jacobs no seu livro fala que a segregação é uma contradição com o bem estar e cita os condomínios murados como um exemplo segregacionistas. Do outro lado da rua mora o muro, alto e inexpugnável. Porque um condomínio murado precisa de vizinhos? Não seria mais fácil e respeitoso fazê-lo fora da área urbana já que a cidade deve ser construída para todos, respeitando a vizinhança já consolidada?
Os condomínios fechados são uma invenção da era chamada pós-moderna com a justificativa, entre outros itens, de propiciar maior segurança aos que nele habitam. Por outro lado, geram uma insegurança muito maior para os que circulam no seu entorno e na própria vizinhança.  As janelas são os olhos da cidade. Muros não tem janelas. Quando construímos altos muros em condomínios ou mesmo numa casa, damos as costas para a cidade, incluindo-se nisto os passantes da rua e os vizinhos. Segundo Jacobs, mais importante que a polícia, para garantir a segurança de determinada Rua ou bairro, é o transito de pessoas e os proprietários naturais da rua (dono de mercearia, padaria, pequenos serviços etc). Os muitos olhares atentos são mais eficazes que a polícia e a iluminação. E quando é permitido construir altos muros, escondendo os olhos da cidade, a rua, por onde temos que passar, perde a segurança.
Normalmente as pessoas questionam: “eu pago imposto e não tenho o direito de fazer o que quero no meu terreno”. Deveria haver uma discussão mais longa sobre o direito à terra/ propriedade. No Brasil temos o direito de comprar um lote e dispormos dele como e até quando quisermos, desde que respeitemos regras básicas contidas no Plano Diretor (conforme art. 182 da Constituição) e demais leis pertinentes. Os casos omissos no Plano Diretor, de importância relevante, deveriam ser decididos através de consulta à população que possa ser diretamente afetada. Porém, frequentemente vemos as câmaras de vereadores elaborando leis avulsas para aprovar casos omissos ou diferenciados, fazendo com que a cidade vire uma colcha de retalhos, que até poderia ser aprazível desde que houvesse consulta à população que vizinhará os empreendimentos aprovados por leis avulsas. Como não há esta cultura, essa visão de respeito ao entorno existente, vamos observando o surgimento de “ilhas óvnis” dentro da área urbana: espaços ou edificações que se diferenciam de tudo em sua volta desconsiderando o entorno, a vizinhança existente e residente. Legalmente, todas as edificações que interferem e possam causar transtorno à vizinhança deveriam apresentar estudo de impacto de vizinhança, mas este instrumento legal continua sendo uma utopia, pois raramente é exigido.
A partir do Estatuto da Cidade (Art 2º inciso II e Art 40º parágrafo 4º inciso I) e das Agendas 21 locais a população brasileira passou a ter direito e espaço respectivamente assegurados para dizerem como querem o município, a cidade, o bairro, a vila, o distrito onde habitam. O Plano Diretor obrigatoriamente precisa de audiências públicas para ser aprovado e alterado em seus elementos principais. Inclusive a aprovação de leis avulsas que tratam da ordenação urbana necessita de consulta pública, mas exigir seus direitos legais passa pela educação e capacitação da população, bem como o conhecimento dos direitos e saber onde, com quem e como exigir seu cumprimento. A lei somente não garante a gestão democrática da cidade, nem o respeito ao inciso XIII do art 2º do Estatuto da Cidade (audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população), que, se tivesse sido obedecido, possivelmente a vizinhança não teria se oposto a um condomínio, mesmo que tivesse interrompido ruas, mas com certeza pediria que o mesmo se integrasse ao bairro, rodeado por uma cerca, sem muralhas, permitindo uma convivência mais igualitária na vizinhança.
Além de proporcionar melhor qualidade de vida, poderíamos poupar recursos naturais preciosos utilizados nas construções, se houvesse a efetiva garantia da participação da população, com adequada capacitação, na discussão do planejamento de nossas cidades.

Rosângela Favero, autora deste texto, é Arquiteta e Urbanista (UFRGS), 
especialista em Planejamento Urbano com ênfase em áreas turísticas (PROPUR-UFRGS).

sexta-feira, 10 de junho de 2011

O documentário “Quebrando o tabu”: uma reflexão sobre a guerra contra as drogas

O debate sobre a repressão às drogas ganha maior proporção com o documentário “quebrando tabu”. Inicialmente ele confirma uma suspeita antiga: FHC é melhor sociólogo que presidente, já que após 8 anos fora do cargo propõe uma medida de grande impacto na sociedade.
O debate sobre a descriminalização de alguns tipos de drogas estabelece de forma clara que esta medida não significa negar os malefícios destas substâncias, bem como nenhuma apologia ao seu consumo, mas significa reconhecer que a repressão ao seu uso falhou e que é preciso mudar de estratégias. Ao invés da repressão, o tratamento da droga deve ser compreendido como um problema de saúde pública, pois o alto índice de viciados revela a necessidade de tratar esta questão de forma terapêutica.
O consumo de drogas é sim um problema grave, mas de saúde pública. Dar um tratamento predominantemente penal é escamotea-lo, por conta disto tem–se o atual quadro em que se vê um círculo vicioso onde aumentando o consumo se aumenta a repressão, gerando um aumento na violência, para responder a este aumento da violência mais repressão e assim segue a escalada da violência.
Quem ganha com isso? Só a indústria de armas. Ela apoia em vários países o aumento da repressão policial, financiando uma atividade parlamentar que luta por leis penais mais duras. A guerra contra o tráfico de drogas permite a indústria das armas lucrar duplamente, vendendo para traficantes e para o estado policial. 
Este documentário promete nos ajudar a refletir de forma racional sobre o tema livre dos moralismos, permitindo que sejam repensadas as políticas de combate às drogas.

Samuel Mânica Radaelli - GEDIS

terça-feira, 7 de junho de 2011

Novas atribuições de sentido pelo TST

Na semana que passou recebemos a notícia de algumas modificações na jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Alguns entendimentos – antes consolidados – receberam nova interpretação (explícita ou implícita). Uma súmula e cinco orientações jurisprudenciais foram canceladas. Duas orientações e nove súmulas tiveram a redação alterada. Duas novas súmulas foram editadas.
Não pretendo discutir ou comentar modificação por modificação. Entendo que, em alguns aspectos, houve avanços. Em outros, retrocesso (até por inércia).
Exemplo de avanço: o cancelamento da orientação jurisprudencial 215 da Seção de Dissídios Individuais I (que indicava ser do empregado o ônus de comprovar o preenchimento dos requisitos para obtenção do vale-transporte). Com base em tal premissa, muitos julgados indicavam que - caso o empregado não comprovasse ter solicitado o benefício por escrito - não teria direito à vantagem. Ora, somente quem não conhece a realidade das relações entre patrão e empregado (ou dela está afastado há muito tempo) pode supor que o trabalhador formaliza os pedidos que apresenta ao empregador (quando os apresenta!). Atribuir o ônus da prova ao empregado – nesse caso – é o mesmo que transformar o direito ao vale-transporte em uma faculdade patronal (o patrão poderia muito bem não entregar o benefício e, quando demandado, alegar que o empregado não o havia postulado, por escrito). A prova, muito raramente, era realizada.
Outro exemplo de avanço é o cancelamento da Súmula 349. O sentido por ela antes atribuído era: existindo ajuste coletivo (com participação da entidade de classe dos trabalhadores), poderia ser fixado acordo de compensação de horas em atividade insalubre. Compensar horas é - de ordinário - prejudicial ao empregado (que troca hora por hora quando, se recebesse em dinheiro, receberia hora com o adicional de no mínimo 50%). Permitir a instituição do regime em atividade potencialmente prejudicial à saúde era, então, um disparate (maior exposição diária = maior possibilidade de dano físico). A existência de eventual autorização da entidade sindical não modifica essa conclusão. As entidades sindicais ainda confundem negociação com renúncia. Ademais, em matéria de meio ambiente de trabalho, não se há falar em disponibilidade (é direito fundamental).
Em razão disso, em ambiente insalubre não existe a possibilidade (como nunca existiu, a meu sentir) da instituição de regime de compensação de horas (semanal ou por meio de banco de horas), ainda que com autorização de norma coletiva. Eventual compensação é nula, cabendo ao empregado o direito às horas extras (excedentes da oitava diária, e não da 44ª semanal, como ainda se decide com base na fatídica Súmula 85 do TST!).
Primeiro; notícias alvissareiras. Na próxima postagem, a realidade como ela é: ainda estamos longe de um Judiciário Trabalhista progressista!

           
Régis Trindade de Mello – GEDIS

sexta-feira, 3 de junho de 2011

A situação da educação em Santa Catarina - uma questão de direitos fundamentais


É de conhecimento comum que greve é direito social do trabalhador – inclusive do servidor público, salvo aqueles impedidos expressamente pela própria constituição (como é o caso dos policiais militares, por exemplo). Porém, afora a questão legal relativa a tal conduta coletiva, podemos observar nesse fenômeno social uma convergência complexa de fatores que desembocam em uma insatisfação coletiva que fundamentará a busca, por meio da paralisação de uma atividade/trabalho, de levar ao conhecimento da sociedade os problemas e as dificuldades sofridas por certa classe de trabalhadores. Assim, é erro crasso relacionar o exercício do direito à greve com uma tentativa impertinente de aferir vantagens por meio da intimidação.
Dito isso, passa-se a observar a greve dos professores da rede pública de ensino do Estado de Santa Catarina. Ora, muito mais do que a simples aplicação do piso nacional (decidido recentemente como constitucional pelo STF, tornando-se, portanto, vinculante aos Estados o piso definido por lei federal), a eclosão desse acontecimento social tem a mostrar às pessoas o descaso com que a educação é tratada pelo poder público em Santa Catarina.
Relegada à boa vontade dos professores que, em sua maioria, entregam arduamente suas vidas à docência, muitas vezes sem os meios físicos institucionais adequados, a educação vem sendo concebida como mero “fator subsidiário”, algo que não merece importância na aplicação da receita pública. O sofrível salário percebido pela categoria dos professores (elemento principal para a efetivação desse direito social) e a relutância do governo em estruturar de forma digna a carreira desses profissionais conforme o piso nacional demonstra o caráter secundário que adquire a preocupação com a formação da população catarinense.
Cumpre lembrar que, assim como a greve, educação é direito social fundamental e sua efetiva prestação é dever do poder público, que deve prezar pela máxima eficácia na oferta desse serviço. Essa máxima eficácia passa, em primeiro lugar, pela valorização do profissional da educação, que deve ser uma referência para a sociedade.
A Constituição de 1988 outorgou aos três níveis da federação (União, Estados e Municípios), de forma comum e solidária, a competência para a promoção da educação pública, deixando aos Municípios precipuamente a educação infantil e o ensino fundamental, aos Estados prioritariamente o ensino fundamental e médio e à União a prioridade quanto às instituições federais de ensino (art.211, CF). Assegurou também aos profissionais de ensino o plano de carreira e o piso nacional (art.206, V e VIII). Portanto, independentemente dos obstáculos orçamentários à efetivação desses direitos (invocados pelo Governo Estadual), enquanto o Poder Público Estadual não concretizar tais prerrogativas constitucionais estará agindo em inconstitucionalidade. Atenta-se para o fato de que o Estado de Santa Catarina pode – e deve, se for o caso – solicitar ao Governo Federal os recursos necessários à aplicação do piso nacional, devendo, para isso, justificar de forma clara as razões de sua insuficiência orçamentária que o impedem de fazer valer essas diretrizes constitucionais.
Podemos estar diante de um passo fundamental para a mudança da ideia de submissão a qual o Brasil se encontra submetido em escala global. Insta afirmar que tal mudança só ocorrerá no momento em que formos capazes de reproduzir intelectualmente aquilo que hoje somos capazes de produzir materialmente. Esse processo, por sua vez, somente será possível a partir do momento em que a educação fizer parte das prioridades governamentais. Por essa razão devemos observar a greve dos professores da rede pública de educação do Estado de Santa Catarina como um fenômeno coletivo preocupado em integrar a sociedade no debate quanto à situação da educação pública em nosso Estado, exercendo um direito fundamental social que fortalece a relação democrática da qual a sociedade, muitas vezes, é relegada.


Luís Henrique Kohl Camargo - GEDIS

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Comentários acerca do reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo (ADI.4277)


A constitucionalidade do julgamento da ADI 4277 é assunto contemporâneo entre os juristas. O Supremo Tribunal Federal reconheceu, por unanimidade, a Inconstitucionalidadedo artigo 1723 do Código Civil,para o fim de igualar as uniões homoafetivas ao que a Constituição denominou casamento e posteriormente conferiu igualdade de direitos à união estável, isto é, a união – oficial ou não, para o segundo caso -, entre duas pessoas de sexos distintos com o fim de constituir família.
A questão não se apresenta tão singela quanto parece, uma vez que não se discute a simples constitucionalidade do reconhecimento da entidade homoafetiva como familiar, mas sim visa à proteção do que o Ministro Relator, Ayres Britto chamou de “uma união essencialmente afetiva ou amorosa, a implicar um voluntário navegar emparceirado por um rio sem margens fixas e sem outra embocadura que não seja a confiante entrega de um coração aberto a outro”.
Na realidade, pouco importa a origem da homossexualidade, e de nada adiantaria repisar que remonta os primórdios do agrupamento humano, porquanto tudo o que é necessário estabelecer é que todos nós, independentemente da opção sexual, da classe econômica ou da etnia, estamos sob a égide da mesma Carta Constituinte, pelo que, não há razão para o não reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, bem assim de atribuição das mesmas garantias legais atribuídas ao casamento civil.
Há, no entanto, uma necessidade emergente de que semanejea discriminação com a sociedade (não no simples sentido de punir a sua exteriorização, mas no sentido literal de educar!) e, é claro, não somente com relação à sexualidade, mas sim quanto a todas as mais variadas vestes que a conduta adquire.
A maiorpolêmica após o julgamento, todavia, se deu em razão do suposto ‘kit gay’ que o Ministério da Educação e Cultura pretendia distribuir aos alunos do Ensino Fundamental. Quero crer, porém, que apesar de o Ministério não ter sido absolutamente feliz na confecção do (conjecturado) material, é plausível que o Estado se preze a tomar medidas a fim de promover essa espécie de catequização social que tenha como objetivo diminuir a recriminação pelas escolhas, qualidades ou características pessoais de alguém, como por exemplo, a opção sexual.
É claro que a homofobia é uma realidade vivente no país, assim como as demais exteriorizações do preconceito humano – diga-se de passagem, com tudo o que é novo e ‘diferente’. Afirmação que não precisa nem sequer se pautar em pesquisas oficiais, mas pode ser evidenciada em nossos pequenos círculos de amizade. E isso não se deve apenas ao medo do desconhecido, mas a todas as influências que recebemos: religiosa, econômica, social, cultural.
O reconhecimento da união homoafetiva é, pois, muito mais do que o vencer de uma guerra para defesa dos direitos de uma classe minoritária, mas é a afirmação de que os nossos preceitos e fundamentos constitucionais de maior relevância foram, e tendem a ser, primados pelos nossos intérpretes de maior estimação e imperatividade, os ministros do Supremo.

Mayra Grezel - GEDIS

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Um detalhe oculto no debate sobre o novo código ambiental

O acalorado debate sobre o novo código ambiental tem um propulsor oculto: por trás da defesa passional do “homem do campo” existe a arcaica estrutura fundiária brasileira. Prova disso é que a maioria dos argumentos gira em torno da amplitude do direito a propriedade, como é o caso da reserva legal.
Tradicionalmente no Brasil grandes interesses elitistas usam a defesa dos mais pobres para resguardar os seus. Do mesmo modo o latifúndio nacional propõe reformas à legislação ambiental alegando a defesa dos pequenos agricultores, além do desenvolvimento do país.
Em todo e qualquer debate que, direta ou indiretamente, envolva a propriedade agrária é necessário diferenciar a agricultura familiar do agronegócio, que são duas categorias antagônicas na estrutura social brasileira com interesses que não se confundem jamais. Embora boa parte das lideranças ruralistas insista em dizer que o agronegócio inclua os pequenos agricultores, é algo ilusório crer neste argumento, pois a agricultura familiar de forma alguma consegue desenvolver de forma duradoura a produção em pequena escala dos produtos agrícolas do agronegócio exportador. Nessa linha, o que se percebe é a pequena propriedade sendo engolida pelas grandes, justamente sob o argumento de que “quem tem pouca terra não consegue se manter”.
É necessário debater a estrutura fundiária, que é extremamente arcaica e ambientalmente insustentável, facilitando a produção de alimentos envenenados, alterando o equilíbrio ambiental através da monocultura, e, principalmente, tirando pequenos agricultores do campo.
Lideranças ruralistas apontam a legislação ambiental como um mecanismo que expulsa o pequeno agricultor do campo. Contudo, para defender a permanência dele no campo, não basta uma nova lei ambiental, é preciso muito mais que isso, principalmente uma ampla e profunda reforma agrária. No entanto, essa questão não apareceu em nenhum momento no acalorado debate legislativo recente.

Samuel Mânica Radaelli – GEDIS

terça-feira, 10 de maio de 2011

Alterações no Código de Processo Penal – Lei 12.403, de 04 de maio de 2.011

*Eduardo Pianalto de Azevedo

A nova legislação, inobstante com previsão de uma vacatio legis de sessenta (60) dias, como de regra ocorre em toda e qualquer alteração legislativa, trouxe uma série de dúvidas e incertezas à sistemática anterior, em especial no tocante a ampliação das situações de cabimento da prisão preventiva e a criação das denominadas medidas cautelares.
Ainda que diante de muitas dúvidas e até mesmo contradições, realizou-se uma análise, ainda que superficial, da nova legislação, abordando-a por tópicos, de forma a melhor compreender-se algumas de suas alterações e novidades trazidas.

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Prisão Preventiva

Com relação a prisão preventiva, foram mantidas as condições anteriores de cabimento da medida cautelar, com o acréscimo de quatro novas situações:

- Descumprimento das medidas cautelares, como medida de exceção. (art. 282 parág. 4º.)
Importante observar que a decretação da prisão preventiva na hipótese acima referida não é efeito automático da inobservância ou descumprimento da(s) medida(s) cautelar(es), mas medida de exceção cuja aplicação somente poderá ocorrer no curso de investigação policial e/ou instrução criminal.
Não bastasse isso, a medida sempre estará subordinada a verificação de sua necessidade para aplicação da lei penal ou para evitar a prática de infrações penais, bem como da verificação de sua adequação à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.

- Crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos. (art.313, I)
Em que pese a má redação da nova legislação, é possível compreender-se que a prisão preventiva somente será possível nos crimes dolosos cuja pena máxima cominada seja superior a 4 (quatro) anos. Em interpretação com o artigo 322, do mesmo texto legal, que faculta a autoridade policial a afiançabilidade nos crimes com pena máxima igual ou inferior a 4 (quatro) anos, são pertinentes, pelo menos, duas ilações. Uma, pela impossibilidade de prisão preventiva em crimes cuja pena máxima cominada seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos. Outra, como conseqüência, seria de que a prisão preventiva somente seria possível nos crimes cuja pena máxima cominada fosse superior a quatro anos.

- Condenação por outro crime doloso com sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do artigo 64, do CP. (art. 313, II)
Pela ressalva expressa do dispositivo, forçoso concluir que a prisão preventiva somente seria cabível ao reincidente. E, se insistirmos numa interpretação sistemática, não bastaria a simples reincidência, mas que aquela sentença anterior tivesse imposto uma pena superior a 4 (quatro) anos. Nunca se esqueça que, em qualquer situação, deverão estar presentes os demais pressupostos fáticos exigidos à decretação da medida. Não basta, portanto, a simples reincidência para justificar a medida.

- Dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando não fornecer elementos suficientes para esclarecer sua identidade. (art. 313 parágrafo único)
Inicialmente, mister destacar-se que a medida prevista para tais situações era a Prisão Temporária (lei 7.960/89), que, agora, sofre um esvaziamento, porquanto a possibilidade de prisão preventiva poderá conceder, pelo menos em tese, um prazo maior que aqueles previstos para prisão temporária, que eram de dez (10) dias, cinco prorrogáveis por mais cinco; ou de sessenta (60) dias, trinta prorrogáveis por mais trinta, nas hipóteses de crime hediondos ou assemelhados(lei 8072/90). Tendo o princípio da especialidade por norte, s.m.j., entendo que a lei 7.960/89, deve continuar em vigor e regular as hipóteses de segregação nela expressas e nos prazos nela constantes.
Ainda que se admita a possibilidade de preventiva nas mesmas hipóteses, em razão da isonomia e proporcionalidade, não se concederá prazos de prisão preventiva superiores aos máximos previstos na lei 7.960/89, tendo por justificativa a dúvida sobre a identidade civil ou não fornecimento de elementos ao esclarecimento da identidade. Até mesmo para evitar os abusos, como o pedido de prisão preventiva, nas citadas hipóteses, apenas com objetivo de “ganhar” tempo para investigar.

Das medidas cautelares

As novas medidas cautelares, a rigor, não constituem nenhuma novidade conceitual e prática, porquanto várias delas já existiam como condição imposta à concessão da liberdade provisória e também como medida cautelares contempladas na denominada “lei Maria da Penha”.
A novidade consiste no fato de que, agora, não estão mais vinculadas a liberdade provisória, mas passaram a constituir-se em verdadeiras medidas cautelares à investigação ou instrução criminal, prescindindo de anterior segregação da liberdade para sua decretação. Se antes, tínhamos a liberdade provisória, ironicamente, no momento, temos algo próximo da “prisão latente”.
Todavia, também é possível entender-se que as medidas cautelares somente poderão ser decretadas como condição à liberdade provisória, a teor do que dispõe o artigo 321, do CPP.
Preferia que fosse assim, mas o texto não é claro e a semelhança (poderíamos também chamar de empréstimo) às medidas cautelares da Lei Maria da Penha, levam a crer que é correta a assertiva inicial, de que a(s) medida(s) possa(m) ser imposta(s) desvinculada(s) de anterior segregação à liberdade, como condição para concessão de liberdade provisória. Aguardemos as manifestações de nossos doutrinadores e tribunais. 
Importante destacar que ainda que sua decretação  possa ocorrer inaudita altera pars, de regra, observa-se que a medida (ou medidas) deverá ser precedida da ciência e manifestação do acusado ou réu. Desde que estando, portanto, obedecido o binômio ampla defesa e publicidade, que é o que se depreende do parágrafo 3º., do artigo 282.
Desta forma, entendo que, ressalvadas as hipóteses de urgência ou perigo de ineficácia, a(s) medida(s), somente poderão ser decretadas após a ciência e manifestação do réu ou acusado, pessoalmente ou por seu(s) procurador(es), sob pena de nulidade absoluta.
Merece reparo, sem dúvida, a mencionada “hipótese de urgência”, que, como qualquer medida cautelar, deverá sempre estar vinculada a uma necessidade fática (grifei) caracterizadora do periculum in mora, conforme previsto no inciso I, do artigo 282 caput.
A demonstração fática de sua necessidade para aplicação da lei penal ou para evitar a prática de infrações penais, constituem pressupostos fáticos indispensáveis – conditio sine qua – à decretação de qualquer medida cautelar e não poderia ser diferente com essas novas medidas cautelares.
Apenas para ilustrar, são medidas cautelares aplicáveis aos acusados e indiciados, a teor do disposto nos incisos I a IX, do artigo 319, do CPP:
- Comparecimento periódico em juízo, no prazo e condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades;
- proibição de acesso ou freqüência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;
- proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;
- proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução;
- recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalhos fixos;
- suspensão do exercício de função pública ou atividade de natureza econômica ou financeira quando houver receio de sua utilização para a prática de infrações penais;
- internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração;
- fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial;
- monitoração eletrônica.   
Entendo que o rol é exaustivo, não comportando a aplicação de qualquer outra medida que não esteja elencada naquelas previstas nos incisos do artigo já mencionado.
Nunca é demais repisar que, por se tratarem de penalidades, devem obedecer aos estreitos limites do princípio da legalidade.
Por outro lado, entendo que a possibilidade de aplicação de medidas cautelares dessa magnitude e no amplo contexto da investigação e instrução criminal, com certeza mitigará o elenco de situações e possibilidades para concessão da prisão preventiva, que somente deverá ser concedida na impossibilidade ou ineficácia da(s) medida(s) cautelar(es), que passa a ser medida de exceção.
Necessário enfatizar que a prisão preventiva, no contexto atual, não é medida alternativa às medidas cautelares, mas um recurso extremo e, como tal, de aplicação restrita e excepcional, somente possível quando esgotadas as possibilidades ou ineficácia das medidas cautelares. Não é outro o entendimento trazido do parágrafo 6º., do artigo 282.

Afiançabilidade pela autoridade policial
  
Pela nova legislação, sem dúvida, foi ampliado o rol de crimes afiançáveis pela autoridade policial, porquanto, anteriormente, isso somente era possível aqueles que tivessem cominada pela de prisão simples e detenção, a teor do que dispunha o revogado artigo 332, CPP:

Art. 322. A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração punida com detenção ou prisão simples (grifei)”. 

Pela nova redação, ampliou-se o elenco de crimes afiançáveis pela autoridade policial, eis que o poder discricionário da autoridade policial atinge a todas as infrações cuja pena máxima cominada seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos.
Art. 322. A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos.

Note-se que o legislador utilizou-se da expressão infrações, que abrange tanto os crimes como as contravenções penais.
Logo, deixaram de ser inafiançáveis, inclusive, as contravenções penais dos artigos 59 e 60, que não bastasse isso, tiveram tal anterior previsão legal revogada, a teor do que dispunha o inciso II, do artigo 323, CPP.
Desta forma, além dos crimes punidos com detenção e prisão simples, que antes já eram objeto de fiança pela autoridade policial, passaram a ser também suscetíveis de fiança os crimes punidos com reclusão, desde que a pena máxima cominada seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos.
Apenas para ilustrar, recordemos que os crimes de furto simples (art. 155 caput), apropriação indébita (art. 168 caput) e receptação (art. 180 caput) eram insuscetíveis de fiança pela autoridade policial, tendo em vista terem a si cominada pena de reclusão.
Atualmente, mesmo tais crimes e mesmo outros, que tenham pena máxima cominada igual ou inferior a 4 (quatro) anos, não importando que seja de detenção, prisão simples ou reclusão, são afiançáveis pela autoridade policial.


Eduardo Pianalto de Azevedo é Mestre em Direito (UFSC)
e professor de direito penal da UNOESC Xanxerê.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Mas afinal quem morreu? Osama ou a dignidade do Ocidente?

Segunda-feira, 02 de maio de 2011: o mundo assiste com atenção, comoção, alívio e, alguns, ceticismo à notícia que George W. Bush não pode dar. Estava morto o homem mais procurado da década, cuja empresa baixou sobre este início de milênio (para os países cristãos) um nevoeiro de medo, guerras e, principalmente, supressão camuflada de alguns valores basilares do Estado de Direito. De lá para cá (nem mesmo uma semana) uma quantidade inumerável de jornalistas têm se dedicado a noticiar este episódio que, não há dúvidas, dá evidências de que este milênio (não no sentido cronológico) está ainda começando...
Quero aqui discorrer não sobre a operação que culminou na morte de Bin Laden e de várias outras pessoas que estavam na casa-esconderijo – deixo isso para os bons “jornalistas” que exaustivamente dedicam-se a pensar sobre o assunto. O objetivo é apontar algumas questões que muito me perturbam (creio que não só a mim) sobre os modos como as mídias de massa têm tratado o evento e como têm simplesmente reproduzido os discursos unilaterais construídos sobre o mesmo.
Antes de prosseguir, um adendo: não há aqui a intenção em defender Bin Ladem, a Al Qaeda, o fundamentalismo (de todos os tipos – incluso o cristão), as relações de gênero no mundo islâmico, etc... Trata-se de uma análise, pautada na comparação entre o que defende (defendia?) o Ocidente e o que pratica, além de como o que se é praticado é forçadamente (sobretudo contra o intelecto) associado ao que se é defendido. Para ser mais simples: como um crime (ou uma série destes) é tornado um não-crime.
O fato: um grupo militar norte-americano invade a casa em que estava Bin Laden que, como consequência do ataque, morre. O corpo é supostamente jogado no mar. Não há imagens – ao menos não públicas. A Al Qaeda sofreu um duro golpe. O EUA fizeram a sua justiça.
Em outubro de 2009 o jornalista Daniel Scheschkewitz afirmou que a condecoração de Barak Obama com o Nobel da Paz era uma aposta no futuro. Conforme afirma “a atribuição do Nobel da Paz a Barack Obama é menos um balanço do passado e mais uma aposta no futuro. O agraciado deveria vê-lo como um estímulo e um voto de confiança. O mundo precisa mais do que nunca de um representante da esperança.”. Estava feito então: enfim um presidente americano guiado por princípios éticos e pela defesa intransitiva da paz que, com um discurso popular (“Sim, nós podemos!”), mudaria a forma de agir da maior potência mundial.
Entretanto, o Nobel da Paz tem se esforçado para comprovar a previsão de José Arbex Jr. feita antes mesmo das eleições presidenciais de 2008, para quem o ainda candidato não passava de um “falso brilhante”. Embora mais carismático que Bush, Obama é adepto do continuísmo – o que só demorou para aparecer (e consequentemente manteve por um tempo maior a “ilusão Obama”) efetivamente devido à crise econômica de 2008. Não seria exagero dizer que Bush não estaria de todo equivocado se apoiasse o democrata para a reeleição...
Obama manteve o campo de concentração (ainda não de extermínio) de Guantánamo, injetou mais soldados nas frentes de combate no Afeganistão e no Iraque (embora o discurso de que está retirando as tropas seja mantido pela grande mídia mundial), mantém posturas conservadoras e unilaterais em conferências econômicas e climáticas... E agora inovou, instituindo como política de Estado o assassinato político (se bem que não é, necessariamente, uma inovação...)!
Entretanto, Obama é um chefe de Estado, tem seus interesses e age de acordo com estes. O que causa calafrios, indignação e vergonha (de fazer parte da mesma espécie) é que a grande maioria dos jornalistas tem se ocupado em reproduzir discursos prontos, tratados, filtrados e ideologicamente mal-intencionados. Utilizando-se do “salvo-conduto” de que apenas informam cometem um crime contra a inteligência humana: acreditar (com imensa ingenuidade ou malícia – cabe ao leitor decidir o que é pior) que os documentos oficiais de Estados são neutros, desinteressados, que apresentam e representam a verdade.
Cidadãos dos EUA regozijam o assassinato
de Osama Bin Laden.
Não houve, salvo algumas exceções que levam a sério o trabalho jornalístico (Elaine Tavares, Altamiro Borges, entre outros), a preocupação sequer em questionar a necessidade da morte de Bin Laden e dos demais na forma como se deu. Até mesmo os piores carrascos nazistas tiveram o Tribunal de Nuremberg. Por mais parcial e até ridículo que tenha sido (no sentido das razões e do procedimento), até Saddan Hussein teve a oportunidade de falar (relativa) e o direito de ter um julgamento...
Assassinatos políticos não são novidades, sobretudo quando se trata da política externa norte-americana. O problema é que o assassinato de Bin Laden abre um precedente perigoso (que por muito pouco não foi antecipado pelo de Khadafi, cuja casa em que estava foi bombardeada na semana passada): legitimação da tortura como forma de obter informações, comemorações pela “justa morte” do inimigo, cancelamento de aulas em universidades, ruas tomadas pela euforia coletiva (de uma massa manobrada) e declarações que agridem o bom senso, crimes contra a humanidade, e a lista prosseguiria...
O assassinato político e a subsequente desova de Bin Laden no mar tem sido divulgada como uma vitória da esperança, da democracia, de um estilo de vida que preza pela plena liberdade (pobre Voltaire, deve ser uma alma atormentada...). O sítio de notícias da Rede Globo de televisão, reproduzindo texto da Reuters, divulgou, em 05 de maio, sem dar sequer uma breve analisada, apresentar um posicionamento (se bem que tratando-se da Globo seria melhor não...) a seguinte declaração de Obama sobre o desfecho dado ao corpo: "Tomamos mais cuidado com isso do que, obviamente, Bin Laden tomou quando matou 3 mil pessoas (nos atentados de 11 de setembro de 2001). Ele não teve muito respeito sobre como (as vítimas) eram tratadas e profanadas".
É compreensível que quem perdeu pessoas nos atendados de 11 de setembro ou em outros promovidos por grupos fundamentalistas pensem isso. É compreensível até que o presidente dos EUA, que quer se reeleger, diga e/ou pense dessa maneira, mas é inadmissível que um formador de opinião – que é o jornalista –, que se diz ocidental, defensor da paz e da democracia, admita tal pensamento como compatível com os conceitos que afirma defender.
Em complementação à supracitada passagem, há o esforço em legitimar, por meio de uma fala de Obama, o assassinato como necessário, dado ao criado contexto maniqueísta de enfrentamento do bem contra o mal: "Mas isso, novamente, é algo que nos torna diferentes.”. Está correto o presidente, pelo menos nos tornamos mais hipócritas.
É, este milênio vai ser longo...


   Bruno Antonio Picoli - professor de História da UNOESC Xanxerê.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

A política pública de cotas: inconstitucionalidade ou observância dos princípios constitucionais?

"O que garante que esse sujeito se destacará
academicamente mais do que aquele que,
segregado por uma sociedade desigual e
hipocritamente discriminadora, não conta com o
mesmo conforto e motivação para se dedicar em
seu aprimoramento para uma prova de seleção?"
                  Ainda há muitos mitos e contradições acerca do assunto das cotas para negros e indígenas no Brasil. Somam-se argumentos contra tal medida, em que pese a maioria desses se encontra embasada em dados ideologicamente produzidos para a manutenção do status quo da sociedade capitalista (que necessita da desigualdade e a produz). As principais celeumas levantadas giram em torno da inconstitucionalidade do tema (que supostamente viria para solapar o artigo 5º da Constituição, “institucionalizando o racismo” no Brasil) e da inadequação deste: para estes, a solução adequada seria a melhoria na educação básica e não a reserva de vagas. O principal argumento, contudo, diz respeito à questão da “meritocracia”. Vamos tratar das principais e mais controvertidas objeções, iniciando pela questão jurídico-positiva do sistema de cotas em relação ao ordenamento jurídico brasileiro.
Já foi manifestado o entendimento por alguns ministros do STF, entre outros juristas, de que a “discriminação” ocasionada pela seleção dos negros para reserva de vagas em universidades possui fins positivos e não negativos, no sentido de que não objetiva excluir determinado direito devido a motivações racistas, muito pelo contrário, visa garantir a uma parcela socialmente excluída da sociedade o direito à educação e ao desenvolvimento humano, possibilitando, consoante o artigo 3º, III, o cumprimento de um objetivo fundamental da República Brasileira, que é a redução das desigualdades sociais (uma leve pesquisa de dados comprova que os dados da pobreza no Brasil possuem relação direta com a questão racial).
O sistema de cotas também não macula o artigo 5º da Constituição, no tocante à impossibilidade de “distinções de qualquer natureza”, pois a diferenciação que se faz possui a própria finalidade de cumprir o ditame constitucional de assegurar a promoção social das classes fragilizadas, possibilitando a existência de condições para que efetivamente exista eficácia e plausibilidade do princípio da igualdade formal (“todos são iguais perante a lei”). Assim, se a regra da vedação de “distinções de qualquer natureza” possuísse natureza absoluta, não seria lícita, da mesma forma, a criação de políticas públicas de proteção à mulher, e as mesmas prerrogativas jurídicas de um engenheiro também seriam as de um padeiro, por exemplo. A Constituição possui um norte principiológico que deve ser seguido, sempre tendo em vista seus objetivos implícitos e explícitos. Ou seja, juridicamente, no Brasil, o sistema de cotas possui absoluto respaldo e viabilidade constitucional.
Além do mais, é consabido que o princípio ou direito fundamental à igualdade deve ser concebido substancialmente. Com isso , almeja-se sedimentar um tratamento vinculado à realidade, ou melhor,à posição que cada ator exerce em relação ao outro no jogo das relações socias e, porque não, democrático. Destarte, a gama conteudística do princípio da igualdade consiste no tão conhecido jargão de que é necessário tratar os iguais como iguais e, os desiguais, como tais, na medida de suas desigualdades.
A propósito, cumpre destacar a necessidade de cindir discriminação negativa de discriminação positiva. A primeira é tida como concretização de alguma forma de desvantagem ou de tratamento negativo ao sujeito em razão de características, pessoais ou sociais, entendidas como causadora de demérito ou de menos aceitação por parte do sujeito ou do grupo dominante. A segunda, por seu turno, busca justamente alavancar o sujeito que se encontra em desvantagem – por ser alvo de discriminação negativa – a um patamar que antes lhe era tolhido.
 A discriminação positiva é promessa constitucional, cujo afã reside em superar a igualdade formal - perante a lei – para promover a igualdade material – pela lei. Por corolário, constitui-se no bojo do catálogo de atuação do Estado Democrático e Social de Direito, que possui a função peculiar de transformação da realidade social.
"...desempenho acadêmico não se mede apenas
pela qualidade do ensino de base, mas
também pela motivação e estímulo recebidos
por aqueles que já cursam nível superior.
[...] O importante é garantir a todos o
acesso à universidade."
 Enquanto não existir igualdade concreta, também não haverá liberdade – ora, quem está em desvantagem, por ser desigual (no sentido negativo do termo) encontra-se, pois, em situação de dominação. De outro vértice, diante do cenário selvagem de submissão (in)consciente, a solidariedade (ou fraternidade), enquanto princípio abarcada pela Constituição da República Federativa do Brasil (art. 3° , inciso I), reside exatamente na efetivação de políticas públicas, isto é, de discriminação positiva! 
Quanto à questão sociológica das cotas, muitas são as objeções. Primeira, aquela que diz que tal política pública é inadequada haja vista que o meio correto seria a melhoria do ensino básico público no Brasil, possui o equívoco de considerar as cotas um fim em si, quando na verdade trata-se de um meio para a possibilidade de emancipação social da classe negra. Da mesma forma, é inadequado pensar em políticas públicas como em uma receita de bolo: não há passos determinados nem causa e consequência direta.
Ambas as medidas citadas são importantes, pois possuem abrangência diversa: as cotas visam amenizar, a curto prazo, a discrepância entre a população negra e branca nas universidades públicas; o aprimoramento do ensino público visa possibilitar, a longo prazo, igualdade material entre os concorrentes, indiferentemente a sua raça.
Também há os que julgam que as cotas acarretarão uma queda no nível acadêmico das universidades que adotam tal medida, pensamento que vai de encontro aos dados, que confirmam o contrário: o nível intelectual dessas universidades não contou com alterações relevantes que justifiquem tal argumento. É preciso observar, aqui, que desempenho acadêmico não se mede apenas pela qualidade do ensino de base, mas também pela motivação e estímulo recebidos por aqueles que já cursam nível superior. Assim, nota-se, com respaldo em pesquisas já efetuadas sobre o tema, que o desempenho acadêmico entre cotistas e não cotistas não possui diferenças consideráveis – é basicamente o mesmo. O importante é garantir a todos o acesso à universidade.
Para arrematar a questão, finalizamos analisando a popular “meritocracia” ferida pelo sistema de cotas. Ora, qual mérito pretendemos adotar? É natural que o jovem que possui disponibilidade física, material e moral para dispor basicamente da totalidade da sua rotina diária para estudar para um vestibular conquiste as melhores notas. Qual é o mérito que queremos observar aqui? O que garante que esse sujeito se destacará academicamente mais do que aquele que, segregado por uma sociedade desigual e hipocritamente discriminadora, não conta com o mesmo conforto e motivação para se dedicar em seu aprimoramento para uma prova de seleção? Uma prova é critério seguro para avaliar a quantidade de mérito que uma pessoa tem para se sobressair no mundo acadêmico, ou melhor, para quantificar o mérito que o sujeito possui como suficiente ou não para o acesso ao ensino superior?
Fugindo do jogo de palavras neoliberal que deprecia com argumentos frágeis o sistema de cotas para negros e alunos de escolas públicas, observamos tal instituto como adequado tanto à adequação jurídico-positiva concedida pelo nosso ordenamento jurídico quanto à questão da emancipação social das classes segregadas pelo processo de exclusão presente no capitalismo periférico. É imperioso ao jurista observar com olhos atentos a sociedade, comparando os abundantes números dos indicadores sociais que denunciam o preconceito racial ocultado por uma cultura de hipocrisia silenciosa que conta com uma disputa desleal de oportunidades que não chegam ao alcance da classe negra.
Constatado isso, movemo-nos no sentido de garantir a essa parcela marginalizada da sociedade seus direitos fundamentais negados por aqueles que se aproveitam de uma reserva de vagas informal destinada aos alunos de escola privada. Tal garantia passa pela criação de institutos jurídicos que dêem conta de transformar a sociedade. Dessa forma apreciamos a questão da política pública democrática das cotas.

"As cotas são indispensáveis e a implantação
decorre de mandamento constitucional ,
mas devem ser vistas como o início, e não
como o exaurimento da paulatina e crescente
transformação social, até chegarmos a
uma sociedade substancialmente igualitária,
e para todos!"

Para muito mais que as cotas

De pronto, uma premissa deve restar fixada: a cotas são constitucionais e imprescindíveis para diminuir as mazelas sociais abarcadas em sua moldura de abrangência. Isso, em sã consciência, é inobjetável, pois negar a existência de discriminação em relação aos negros e indígenas, por exemplo, é negar a própria realidade histórica do Brasil. Do mesmo modo, omitir a missão constitucional de concretização de tais políticas públicas significa desconhecer o objetivo magno de construir uma sociedade livre, justa e solidária.  
Não obstante isso, é inexorável enveredar para a construção de outra premissa, a qual se apresenta nas entranhas do discurso condicionante dos atores sociais. Esta, a toda evidência, reside na necessidade de as cotas não servirem de alimento à alienação.
A alienação, tal qual ora utilizada, consiste na orientação “virtual”, e não real,  da posição em que o sujeito social se encontra em relação aos demais indivíduos,grupos ou até mesmo no que tange ao Estado. Em outras palavras: a alienação é não-capacidade do indivíduo, ou de certo grupo de pessoas, reconhecer que está em situação outra – de menosprezo e/ou desvantajosa – daquela que lhe é representada.
A alienação advém da representação gerada no ser social de que reside em (outro) local concreto da sociedade, no qual, entretanto, participa apenas ”virtualmente”. Isso ocasiona a falta de consciência de que está condicionado socialmente, ou seja, de que é “fantoche” social, não obtendo êxito em visualizar-se em seu locus socialmente reservado.
E, o que é pior, não haverá resistência enquanto estiver em situação de alienação. Afinal, o grande mote do estado de alienação é governar os atores sociais, impedindo que contestem a ordem imposta. É pelo imaginário das pessoas que os discursos alienadores cumprem seu boçal desígnio.
Concernente às cotas, impõe-se o cuidado de não serem utilizadas como fator gerador de alienação, a qual pode se desencadear em nível setorial e, bem assim, de forma mais abrangente, ultrapassando os destinatários dessa ação estatal.
Isso poderá acontecer com a proliferação acrítica do discurso de que a igualdade e a promoção social  estarão efetivadas com a implantação de políticas de tal jaez. Obviamente que isso não corresponderá com a realidade, vez que existe abismo gigantesco até esse patamar, sendo a instituição desse tratamento igualitário apenas o início de sua transposição, demasiada longa, ademais. A inclusão de alguns integrantes dos grupos alvo da política de cotas no ensino superior pouco representa frente à discriminação que os assola (mas é um bom começo!).
Mas o reflexo mais pernicioso dessa fala de distorção parece ser a falsa representação de que as desigualdades apenas se adstringem aos mencionados grupos sociais. Entretanto, são inúmeros os conclomerados de pessoas que estão em situação de inferioridade, os quais podem ficar esquecidos em face da concentração do foco em relação àqueles. A propósito, veja-se o caso dos miseráveis; dos homossexuais; das mulheres; dos empregados (todos eles!); enfim de todos aqueles que não usufruem dos privilégios exclusivos de alguns, também são excluídos e estão alienados.
Ocorre que a cisão dos grupos de pessoas que se encontram em situação de inferioridade acarreta a falta de consciência coletiva acerca da opressão. É muito salutar para os dominadores que se questione apenas a questão racial, enquanto igual postura não é tomada quanto às demais formas de dominação.  Com isso, as eventuais insurgências ficam restritas em determinado setor da sociedade, fazendo que apenas parcela dos sujeitos dominados exijam melhora na situação. Enquanto isso, o que existe na verdade, é a dominação da grande maioria da sociedade, que não se dá conta, pois soçobra na alienação.
  A falta de interligação de percepção entre os vários grupos de que se encontram dominados acaba por inibir uma reação social mais abrangente, o que impede com que seja realizada transformações revolucionárias no Estado e na sociedade. Dessa feita, o máximo que ocorre são suscitações setoriais e isoladas, cujo discurso ideológico se encarrega de espraiar a sensação de que todos estão sendo incluídos na pauta de atuação estatal, gerando, com isso, nova alienação.
Enquanto as relações sociais estiverem pautadas pela cultura capitalista de individualismo exacerbado e pela falta de solidariedade, não haverá melhora na situação social. O fato de colocar alguns sujeitos dominados em situações socialmente consideradas como mais elevadas é meio ardil para criar uma pseudo-legitimidade às  ações opressivas. O intuito é cessar as poucas reivindicações e distorcer a realidade.
A estratégia é simples, embora difícil de ser constatada: cede-se parcial e pontualmente para repassar a sensação para todos os oprimidos de que haverá melhoras, quando, na realidade, o que se visa é manter íntegros os interesses da parcela dominante da sociedade.
Diante dessas breves pontuações, infere-se em suma que: as cotas são indispensáveis e a implantação decorre de mandamento constitucional , mas devem ser vistas como o início, e não como o exaurimento da paulatina e crescente transformação social, até chegarmos a uma sociedade substancialmente igualitária, e para todos!

Cleiton Luís Chiodi e Luís Henrique Kohl Camargo - GEDIS